IT - A COISA - Literatura (2025)

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<p>Copyright © Stephen King, 1986</p><p>Publicado mediante acordo com o autor através de Lotts Agency</p><p>Todos os direitos desta edição reservados à</p><p>EDITORA OBJETIVA LTDA.</p><p>Rua Cosme Velho, 103</p><p>Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22241-090</p><p>Tel.: (21) 2199-7824 – Fax: (21) 2199-7825</p><p>www.objetiva.com.br</p><p>Título original</p><p>It</p><p>Capa</p><p>Rodrigo Rodrigues sobre layout original</p><p>Imagem da capa</p><p>Glen Orbik</p><p>Revisão</p><p>Rita Godoy</p><p>Ana Kronemberger</p><p>Coordenação de e-book</p><p>Marcelo Xavier</p><p>Conversão para e-book</p><p>Abreu’s System Ltda.</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>K64c</p><p>King, Stephen</p><p>It : a coisa [recurso eletrônico] / Stephen King ; tradução Regiane Winarski. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2014.</p><p>recurso digital</p><p>Tradução de: It</p><p>Formato: ePub</p><p>Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions</p><p>Modo de acesso: World Wide Web</p><p>ISBN 978-85-8105-152-9 (recurso eletrônico)</p><p>1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Winarski, Regiane. II. Título.</p><p>14-13153 CDD: 813</p><p>CDU: 821.111(73)-3</p><p>Este livro é dedicado com gratidão aos meus filhos. Minha mãe e minha esposa</p><p>me ensinaram a ser homem. Meus filhos me ensinaram a ser livre.</p><p>NAOMI RACHEL KING, 14 anos;</p><p>JOSEPH HILLSTROM KING, 12 anos;</p><p>OWEN PHILIP KING, 7 anos.</p><p>Crianças, a ficção é a verdade dentro da mentira, e a verdade desta ficção é</p><p>bem simples: a magia existe.</p><p>S. K.</p><p>“Esta velha cidade é meu lar desde que lembro</p><p>Esta velha cidade vai estar aqui bem depois que eu for embora.</p><p>Lado leste, lado oeste, dê uma boa olhada nela</p><p>Você anda mal, mas ainda faz parte de mim.”</p><p>— The Michael Stanley Band</p><p>“Velho amigo, o que você procura?</p><p>Depois de tantos anos fora você volta</p><p>Com as imagens que cultivou</p><p>Sob céus estrangeiros</p><p>Longe de sua própria terra.”</p><p>— George Seferis</p><p>“Do nada, para a escuridão.”</p><p>— Neil Young</p><p>SUMÁRIO</p><p>Capa</p><p>Folha de Rosto</p><p>Créditos</p><p>Dedicatória</p><p>Epígrafe</p><p>PARTE 1 – A SOMBRA ANTES</p><p>Capítulo 1 – Depois da enchente (1957)</p><p>Capítulo 2 – Depois do festival (1984)</p><p>Capítulo 3 – Seis telefonemas (1985)</p><p>DERRY: PRIMEIRO INTERLÚDIO</p><p>PARTE 2 – JUNHO DE 1958</p><p>Capítulo 4 – Ben Hanscom sofre uma queda</p><p>Capítulo 5 – Bill Denbrough vence o diabo (I)</p><p>Capítulo 6 – Um dos desaparecidos: uma história do verão de 1958</p><p>Capítulo 7 – A represa no Barrens</p><p>Capítulo 8 – O quarto de Georgie e a casa na rua Neibolt</p><p>Capítulo 9 – Arrumação</p><p>DERRY: SEGUNDO INTERLÚDIO</p><p>PARTE 3 – ADULTOS</p><p>Capítulo 10 – O reencontro</p><p>Capítulo 11 – Caminhadas</p><p>Capítulo 12 – Três convidados inesperados</p><p>DERRY: TERCEIRO INTERLÚDIO</p><p>PARTE 4 – JULHO DE 1958</p><p>Capítulo 13 – A apocalíptica guerra de pedras</p><p>Capítulo 14 – O álbum</p><p>Capítulo 15 – O buraco de fumaça</p><p>Capítulo 16 – A fratura ruim de Eddie</p><p>Capítulo 17 – Mais um desaparecido: a morte de Patrick Hockstetter</p><p>Capítulo 18 – O estilingue</p><p>DERRY: QUARTO INTERLÚDIO</p><p>PARTE 5 – O RITUAL DE CHÜD</p><p>Capítulo 19 – Nas vigílias da noite</p><p>Capítulo 20 – O círculo se fecha</p><p>Capítulo 21 – Debaixo da cidade</p><p>Capítulo 22 – O ritual de Chüd</p><p>Capítulo 23 – Para fora</p><p>DERRY: ÚLTIMO INTERLÚDIO</p><p>EPÍLOGO – BILL DENBROUGH VENCE O DIABO (II)</p><p>Aqui expresso meus agradecimentos</p><p>PARTE 1</p><p>A SOMBRA ANTES</p><p>“Eles começam!</p><p>As perfeições são acentuadas</p><p>A flor abre as pétalas coloridas</p><p>sob o sol</p><p>Mas a língua da abelha</p><p>não chega a elas</p><p>Elas afundam de volta no solo</p><p>gritando</p><p>— pode-se chamar de grito</p><p>que rasteja por elas, um tremor</p><p>enquanto elas murcham e desaparecem…”</p><p>— WILLIAM CARLOS WILLIAMS,</p><p>Paterson</p><p>“Nascido na cidade de um homem morto.”</p><p>— BRUCE SPRINGSTEEN</p><p>Capítulo 1</p><p>Depois da enchente (1957)</p><p>1</p><p>O terror, que só terminaria 28 anos depois (se</p><p>terminasse), começou, até onde sei ou consigo</p><p>saber, com um barco feito de uma folha de jornal</p><p>flutuando por uma sarjeta cheia da água da chuva.</p><p>O barco balançou, quase virou, se endireitou, mergulhou corajosamente nos redemoinhos</p><p>traiçoeiros e continuou a seguir pela rua Witcham em direção ao sinal de trânsito que indicava</p><p>a interseção dela com a Jackson. As três lentes verticais de todos os lados do sinal estavam</p><p>escuras naquela tarde do outono de 1957, e as casas também estavam escuras. Vinha chovendo</p><p>sem parar havia uma semana, e dois dias antes os ventos também chegaram. Muitas partes de</p><p>Derry ficaram sem energia, que ainda não tinha voltado.</p><p>Um garotinho de capa de chuva amarela e galochas vermelhas corria alegremente ao lado</p><p>do barco de jornal. A chuva não havia parado, mas estava diminuindo, enfim. Ela caía no</p><p>capuz amarelo da capa de chuva do garoto, soando para ele como chuva em um telhado de</p><p>galpão… um som confortável, quase aconchegante. O garoto de capa amarela era George</p><p>Denbrough. Ele tinha 6 anos. Seu irmão, William, conhecido pela maior parte das crianças da</p><p>Escola Derry (e até pelos professores, que jamais usariam o apelido na frente dele) como Bill</p><p>Gago, estava em casa, se recuperando de uma gripe violenta. Naquele outono de 1957, oito</p><p>meses antes de os verdadeiros horrores começarem e 28 anos antes do confronto final, Bill</p><p>Gago tinha 10 anos.</p><p>Bill tinha feito o barco com que George agora brincava. Ele o fez sentado na cama, com as</p><p>costas apoiadas em vários travesseiros, enquanto a mãe tocava “Für Elise” no piano na sala</p><p>de estar e a chuva batia sem parar na janela do quarto.</p><p>Depois de três quartos do quarteirão no sentido de quem ia para o cruzamento e para o</p><p>sinal de trânsito apagado, a rua Witcham estava bloqueada ao trânsito por um fogareiro e</p><p>quatro cavaletes laranja. Em cada cavalete estava pintado DEPTO. DE OBRAS PÚBLICAS DE DERRY. Atrás</p><p>deles, a chuva jorrava de canais entupidos com galhos, pedras e pilhas grudentas de folhas de</p><p>outono. A água primeiro abriu brechas no asfalto, depois arrancou pedaços inteiros, isso no</p><p>terceiro dia de chuva. Ao meio-dia do quarto dia, pedaços grandes da superfície da rua</p><p>desciam pelo cruzamento da Jackson com a Witcham como canoas em miniatura. Naquele</p><p>momento, muitas pessoas em Derry já tinham começado a fazer piadas nervosas sobre arcas.</p><p>O Departamento de Obras Públicas tinha conseguido deixar a rua Jackson aberta, mas a</p><p>Witcham estava intransitável dos cavaletes até o centro da cidade.</p><p>Mas todos concordavam que o pior tinha terminado. O rio Kenduskeag tinha subido até</p><p>quase a margem no Barrens e poucos centímetros abaixo das laterais de concreto do canal que</p><p>o espremia pelo centro da cidade. Naquele momento, um grupo de homens — Zack</p><p>Denbrough, pai de George e de Bill, entre eles — estava retirando os sacos de areia que</p><p>haviam empilhado no dia anterior com pressa e pânico. A inundação da véspera e os danos</p><p>causados por ela pareceram quase inevitáveis. Deus sabia que tinha acontecido antes: a</p><p>inundação de 1931 foi um desastre que custou milhões de dólares e quase duas dúzias de</p><p>vidas. Isso foi muito tempo antes, mas ainda havia pessoas vivas o suficiente para lembrarem</p><p>e assustarem os outros. Uma das vítimas da inundação foi encontrada 40 quilômetros a leste,</p><p>em Bucksport. Os peixes tinham comido os olhos desse cavalheiro infeliz, três dos dedos dele,</p><p>o pênis e a maior parte do pé esquerdo. Preso no que restava das mãos dele havia o volante de</p><p>um Ford.</p><p>Mas agora o rio estava baixando, e quando a nova represa da hidrelétrica de Bangor fosse</p><p>erguida rio acima, ele deixaria de ser uma ameaça. Ou era o que dizia Zack Denbrough, que</p><p>trabalhava na hidrelétrica. Quanto ao resto, bem, as inundações futuras podiam se cuidar</p><p>sozinhas. A questão era passar por essa, ter a energia de volta e esquecer. Em Derry, esquecer</p><p>tragédias e desastres era quase uma arte, como Bill Denbrough descobriria ao longo do tempo.</p><p>George parou nos cavaletes, na beirada de uma abertura na superfície de asfalto da rua</p><p>Witcham. Essa abertura fazia uma diagonal quase exata. Acabava do outro lado da rua, uns 12</p><p>metros colina abaixo de onde ele estava agora, à direita. Ele riu alto (o som de alegria</p><p>solitária e infantil pareceu iluminar aquela tarde cinzenta) quando uma onda na água levou o</p><p>barco de papel pela cachoeira em miniatura formada pelo asfalto quebrado. A água</p><p>desesperada abriu um canal que descia pela diagonal, e assim o barco viajou de um lado a</p><p>outro da rua Witcham,</p><p>— disse Reeves, e deu outra piscadela para Harold</p><p>Gardener.</p><p>— Sei como parece — repetiu Hagarty com a mesma voz sombria.</p><p>— Você viu esses balões — disse Gardener.</p><p>Don Hagarty levantou as mãos lentamente na frente do rosto.</p><p>— Eu os vi tão claramente quanto consigo ver meus dedos neste momento. Milhares deles.</p><p>Não dava nem pra ver a parte de baixo da ponte, porque eram muitos. Estavam tremendo um</p><p>pouco, meio que balançando pra cima e pra baixo. Havia um som. Tipo um grito meio baixo e</p><p>estranho. Eram as laterais deles se tocando. E fios. Havia uma floresta de fios brancos de teia</p><p>de aranha. O palhaço levou Ade lá pra baixo. Consegui ver a roupa dele roçando nos fios.</p><p>Ade estava fazendo terríveis sons de engasgo. Comecei a ir atrás dele… e o palhaço olhou pra</p><p>trás. Vi os olhos dele e imediatamente entendi quem ele era.</p><p>— Quem era, Don? — perguntou Harold Gardener baixinho.</p><p>— Era Derry — disse Don Hagarty. — Era esta cidade.</p><p>— E o que você fez? — falou Reeves.</p><p>— Eu corri, seu burro — disse Hagarty, e caiu em lágrimas.</p><p>17</p><p>Harold Gardener ficou na dele até o dia 13 de</p><p>novembro, a véspera do dia em que John Garton e</p><p>Steven Dubay seriam julgados no Tribunal do</p><p>Distrito de Derry pelo assassinato de Adrian Mellon.</p><p>Ele procurou Tom Boutillier. Queria falar sobre o</p><p>palhaço. Boutillier não queria, mas quando viu que</p><p>Gardener poderia fazer alguma coisa idiota sem</p><p>orientação, ele falou.</p><p>— Não tinha palhaço, Harold. Os únicos palhaços na rua aquela noite eram aqueles</p><p>garotos. Você sabe disso tão bem quanto eu.</p><p>— Temos duas testemunhas…</p><p>— Ah, isso é besteira. Unwin decidiu incluir o Homem de Um Braço, no melhor estilo “nós</p><p>não matamos o pobre veadinho, foi o homem de um braço” assim que entendeu que tinha se</p><p>metido em confusão de verdade dessa vez. Hagarty estava histérico. Ele ficou de lado vendo</p><p>os garotos matarem o melhor amigo dele. Não teria me surpreendido se tivesse visto discos</p><p>voadores.</p><p>Mas Boutillier sabia que não era isso. Gardener conseguia ver nos olhos dele, e a atitude</p><p>esquiva do promotor assistente o irritou.</p><p>— Para com isso — disse ele. — Estamos falando de testemunhas independentes aqui. Não</p><p>me venha de merda.</p><p>— Ah, você quer falar de merda? Está me dizendo que acredita que havia um palhaço</p><p>vampiro debaixo da ponte da rua Main? Porque essa é a minha ideia de merda.</p><p>— Não, não exatamente, mas…</p><p>— Ou que Hagarty viu um bilhão de balões lá embaixo, cada um com a mesma coisa que</p><p>havia impressa no chapéu do amante dele? Porque isso também é minha ideia de merda.</p><p>— Não, mas…</p><p>— Então por que você está me incomodando com isso?</p><p>— Para de me interrogar! — gritou Gardener. — Os dois descreveram o mesmo e nenhum</p><p>dos dois sabia o que o outro estava dizendo!</p><p>Boutillier estava sentado à mesa, brincando com um lápis. Agora ele colocou o lápis sobre</p><p>a mesa, ficou de pé e andou até Harold Gardener. Boutillier era 12 centímetros mais baixo,</p><p>mas Gardener deu um passo para trás frente à raiva do homem.</p><p>— Você quer que a gente perca esse caso, Harold?</p><p>— Não. É claro que n…</p><p>— Quer que essas pragas ambulantes fiquem livres?</p><p>— Não!</p><p>— Certo. Ótimo. Como nós dois concordamos com o básico, vou te dizer exatamente o que</p><p>acho. Sim, devia haver um homem debaixo da ponte naquela noite. Talvez até estivesse usando</p><p>uma roupa de palhaço, apesar de eu já ter lidado com testemunhas o suficiente pra saber que</p><p>devia ser um vagabundo ou um passante usando um bando de roupas descartadas por outras</p><p>pessoas. Acho que devia estar lá embaixo procurando moedas caídas ou restos de comida,</p><p>metade de um hambúrguer que alguém jogou fora ou talvez o farelo do fundo de um pacote de</p><p>salgadinho. Os olhos deles fizeram o resto, Harold. Isso é possível?</p><p>— Não sei — disse Harold. Ele queria ser convencido, mas considerando a</p><p>correspondência exata das duas descrições… não. Ele não achava possível.</p><p>— A questão é a seguinte. Não ligo se era o Palhaço Kinko ou um cara de terno do tio Sam</p><p>de muletas ou Hubert, o Homossexual Feliz. Se introduzirmos esse sujeito no caso, o</p><p>advogado deles vai cair em cima disso antes de você conseguir dizer “Jack Robinson”. Ele</p><p>vai dizer que os dois cordeirinhos inocentes com cabelos recém-cortados e roupas novas não</p><p>fizeram nada além de jogar o cara gay chamado Mellon da ponte de brincadeira. Vai observar</p><p>que Mellon ainda estava vivo depois que caiu; eles têm o testemunho de Hagarty assim como o</p><p>de Unwin pra isso.</p><p>“Os clientes dele não cometeram assassinato, ah, não! Foi um psicopata de roupa de</p><p>palhaço. Se introduzirmos isso, é o que vai acontecer e você sabe.”</p><p>— Unwin vai contar essa história de qualquer jeito.</p><p>— Mas Hagarty não — disse Boutillier. — Porque ele entende. Sem Hagarty, quem vai</p><p>acreditar em Unwin?</p><p>— Bem, nós — disse Harold Gardener com uma amargura que surpreendeu até ele mesmo</p><p>—, mas acho que nós não vamos contar.</p><p>— Ah, me dá um tempo! — rosnou Boutillier, levantando as mãos. — Eles mataram o</p><p>cara! Não só jogaram ele da ponte. Garton tinha um canivete. Mellon foi esfaqueado sete</p><p>vezes, inclusive uma vez no pulmão esquerdo e duas vezes nos testículos. Os ferimentos batem</p><p>com a lâmina. Quatro das costelas dele foram quebradas. Dubay fez isso com o abraço de</p><p>urso. Ele foi mesmo mordido. Havia mordidas nos braços, na bochecha esquerda, no pescoço.</p><p>Acho que foram Unwin e Garton, apesar de só termos conseguido uma correspondência clara,</p><p>e mesmo essa não deve estar clara o bastante pra ser usada no tribunal. Então, tudo bem, um</p><p>pedaço de carne sumiu do sovaco dele, e daí? Um deles gostava mesmo de morder. Deve ter</p><p>ficado até de pau duro quando estava fazendo isso. Aposto em Garton, apesar de jamais</p><p>conseguirmos provar. E o lóbulo da orelha de Mellon sumiu.</p><p>Boutillier parou e olhou para Harold com raiva.</p><p>— Se permitirmos essa história de palhaço, nunca vamos conseguir mandar prender os</p><p>três. Você quer isso?</p><p>— Não, já falei.</p><p>— O cara era fruta, mas não estava machucando ninguém — disse Boutillier. — E então,</p><p>do nada, aparecem esses três babacas de botas de motoqueiro e roubam a vida dele. Vou</p><p>colocar os três na cadeia, meu amigo, e se eu souber que os cuzinhos apertados deles foram</p><p>arrombados em Thomaston, vou mandar cartões dizendo que espero que quem fez isso tenha</p><p>aids.</p><p>Muito ardoroso, pensou Gardener. E as condenações também vão ficar muito bem no seu</p><p>registro quando você concorrer à vaga principal em dois anos.</p><p>Mas ele foi embora sem dizer mais nada, porque também queria ver os três presos.</p><p>18</p><p>John Webber Garton foi condenado por homicídio</p><p>culposo em primeiro grau e sentenciado a dez a</p><p>vinte anos na Prisão Estadual de Thomaston.</p><p>Steven Bishoff Dubay foi condenado por homicídio culposo em primeiro grau e</p><p>sentenciado a 15 anos na Prisão Estadual de Shawshank.</p><p>Christopher Philip Unwin foi julgado separadamente como menor e condenado por</p><p>homicídio culposo em segundo grau. Foi sentenciado a seis meses no Instituto de Treinamento</p><p>para Garotos de South Windham, com liberdade condicional.</p><p>Na época em que este texto é escrito, as três sentenças estão em recurso; Garton e Dubay</p><p>podem ser vistos em qualquer dia olhando garotas ou jogando moedas no Parque Bassey, não</p><p>longe de onde o corpo desfigurado de Mellon foi encontrado flutuando contra um dos pilares</p><p>da ponte da rua Main.</p><p>Don Hagarty e Chris Unwin saíram da cidade.</p><p>No julgamento principal, o de Garton e Dubay, ninguém mencionou um palhaço.</p><p>Capítulo 3</p><p>Seis telefonemas (1985)</p><p>1</p><p>Stanley Uris toma um banho</p><p>Patricia Uris contou mais tarde para a mãe que</p><p>devia ter percebido que alguma coisa estava</p><p>errada. Ela devia ter percebido porque Stanley</p><p>nunca tomava banho de banheira no começo da</p><p>noite. Tomava banho de chuveiro todas as manhãs</p><p>e às vezes ficava na banheira tarde da noite (com</p><p>uma revista em uma das mãos e uma cerveja</p><p>gelada na outra), mas banhos de banheira às 19h</p><p>não eram do estilo dele.</p><p>E havia a coisa com os livros. Devia tê-lo alegrado; mas, de alguma forma obscura que ela</p><p>não entendia, pareceu tê-lo aborrecido e deprimido. Cerca de três meses antes daquela noite</p><p>terrível, Stanley descobriu que um amigo de</p><p>infância dele tinha virado escritor. Não escritor</p><p>de verdade, contou Patricia para a mãe, mas romancista. O nome nos livros era William</p><p>Denbrough, mas Stanley às vezes o chamava de Bill Gago. Ele leu quase todos os livros do</p><p>sujeito; na verdade, estava lendo o último na noite do banho, a noite de 28 de maio de 1985.</p><p>Patty mesma pegara para ler um dos primeiros, por pura curiosidade. Acabou parando depois</p><p>de apenas três capítulos.</p><p>Não era apenas um romance, disse ela para a mãe mais tarde; era um livrodeterror. Ela</p><p>falou dessa maneira, como se fosse uma palavra só, como teria dito livrodesexo. Patty era uma</p><p>mulher doce e gentil, mas não muito articulada. Ela queria contar à mãe o quanto aquele livro</p><p>a assustara e por que a incomodara, mas não conseguiu.</p><p>— Era cheio de monstros — disse ela. — Cheio de monstros atrás de criancinhas. Havia</p><p>mortes e… não sei… sentimentos ruins e dor. Coisas assim. — Na verdade, ela o achou quase</p><p>pornográfico; essa era a palavra que ficava escapando dela, provavelmente porque ela nunca a</p><p>falou em toda a vida, embora soubesse o que significava. — Mas Stan parecia ter</p><p>redescoberto um dos amiguinhos de infância… Ele falou em escrever pra ele, mas eu sabia</p><p>que ele não ia… Eu sabia que aquelas histórias o faziam se sentir mal também… e… e…</p><p>E então, Patty Uris começou a chorar.</p><p>Naquela noite, faltando aproximadamente seis meses para completar 28 anos daquele dia</p><p>em 1957 quando George Denbrough conheceu Pennywise, o Palhaço, Stanley e Patty estavam</p><p>sentados na sala de TV da casa em que moravam em um subúrbio de Atlanta. A TV estava</p><p>ligada. Patty estava sentada em um sofá de dois lugares na frente dela, dividindo a atenção</p><p>entre a costura e seu game show favorito, Family Feud. Ela simplesmente amava Richard</p><p>Dawson e achava o relógio de bolso que ele usava incrivelmente sexy, apesar de nada no</p><p>mundo ser capaz de arrancar essa confissão dela. Ela também gostava do programa porque</p><p>quase sempre sabia as respostas mais populares (não havia respostas certas em Family Feud,</p><p>não exatamente; só as mais populares). Ela uma vez perguntou a Stan por que as que pareciam</p><p>tão fáceis para ela costumavam ser tão difíceis para as famílias no programa.</p><p>— Deve ser bem mais difícil quando você está lá debaixo daquelas luzes — respondera</p><p>Stanley, e pareceu a ela que uma sombra cruzou o rosto dele. — Tudo fica bem mais difícil</p><p>quando é de verdade. É aí que você engasga. Quando é de verdade.</p><p>Devia ser bem verdade, decidiu ela. Stanley tinha percepções precisas sobre a natureza</p><p>humana às vezes. Bem mais precisas, refletiu ela, do que seu velho amigo William Denbrough,</p><p>que ficou rico escrevendo um bando de livros de terror que apelavam aos instintos mais</p><p>primitivos das pessoas.</p><p>Não que os Uris estivessem mal de vida! O subúrbio onde eles moravam era bom, e a casa</p><p>que compraram por 87 mil dólares em 1979 provavelmente valeria 165 mil com facilidade.</p><p>Não que ela quisesse vender, mas era bom saber coisas assim. Ela às vezes voltava do Fox</p><p>Run Mall de Volvo (Stanley tinha um Mercedes a diesel, e para provocá-lo, ela chamava de</p><p>Sedanley) e via a casa, posicionada agradavelmente atrás de uma cerca baixa de teixos, e</p><p>pensava: Quem mora aí? Ah, sou eu! A sra. Stanley Uris mora aí! Não era um pensamento</p><p>completamente feliz; misturado a ele havia um orgulho tão feroz que às vezes a deixava meio</p><p>enjoada. Antigamente, sabe, houve uma garota solitária de 18 anos chamada Patricia Blum que</p><p>não pôde entrar na festa depois da formatura que aconteceu no country clube na cidade de</p><p>Glointon, Nova York. A entrada foi negada porque o sobrenome dela rimava com pum. Essa</p><p>era ela, só uma judiazinha magrela no ano de 1967, e uma discriminação assim era contra a</p><p>lei, é claro, ha-ha, muito engraçado, e além do mais, era passado agora. Mas para uma parte</p><p>dela, nunca seria passado. Parte dela sempre estaria voltando para o carro com Michael</p><p>Rosenblatt, ouvindo o cascalho debaixo dos saltos e dos sapatos sociais alugados dele, para o</p><p>carro do pai dele, que Michael pegara emprestado para aquela noite e que passara a tarde</p><p>encerando. Parte dela sempre estaria andando ao lado de Michael com o paletó branco</p><p>alugado. Como ele brilhava sob a noite suave de primavera! Ela estava usando um vestido de</p><p>noite verde-claro que a mãe declarou que a fazia parecer uma sereia, e a ideia de uma sereia</p><p>judia era bem engraçada, ha-ha. Eles andaram com as cabeças erguidas e ela não chorou, não</p><p>naquele momento, mas entendera que eles não estavam andando de volta, não, não de verdade;</p><p>o que eles estavam fazendo era escapar, que rima com enojar, os dois se sentindo mais judeus</p><p>do que jamais sentiram na vida, sentindo-se como penhoristas, como passageiros de trem de</p><p>carga, sentindo-se oleosos, de narizes longos, de pele amarelada; sentindo-se judeuzinhos mão</p><p>de vaca; querendo sentir raiva e não conseguindo. A raiva só surgiu depois, quando não</p><p>importava. Naquele momento, ela só conseguiu sentir vergonha, só conseguiu sofrer. E então,</p><p>alguém rira. Uma gargalhada aguda e descontrolada como notas rápidas em um piano, e no</p><p>carro ela conseguiu chorar, ah, pode apostar, aqui está a sereia judia cujo nome rima com pum</p><p>chorando como louca. Mike Rosenblatt colocara a mão desajeitada e consoladora na nuca dela</p><p>e ela se afastou, sentindo vergonha, sentindo-se suja, sentindo-se judia.</p><p>A casa posicionada com tanto bom gosto atrás da cerca viva melhorou isso… mas não</p><p>completamente. A dor e a vergonha ainda estavam lá, e nem ser aceita neste bairro silencioso</p><p>e rico conseguiu fazer a infinita caminhada com o som de pedras debaixo dos sapatos parar de</p><p>acontecer. Nem o fato de eles serem membros deste country clube, onde o maître sempre os</p><p>cumprimentava com um respeitoso “Boa noite, sr. e sra. Uris”. Ela voltava para casa,</p><p>aninhada no Volvo 1984, e olhava para a casa posicionada no gramado verde, e com</p><p>frequência (frequência demais, ela achava) pensava naquela risada aguda. E torcia para que a</p><p>garota que rira estivesse morando em uma casa de loteamento de merda com um marido goy</p><p>que batesse nela, que tivesse ficado grávida três vezes e tido três abortos, que o marido a</p><p>traísse com mulheres com doenças, que ela tivesse hérnia de disco e pés chatos e cistos na</p><p>língua suja que ri.</p><p>Ela se odiava por esses pensamentos, pensamentos não generosos, e prometia melhorar:</p><p>parar de beber esses coquetéis amargos e cheios de ressentimento. Meses se passariam sem</p><p>ela ter esses pensamentos. Ela pensava: Talvez finalmente tenha ficado para trás. Não sou</p><p>mais aquela garota de 18 anos. Sou uma mulher de 36; a garota que ouviu o interminável</p><p>clique das pedras da entrada, a garota que se afastou da mão de Mike Rosenblatt quando</p><p>ele tentou consolá-la porque era uma mão judia, foi meia vida atrás. Aquela sereinha boba</p><p>está morta. Posso esquecê-la agora e ser eu mesma. Certo. Bom. Ótimo. Mas então ela</p><p>estaria em outro lugar, no supermercado, talvez, e ouvia uma risada aguda repentina no</p><p>corredor ao lado e suas costas ficavam arrepiadas, os mamilos ficavam duros e doloridos, as</p><p>mãos apertavam a barra do carrinho de compras ou uma à outra, e ela pensava: Alguém</p><p>acabou de contar pra alguém que sou judia, que não sou nada além de uma nariguda mão</p><p>de vaca, que Stanley não é nada além de um vagabundo mão de vaca, ele é contador, claro,</p><p>judeus são bons com números, deixamos entrarem no country clube, tivemos que deixar, foi</p><p>em 1981, quando aquele ginecologista narigudo judeu ganhou o processo, mas rimos deles,</p><p>rimos e rimos e rimos. Ou ela apenas ouvia um clique fantasma e o barulho de cascalho e</p><p>pensava: Sereia! Sereia!</p><p>Aí o ódio e a vergonha voltavam com tudo como uma enxaqueca, e ela entrava em</p><p>desespero não apenas por ela mesma, mas por toda raça humana. Lobisomens. O livro de</p><p>Denbrough, o que ela tentou ler e largou, era sobre lobisomens. Lobisomens, porra. O que um</p><p>cara assim sabia sobre lobisomens?</p><p>Mas a maior parte do tempo ela se sentia melhor, sentia que estava melhor. Ela amava o</p><p>marido, amava a casa e costumava conseguir amar a vida e a si mesma. As coisas estavam</p><p>boas.</p><p>Não foram sempre assim, é claro. E era possível? Quando ela aceitou o anel de noivado</p><p>de Stanley, os pais ficaram zangados e infelizes. Ela o conhecera em uma festa de irmandade</p><p>da faculdade. Ele foi da New York State University, onde tinha bolsa de estudos, até a</p><p>faculdade dela. Foram apresentados por um amigo em comum, e quando a noite terminou, ela</p><p>desconfiava que o amava. Nas férias de meio de semestre, ela tinha certeza. Quando a</p><p>primavera chegou e Stanley ofereceu a ela um pequeno anel de diamante com uma margarida</p><p>enfiada no meio, ela aceitou.</p><p>No final, apesar da oposição inicial, os pais acabaram aceitando. Não havia muito mais</p><p>que eles pudessem fazer, embora Stanley Uris fosse se aventurar em um mercado de trabalho</p><p>saturado de jovens contadores — e quando ele entrasse naquela selva, faria isso sem finanças</p><p>familiares para impedi-lo, e com a única filha deles como a refém dele para a fortuna. Mas</p><p>Patty tinha 22 anos, já uma mulher, e em pouco tempo se formaria na faculdade.</p><p>— Vou sustentar aquele filho da puta de quatro olhos pro resto da minha vida — Patty</p><p>ouvira o pai dizer uma noite. A mãe e o pai tinham saído para jantar, e o pai tinha bebido um</p><p>pouco demais.</p><p>— Shh, ela vai te ouvir — disse Ruth Blum.</p><p>Patty ficou acordada naquela noite até bem depois da meia-noite, com olhos secos,</p><p>alternadamente com calor e com frio, odiando os dois. Passou os dois anos seguintes tentando</p><p>se livrar desse ódio; já havia muito ódio dentro dela. Às vezes, quando se olhava no espelho,</p><p>ela conseguia ver as coisas que o ódio estava fazendo com o rosto dela, as linhas finas que</p><p>estava criando lá. Aquela foi uma batalha que ela venceu. Stanley a ajudou.</p><p>Os pais dele ficaram igualmente preocupados com o casamento. É claro que eles não</p><p>acreditavam que Stanley estava destinado a uma vida de miséria e pobreza, mas achavam que</p><p>“os jovens estavam sendo apressados”. Donald Uris e Andrea Bertoly tinham se casado com</p><p>vinte e poucos anos, mas pareciam ter se esquecido do fato.</p><p>Só Stanley pareceu seguro, confiante no futuro, despreocupado com as armadilhas que os</p><p>pais deles espalharam ao redor “dos jovens”. E no final, foi a confiança dele, e não os medos</p><p>dos pais, que se justificou. Em julho de 1972, com a tinta ainda secando no diploma dela,</p><p>Patty conseguiu um emprego para ensinar taquigrafia e inglês comercial em Traynor, uma</p><p>pequena cidade 65 quilômetros ao sul de Atlanta. Quando ela pensava em como encontrou</p><p>aquele emprego, sempre achava um pouco… bem, misterioso. Ela tinha feito uma lista de</p><p>quarenta empregos possíveis a partir de anúncios nos periódicos de professores, depois</p><p>escreveu quarenta cartas em cinco noites, oito em cada noite, pedindo mais informações sobre</p><p>o emprego e um formulário de candidatura para cada um. Vinte e duas respostas indicaram que</p><p>o cargo já tinha sido preenchido. Em outros casos, uma explicação mais detalhada das</p><p>capacidades necessárias deixou claro que ela não podia concorrer; candidatar-se seria apenas</p><p>um desperdício do tempo das duas partes. Ela terminou com 12 possibilidades. Cada uma</p><p>parecia tão provável quanto qualquer outra. Stanley entrou enquanto ela estava confusa lendo</p><p>cada uma e se perguntando se poderia preencher 12 fichas de emprego sem ficar</p><p>completamente doida. Olhou para os papéis espalhados sobre a mesa e bateu com o dedo na</p><p>carta da Traynor Superintendent of Schools, uma carta que não parecia nem mais nem menos</p><p>encorajadora do que qualquer uma das outras.</p><p>— Esta — disse ele.</p><p>Ela ergueu o olhar, assustada pela simples certeza na voz dele.</p><p>— Você sabe alguma coisa sobre a Georgia que eu não sei?</p><p>— Não. A única vez que fui até lá foi no cinema.</p><p>Ela olhou para ele com a sobrancelha erguida.</p><p>— E o vento levou. Vivien Leigh. Clark Gable. “Vou pensar nisso amanhã, pois amanhã é</p><p>um outro dia.” Eu falo com sotaque do sul, Patty?</p><p>— Sim. Do sul do Bronx. Se você não sabe nada sobre a Georgia e nunca foi lá, então por</p><p>que…</p><p>— Porque é o certo.</p><p>— Você não pode saber disso, Stanley.</p><p>— Claro que posso — disse ele com simplicidade. — Eu sei.</p><p>Ao olhar para ele, ela viu que ele não estava brincando; realmente estava falando sério. Ela</p><p>sentiu uma onda de desconforto subir pelas costas.</p><p>— Como você sabe?</p><p>Ele estava sorrindo um pouco. Agora o sorriso falhou, e por um momento ele pareceu</p><p>intrigado. Seus olhos escureceram, como se ele estivesse olhando para dentro, consultando</p><p>algum dispositivo interior que clicava e girava corretamente, mas que, no fundo, ele não</p><p>entendia tanto quanto um homem comum entende como funciona o relógio que carrega no</p><p>pulso.</p><p>— A tartaruga não pôde nos ajudar — disse ele de repente. Ele falou bem claramente. Ela</p><p>ouviu. Aquele olhar para dentro, aquele olhar de reflexão surpresa, ainda estava no rosto dele,</p><p>e começava a assustá-la.</p><p>— Stanley? De que você está falando? Stanley?</p><p>Ele tremeu. Ela estava comendo pêssegos enquanto olhava as fichas, e a mão dele bateu no</p><p>prato, que caiu no chão e quebrou. Os olhos dele pareceram clarear.</p><p>— Ah, merda! Me desculpa.</p><p>— Está tudo bem. Stanley… de que você estava falando?</p><p>— Esqueci — disse ele. — Mas acho que devíamos pensar na Georgia, amorzinho.</p><p>— Mas…</p><p>— Confie em mim — disse ele, então ela confiou.</p><p>A entrevista foi excelente. Ela sabia que ganharia o emprego quando entrou no trem para</p><p>voltar para Nova York. O chefe do departamento de Administração gostou de Patty</p><p>imediatamente, e ela gostou dele; ela quase ouviu o clique. A carta de confirmação chegou</p><p>uma semana depois. O departamento da Traynor Consolidated School podia oferecer a ela</p><p>9.200 dólares e um contrato de experiência.</p><p>— Você vai morrer de fome — disse Herbert Blum quando a filha contou que pretendia</p><p>aceitar o emprego. — E vai morrer de calor enquanto morre de fome.</p><p>— Besteira, Scarlett — disse Stanley quando ela contou a ele o que o pai dissera. Ela ficou</p><p>furiosa, quase chorou, mas agora começou a rir, e Stanley a tomou nos braços.</p><p>Eles passaram calor, mas não passaram fome. Casaram-se no dia 19 de agosto de 1972.</p><p>Patty Uris foi para o leito de casamento ainda virgem. Entrou nua entre os lençóis frios em um</p><p>hotel em Poconos, num estado de espírito turbulento e tempestuoso, com relâmpagos de desejo</p><p>e deliciosa luxúria e nuvens negras de medo. Quando Stanley deitou na cama ao lado dela,</p><p>coberto de músculos e com o pênis como um ponto de exclamação surgindo em meio a pelos</p><p>pubianos castanho-avermelhados, ela sussurrou:</p><p>— Não me machuque, querido.</p><p>— Nunca vou te machucar — disse ele ao tomá-la nos braços, e foi uma promessa que ele</p><p>manteve fielmente até o dia 28 de maio de 1985, a noite do banho de banheira.</p><p>As aulas dela foram bem. Stanley conseguiu um emprego para dirigir um caminhão de</p><p>padaria por cem dólares por semana. Em novembro daquele ano, quando o Traynor Flats</p><p>Shopping Center abriu, ele conseguiu um emprego no escritório da H & R Block lá por 150</p><p>dólares. A renda combinada dos dois era então de 17 mil dólares por ano, e parecia o resgate</p><p>de um rei para eles naqueles dias em que o galão de gás custava 35 centavos e um pão branco</p><p>custava dez centavos a menos do que isso. Em março de 1973, sem estardalhaço nenhum, Patty</p><p>Uris jogou fora as pílulas anticoncepcionais.</p><p>Em 1975, Stanley saiu da H & R Block e foi trabalhar por conta própria. Os pais dos dois</p><p>concordaram que foi uma atitude imprudente. Não que Stanley não devesse trabalhar por conta</p><p>própria, imagine! Mas era cedo demais, todos concordavam, e iria sobrecarregar Patty pelo</p><p>lado financeiro. (“Pelo menos até o zé-ninguém engravidá-la”, disse Herbert Blum para o</p><p>irmão, com ressentimento depois de uma noite bebendo na cozinha, “e então quem vai ter que</p><p>carregar os dois sou eu”.) O consenso de opinião dos pais sobre esse assunto era que um</p><p>homem nem devia pensar em trabalhar por conta própria até ter chegado a uma idade mais</p><p>serena e madura, como, digamos, 78 anos.</p><p>Mais uma vez, Stanley pareceu confiante de uma maneira quase sobrenatural. Era jovem,</p><p>apresentável, inteligente, competente. Fizera contatos ao trabalhar para a Block. Todas essas</p><p>coisas eram sabidas. Mas ele não</p><p>tinha como saber que a Corridor Video (CV), uma pioneira</p><p>no negócio recém-nascido de fitas de vídeo, estava prestes a se estabelecer em uma enorme</p><p>área alugada a menos de 16 quilômetros do subúrbio para onde os Uris acabaram se mudando</p><p>em 1979, nem tinha como saber que a Corridor estaria em busca de uma pesquisa</p><p>independente de marketing em menos de um ano após a ida para Traynor. Mesmo que Stanley</p><p>secretamente soubesse dessa informação, ele não poderia achar que dariam o trabalho para um</p><p>judeu jovem de óculos que também era um maldito ianque, um judeu com sorriso fácil, um</p><p>jeito meio gingado de andar, preferência por jeans com boca de sino nos dias de folga e os</p><p>últimos traços de acne adolescente ainda no rosto. Mas deram. Deram, sim. E parecia que Stan</p><p>sempre soubera.</p><p>O trabalho dele para a CV levou a uma proposta de emprego integral na empresa, com</p><p>salário inicial de 30 mil dólares por ano.</p><p>— E isso é só o começo — contou Stanley para Patty na cama naquela noite. — Vão</p><p>crescer como milho em agosto, querida. Se ninguém explodir o mundo nos próximos dez anos,</p><p>eles vão chegar à grandeza de empresas como Kodak, Sony e RCA.</p><p>— E o que você vai fazer? — perguntou ela, já sabendo a resposta.</p><p>— Vou dizer que é um prazer trabalhar com eles — disse ele e riu; puxou-a para perto e</p><p>beijou-a. Momentos depois, ele subiu em cima dela, e houve clímax, um, dois e três, como</p><p>foguetes iluminados subindo no céu noturno… mas não houve bebê.</p><p>O trabalho dele com a Corridor Video o colocou em contato com alguns dos homens mais</p><p>ricos e poderosos, e os dois ficaram atônitos ao descobrir que esses homens eram quase todos</p><p>legais. Neles, eles encontraram um grande grau de aceitação e gentileza sem preconceitos que</p><p>era quase desconhecido no norte. Patty lembrava-se de Stanley escrever uma vez para casa,</p><p>para a mãe e o pai: Os melhores homens ricos dos Estados Unidos moram em Atlanta,</p><p>Georgia, e vou ajudar a tornar alguns mais ricos; eles vão me fazer mais rico, e ninguém</p><p>vai ser dono de mim, exceto minha esposa, Patricia, e como já sou dono dela, acho que isso</p><p>é bem seguro.</p><p>Quando eles saíram de Traynor, Stanley já tinha empresa própria e empregava seis</p><p>pessoas. Em 1983, a renda deles entrou em território desconhecido, território do qual Patty só</p><p>tinha ouvido rumores. Era a famosa terra dos SEIS DÍGITOS. E tudo aconteceu com a tranquilidade</p><p>casual de calçar um par de chinelos no sábado de manhã. Isso às vezes a assustava. Uma vez,</p><p>ela fez uma piada constrangedora sobre fazer acordos com o diabo. Stanley riu até quase se</p><p>engasgar, mas para ela não pareceu tão engraçado, e ela achava que nunca seria.</p><p>A tartaruga não pôde nos ajudar.</p><p>Às vezes, sem motivo nenhum, ela acordava com esse pensamento na cabeça como se fosse</p><p>o último fragmento de um sonho esquecido, e ela se virava para Stanley, precisando tocar</p><p>nele, precisando ter certeza de que ele ainda estava lá.</p><p>Era uma boa vida: não havia bebedeiras, nem sexo fora do casamento, nem drogas, nem</p><p>tédio, nem discussões amargas sobre o que fazer depois. Só havia uma nuvem. Foi a mãe dela</p><p>quem mencionou primeiro a presença dessa nuvem. Que a mãe dela tenha sido quem</p><p>finalmente fez isso pareceu, em retrospecto, predeterminado. Surgiu como uma pergunta em</p><p>uma das cartas de Ruth Blum. Ela escrevia para Patty uma vez por semana, e aquela carta em</p><p>particular chegou no começo do outono de 1979. Chegou reenviada do antigo endereço de</p><p>Traynor, e Patty a leu na sala de estar cheia de caixas de loja de bebida de onde saía tudo que</p><p>eles tinham, com aparência abandonada, desabrigada e desapropriada.</p><p>De muitas formas, era a tradicional Carta de Ruth Blum vinda de Casa: quatro folhas azuis</p><p>completamente preenchidas, cada uma com o cabeçalho UM BILHETE DE RUTH. A caligrafia dela era</p><p>quase ilegível, e Stanley uma vez reclamou que não conseguia ler uma única palavra que a</p><p>sogra escrevia.</p><p>— Por que você iria querer ler? — respondera Patty.</p><p>Esta estava cheia das novidades tradicionais da mãe; para Ruth Blum, a recordação era um</p><p>delta amplo, que se abria do ponto móvel do agora em um leque cada vez mais largo de</p><p>relacionamentos entrelaçados. Muitas das pessoas sobre quem a mãe escrevia estavam</p><p>começando a desaparecer na memória de Patty como fotos em um álbum velho, mas para Ruth</p><p>todas ainda estavam claras. As preocupações com a saúde delas e a curiosidade sobre as</p><p>várias atitudes nunca pareciam diminuir, e seus prognósticos eram sempre horríveis. O pai</p><p>ainda tinha muitas dores de estômago. Ele tinha certeza de que era apenas indigestão; a ideia</p><p>de que podia ter uma úlcera, escreveu ela, não passaria pela mente dele até ele começar a</p><p>tossir sangue, e talvez nem assim. Você conhece seu pai, querida: ele trabalha como uma</p><p>mula, e às vezes também acha que é uma. Que Deus me perdoe por dizer isso. Randi</p><p>Harlengen ligou as trompas, tiraram cistos do tamanho de bolas de golfe dos ovários dela, mas</p><p>nenhum era maligno, graças a Deus, mas 27 cistos ovarianos podiam matar? Era a água de</p><p>Nova York, ela tinha certeza. O ar da cidade também era sujo, mas ela estava convencida de</p><p>que era a água que fazia isso com as pessoas depois de um tempo. Causava depósitos dentro</p><p>da pessoa. Ela duvidava que Patty soubesse com que frequência ela agradecia a Deus por</p><p>“vocês jovens” estarem no interior, onde o ar e a água, particularmente a água, eram mais</p><p>saudáveis (para Ruth, todo o sul, incluindo Atlanta e Birmingham, era interior). Tia Margaret</p><p>estava brigando com a companhia de luz de novo. Stella Flanagan tinha se casado de novo,</p><p>algumas pessoas nunca aprendiam. Richie Huber fora despedido outra vez.</p><p>E no meio dessa conversa trivial e frequentemente ferina, no meio de um parágrafo, sem</p><p>relação com nada dito antes ou que viesse depois, Ruth Blum casualmente fez a Temida</p><p>Pergunta: “Quando você e Stan vão nos tornar avós? Estamos prontos para mimar a criança. E</p><p>caso você não tenha reparado, Patsy, não estamos ficando mais jovens.” E ela seguiu para a</p><p>garota Bruckner, do quarteirão, que tinha sido expulsa da faculdade porque não estava usando</p><p>sutiã com uma blusa bem transparente.</p><p>Sentindo-se para baixo e com saudade da antiga casa em Traynor, insegura e com muito</p><p>medo do que podia haver no futuro, Patty entrou no que se tornaria o quarto deles e se deitou</p><p>sobre o colchão (a base da cama box ainda estava na garagem, e o colchão, sozinho no piso de</p><p>carpete, parecia um artefato jogado em uma estranha praia amarela). Ela apoiou a cabeça nos</p><p>braços e ficou deitada chorando por quase 20 minutos. Ela achava que o choro estava a</p><p>caminho de qualquer jeito. A carta da mãe apenas trouxe o choro mais cedo, assim como a</p><p>poeira acelera as cócegas no nariz e provoca o espirro.</p><p>Stanley queria filhos. Ela queria filhos. Eles eram tão compatíveis nesse aspecto quanto na</p><p>apreciação aos filmes de Woody Allen, na frequência mediana à sinagoga, nas inclinações</p><p>políticas, no desprezo à maconha e cem outras coisas, grandes e pequenas. Havia um quarto a</p><p>mais na casa de Traynor, que eles dividiram igualmente ao meio. No lado esquerdo, ele tinha</p><p>uma mesa de trabalho e uma poltrona de leitura; no lado direito, ela tinha uma máquina de</p><p>costura e uma mesa em que montava quebra-cabeças. Havia um acordo tão forte entre eles em</p><p>relação àquele quarto que eles raramente falavam; apenas existia, como os narizes deles ou as</p><p>alianças nas mãos esquerdas. Algum dia aquele quarto seria de Andy ou de Jenny. Mas onde</p><p>estava a criança? A máquina de costura e as cestas de tecido e a mesa de quebra-cabeça e a</p><p>mesa de trabalho e a poltrona permaneceram no mesmo lugar, parecendo a cada mês se</p><p>solidificarem na posição que ocupavam no quarto e a estabelecerem a legitimidade. Era o que</p><p>ela pensava, embora nunca pudesse cristalizar o pensamento; como a palavra pornográfico,</p><p>era um conceito que dançava além da capacidade dela de quantificar. Mas ela se lembrava de</p><p>uma vez em que ficou menstruada, abriu o armário debaixo da pia do banheiro e pegou um</p><p>absorvente; ela se lembrava de olhar para a caixa de absorventes Stayfree e pensar que a</p><p>caixa parecia quase arrogante,</p><p>parecia quase dizer: Oi, Patty! Nós somos seus filhos. Somos</p><p>os únicos filhos que você vai ter, e estamos com fome. Nos alimente. Nos alimente de</p><p>sangue.</p><p>Em 1976, três anos depois que ela jogou fora a última cartela de comprimidos Ovral, eles</p><p>foram a um médico chamado Harkavay em Atlanta.</p><p>— Queremos saber se tem alguma coisa errada — disse Stanley —, e queremos saber se</p><p>podemos fazer alguma coisa se houver.</p><p>Eles fizeram exames, que mostraram que o esperma de Stanley era saudável, que os óvulos</p><p>de Patty eram férteis, que todos os canais que deviam estar abertos estavam abertos.</p><p>Harkavay, que não usava aliança e tinha o rosto aberto, agradável e ruborizado de um</p><p>universitário que acabou de voltar de férias esquiando no Colorado, disse para eles que talvez</p><p>fosse apenas nervosismo. Disse que problemas assim não eram incomuns. Disse que parecia</p><p>haver uma correlação psicológica em casos assim que era de certas formas similar à</p><p>impotência sexual: quanto mais você queria, menos conseguia. Eles teriam que relaxar.</p><p>Tinham que, se pudessem, esquecer sobre procriação quando faziam sexo.</p><p>Stan estava rabugento no caminho para casa. Patty perguntou por quê.</p><p>— Nunca faço isso — disse ele.</p><p>— O quê?</p><p>— Penso em procriação durante.</p><p>Ela começou a rir, apesar de estar se sentindo um tanto solitária e assustada. E, naquela</p><p>noite, deitados na cama, bem depois de ela achar que Stanley devia estar dormindo, ele a</p><p>assustou ao falar no escuro. A voz dele estava sem emoção, mas também engasgada de</p><p>lágrimas.</p><p>— Sou eu — disse ele. — É culpa minha.</p><p>Ela rolou para perto dele, tateando à sua procura, e o segurou.</p><p>— Não seja burro — disse ela.</p><p>Mas seu coração estava batendo rápido, rápido demais. Não era só por ele a ter assustado;</p><p>parecia que ele tinha olhado a mente dela e lido uma convicção secreta que ela carregava lá,</p><p>mas que não sabia até aquele minuto. Sem motivo nenhum, ela sentia, sabia que ele estava</p><p>certo. Tinha alguma coisa errada, e não era ela. Era ele. Alguma coisa nele.</p><p>— Não seja bobo — sussurrou ela com firmeza contra o ombro dele. Ele estava suando um</p><p>pouco, e ela ficou repentinamente ciente de que ele estava com medo. O medo saía dele em</p><p>ondas frias; estar deitada nua com ele de repente foi como estar deitada nua na frente de uma</p><p>geladeira aberta.</p><p>— Não sou bobo e não estou sendo burro — disse ele com aquela mesma voz, que era</p><p>simultaneamente fria e tomada de emoção — e você sabe. Sou eu. Mas não sei por quê.</p><p>— Você não pode saber uma coisa assim. — A voz dela estava dura, repreensiva, a voz da</p><p>mãe dela quando estava com medo. E enquanto o repreendia, um tremor percorreu o corpo</p><p>dela, torcendo-o como um chicote. Stanley sentiu, e seus braços a apertaram.</p><p>— Às vezes — disse ele —, às vezes eu penso que sei por quê. Às vezes tenho um sonho,</p><p>um sonho ruim, e acordo e penso: “Agora eu sei. Sei o que está errado.” Não só sobre você</p><p>não engravidar, sobre tudo. Tudo que há de errado na minha vida.</p><p>— Stanley, não tem nada de errado na sua vida!</p><p>— Não estou falando de dentro — disse ele. — De dentro, está ótima. Estou falando de</p><p>fora. Uma coisa que devia ter acabado e não acabou. Acordo desses sonhos e penso: “Toda</p><p>minha agradável vida não foi nada além do olho de uma tempestade que não compreendo.”</p><p>Sinto medo. Mas então apenas… desaparece. Como sonhos desaparecem.</p><p>Ela sabia que ele às vezes tinha sonhos agitados. Em algumas ocasiões, ele a acordara se</p><p>debatendo e gemendo. Devia ter havido outras vezes em que ela continuou a dormir durante os</p><p>interlúdios sombrios dele. Sempre que ela se dirigia a ele, perguntava, ele dizia a mesma</p><p>coisa: Não consigo lembrar. E depois ele pegava os cigarros e fumava sentado na cama,</p><p>esperando que o resíduo do sonho saísse pelos poros como suor ruim.</p><p>Nada de filhos. Na noite do dia 28 de maio de 1985, a noite do banho de banheira, os</p><p>sogros dos dois ainda estavam esperando para serem avós. O quarto extra ainda era um quarto</p><p>extra; os absorventes maxi e mini ainda ocupavam os lugares de sempre no armário debaixo</p><p>da pia do banheiro; o chico ainda fazia sua visita mensal. A mãe dela, que estava ocupada</p><p>demais com suas próprias coisas, mas não completamente alheia à dor da filha, parou de</p><p>perguntar nas cartas e quando Stanley e Patty faziam as viagens bianuais para Nova York. Não</p><p>havia mais comentários engraçados sobre eles estarem ou não tomando vitamina E. Stanley</p><p>também tinha parado de falar em bebês, mas às vezes, quando ele não sabia que ela estava</p><p>olhando, ela via uma sombra no rosto dele. Alguma sombra. Como se ele estivesse tentando</p><p>desesperadamente se lembrar de alguma coisa.</p><p>Fora essa única nuvem, a vida deles era agradável o bastante até o telefone tocar no meio</p><p>de Family Feud na noite do dia 28 de maio. Patty estava com seis das camisas de Stan, duas</p><p>blusas dela, a caixa de costura e a caixa de botões; Stan estava com o novo livro de William</p><p>Denbrough na mão, que nem tinha saído ainda em brochura. Havia um animal rosnando na</p><p>capa desse livro. Atrás, havia um homem careca de óculos.</p><p>Stan estava sentado perto do telefone. Ele atendeu e disse:</p><p>— Alô. Residência da família Uris.</p><p>Ele ouviu, e um franzido surgiu entre as duas sobrancelhas.</p><p>— Quem você falou?</p><p>Patty sentiu um momento de medo. Mais tarde, a vergonha a faria mentir e dizer para os</p><p>pais que ela sabia que alguma coisa estava errada assim que o telefone tocou, mas na</p><p>realidade só houve aquele instante, aquele rápido desvio de olhar da costura. Mas talvez não</p><p>houvesse mal nisso. Talvez os dois desconfiassem que alguma coisa aconteceria bem antes</p><p>daquele telefonema, uma coisa que não combinava com a bela casa localizada atrás da cerca</p><p>viva baixa, uma coisa tão natural que não precisava de muito reconhecimento… Aquele único</p><p>instante intenso de medo, como o furo provocado por um furador de gelo rapidamente</p><p>removido, foi o bastante.</p><p>É mamãe?, disse ela sem emitir som algum naquele instante, pensando que talvez o pai, dez</p><p>quilos acima do peso e com tendência ao que ele chamava de “dor de barriga” desde os</p><p>quarenta e poucos anos, tivesse tido um ataque cardíaco.</p><p>Stan balançou a cabeça para ela e sorriu um pouco por alguma coisa que a voz ao telefone</p><p>estava dizendo.</p><p>— Você… você! Nossa, que loucura! Mike! Como voc…?</p><p>Ele ficou em silêncio de novo, escutando. Quando o sorriso sumiu, ela reconheceu (ou</p><p>pensou ter reconhecido) a expressão analítica dele, a que dizia que alguém estava expondo um</p><p>problema ou explicando uma mudança repentina em uma situação corrente ou contando para</p><p>ele uma coisa estranha e interessante. Essa última situação devia ser o caso, concluiu ela. Um</p><p>novo cliente? Um velho amigo? Talvez. Ela voltou a atenção para a TV, onde uma mulher</p><p>estava passando os braços ao redor do pescoço de Richard Dawson e beijando-o loucamente.</p><p>Ela achava que Richard Dawson devia ser beijado ainda mais do que a pedra da eloquência.</p><p>Ela também achava que não se importaria de beijá-lo.</p><p>Quando começou a procurar um botão preto que combinasse com os da camisa jeans de</p><p>Stanley, Patty ficou vagamente ciente de que a conversa estava percorrendo um caminho mais</p><p>tranquilo: Stanley resmungava ocasionalmente, e uma vez perguntou:</p><p>— Tem certeza, Mike?</p><p>Por fim, após uma pausa bastante longa, ele disse:</p><p>— Tudo bem, eu entendo. Sim, eu… Sim. Sim, tudo. Entendi. Eu… O quê? Não, não posso</p><p>prometer isso, mas vou pensar com carinho. Você sabe aquela… Ah? É mesmo? Bem, pode</p><p>apostar! Claro que sim. Sim… claro… Obrigado. Sim. Tchau.</p><p>Ele desligou.</p><p>Patty olhou para ele e viu-o observando o nada acima da televisão. No programa, a plateia</p><p>estava aplaudindo a família Ryan, que tinha acabado de marcar 280 pontos, a maior parte</p><p>deles adivinhando que a pesquisa com a plateia daria a resposta “matemática” para a pergunta</p><p>“Que matéria as pessoas vão dizer que o Junior mais odeia na escola?”. Os Ryan estavam</p><p>dando pulos e gritando com alegria. Mas Stanley estava de testa franzida. Mais tarde ela</p><p>contaria aos pais que achou que o rosto de Stanley estava meio sem cor, e achou mesmo, mas</p><p>deixou de contar a eles que não deu atenção na hora</p><p>e atribuiu ao abajur com cúpula de vidro</p><p>verde.</p><p>— Quem era, Stan?</p><p>— Hummmm?</p><p>Ele olhou para ela. Ela achou que o olhar no rosto dele era de abstração delicada, talvez</p><p>misturada com uma leve irritação. Só mais tarde, ao repassar a cena na mente uma vez atrás da</p><p>outra, ela começou a acreditar que era a expressão de um homem que estava metodicamente se</p><p>desligando da realidade, um fio de cada vez. O rosto de um homem que estava saindo da cruz</p><p>para encarar a espada.</p><p>— Quem era ao telefone?</p><p>— Ninguém — disse ele. — Ninguém, de verdade. Acho que vou tomar um banho de</p><p>banheira. — Ele ficou de pé.</p><p>— Às sete da noite?</p><p>Ele não respondeu, apenas saiu da sala. Ela podia ter perguntado se alguma coisa estava</p><p>errada, podia até ter ido atrás dele e perguntado se ele estava com dor de barriga; ele era</p><p>desinibido sexualmente, mas era estranhamente formal com outras coisas, e não seria nada</p><p>estranho para ele dizer que ia tomar um banho quando na verdade só precisava eliminar algum</p><p>alimento que não lhe caiu bem. Mas agora uma nova família, os Piscapo, estava sendo</p><p>apresentada, e Patty sabia que Richard Dawson encontraria alguma coisa engraçada para dizer</p><p>sobre aquele nome, e além do mais, ela estava tendo uma tremenda dificuldade para encontrar</p><p>um botão preto, apesar de saber que havia um monte na caixa. Eles se escondiam, é claro; era</p><p>a única explicação…</p><p>Assim, ela o deixou ir e não pensou nele de novo até os créditos, quando ergueu o olhar e</p><p>viu a cadeira dele vazia. Ela tinha ouvido a água caindo na banheira do andar de cima e a</p><p>ouviu sendo desligada cinco ou dez minutos depois… mas agora, ela se deu conta de que não</p><p>ouviu a porta da geladeira sendo aberta e fechada, e isso significava que ele estava lá em cima</p><p>sem uma lata de cerveja. Alguém tinha ligado e jogado um problema enorme no colo dele, e</p><p>ela ofereceu alguma palavra de solidariedade? Não. Tentou fazer com que ele conversasse um</p><p>pouco sobre o assunto? Não. Reparou que havia alguma coisa errada? Pela terceira vez, não.</p><p>Tudo por causa do programa de TV idiota; ela nem podia botar a culpa nos botões, pois eles</p><p>eram apenas uma desculpa.</p><p>Certo. Ela levaria uma lata de Dixie para ele e se sentaria ao lado da beirada da banheira,</p><p>esfregaria as costas dele, bancaria a gueixa e lavaria o cabelo dele se ele quisesse, e</p><p>descobriria qual era o problema… ou quem era o problema.</p><p>Ela pegou a lata de cerveja na geladeira e subiu. A primeira sensação de inquietação</p><p>verdadeira surgiu quando ela viu que a porta do banheiro estava fechada. Não apenas</p><p>encostada, mas bem fechada. Stanley nunca fechava a porta quando estava tomando banho de</p><p>banheira. Era uma espécie de piada entre eles: a porta fechada significava que ele estava</p><p>fazendo uma coisa que a mãe ensinara, a porta aberta significava que ele não teria problema</p><p>em fazer uma coisa cujo ensinamento a mãe tinha apropriadamente deixado para outras.</p><p>Patty bateu na porta com as unhas, repentinamente ciente, ciente demais, do estalo</p><p>reptiliano que elas faziam na madeira. E bater na porta do banheiro como uma estranha era</p><p>uma coisa que ela nunca tinha feito antes na vida de casada, nem aqui, nem em nenhuma outra</p><p>porta da casa.</p><p>A inquietação ficou de repente mais forte, e ela pensou no lago Carson, onde costumava</p><p>nadar quando criança. No dia 1º de agosto, o lago ficava quente como uma banheira… mas</p><p>então você encostava em um bolsão frio que provocava um arrepio de surpresa e deleite. Um</p><p>minuto, você estava quente; no momento seguinte, parecia que a temperatura tinha despencado</p><p>dez graus abaixo dos seus quadris. Exceto pelo deleite, era assim que ela se sentia agora,</p><p>como se tivesse atingido um bolsão frio. Só que esse bolsão frio não ficava abaixo dos</p><p>quadris dela, resfriando as longas pernas de adolescente nas profundezas negras do lago</p><p>Carson.</p><p>Essa ficava ao redor do coração.</p><p>— Stanley? Stan?</p><p>Desta vez, ela fez mais do que bater com as unhas. Bateu com os nós dos dedos. Quando</p><p>não houve resposta, ela bateu com o punho.</p><p>— Stanley?</p><p>O coração. O coração dela não estava mais no peito. Estava batendo na garganta,</p><p>dificultando a respiração.</p><p>— Stanley!</p><p>No silêncio que seguiu o grito dela (e só o som dela gritando lá em cima, a menos de 10</p><p>metros do local onde colocava a cabeça para dormir todas as noites, a assustava ainda mais),</p><p>ela ouviu um som que despertou o pânico das profundezas da mente como um hóspede não</p><p>desejado. Um som tão pequeno, na verdade. Era só o som de água pingando. Plink… pausa.</p><p>Plink… pausa. Plink… pausa. Plink…</p><p>Ela conseguia ver as gotas se formando na boca da torneira, ficando pesadas e gordas,</p><p>engravidando e caindo: plink.</p><p>Apenas esse som. Nenhum outro. E ela teve uma certeza repentina e terrível de que tinha</p><p>sido Stanley, não o pai dela, a ser fulminado com um ataque cardíaco esta noite.</p><p>Com um gemido, ela segurou a maçaneta de vidro entalhado e a girou. Mas a porta não se</p><p>mexeu: estava trancada. E de repente três nuncas ocorreram a Patty Uris em sucessão: Stanley</p><p>nunca tomava banho de banheira no começo da noite, Stanley nunca fechava a porta a não ser</p><p>que estivesse usando o vaso sanitário e Stanley nunca trancara a porta para ela não entrar.</p><p>Seria possível, perguntou-se ela loucamente, se preparar para um ataque cardíaco?</p><p>Patty passou a língua nos lábios (produziu um som na cabeça dela como lixa deslizando em</p><p>madeira) e chamou o nome dele de novo. Ainda não houve resposta além dos pingos regulares</p><p>e deliberados da torneira. Ela olhou para baixo e viu que ainda estava com a lata de cerveja</p><p>Dixie em uma das mãos. Olhou para ela com estupidez, com o coração disparado como um</p><p>coelho na garganta; olhou para ela como se nunca tivesse visto uma lata de cerveja na vida</p><p>antes daquele minuto. E realmente parecia que ela nunca tinha visto, ou pelo menos nunca uma</p><p>assim, porque, quando ela piscou, seus olhos a transformaram em um fone, tão preto e</p><p>ameaçador como uma cobra.</p><p>— Posso ajudar, senhora? Algum problema? — disse a cobra para ela. Patty bateu o</p><p>telefone e deu um passo para trás, esfregando a mão que o segurava. Ela olhou ao redor e viu</p><p>que estava de volta à sala de TV, e entendeu que o pânico que surgiu na frente da mente dela</p><p>como um ladrão subindo silenciosamente um lance de escadas a tinha dominado. Agora ela</p><p>conseguia se lembrar de ter derrubado a lata de cerveja em frente à porta do banheiro e</p><p>descido a escada correndo, pensando vagamente: Isso tudo é um engano de algum tipo e</p><p>vamos rir depois. Ele encheu a banheira e lembrou que não tinha cigarros e saiu pra</p><p>comprar antes de tirar a roupa…</p><p>Sim. Só que ele já tinha trancado a porta do banheiro por dentro e, como era trabalho</p><p>demais destrancar, apenas abriu a janela acima da banheira e desceu pela lateral da casa como</p><p>uma mosca descendo uma parede. Sim, claro, sim…</p><p>O pânico estava crescendo na mente dela de novo. Era como um café preto e amargo</p><p>ameaçando transbordar pela boca de uma xícara. Ela fechou os olhos e lutou contra. Ficou de</p><p>pé, perfeitamente imóvel, como uma estátua pálida com pulsação batendo na garganta.</p><p>Agora ela conseguia se lembrar de correr de volta até lá, com os pés batendo nos degraus,</p><p>de correr para o telefone, ah, sim, claro, mas para quem ela tinha pretendido ligar?</p><p>Loucamente, ela pensou: Eu ia ligar pra tartaruga, mas a tartaruga não pôde nos ajudar.</p><p>Não importava, de qualquer forma. Ela tinha chegado até o zero e devia ter dito alguma</p><p>coisa não muito comum, porque a telefonista perguntou se ela tinha algum problema. Ela tinha,</p><p>sim, mas como se contava para a voz sem rosto que Stanley tinha se trancado no banheiro e</p><p>não atendia, que o som regular da água pingando na banheira estava matando o coração dela?</p><p>Alguém tinha que ajudá-la. Alguém…</p><p>Ela colocou as costas da mão na boca e mordeu deliberadamente. Tentou pensar, tentou se</p><p>forçar a pensar.</p><p>A chave extra. A chave extra no armário da cozinha.</p><p>Ela saiu andando, e um pé de chinelo chutou o saco de botões ao lado da poltrona. Alguns</p><p>dos botões caíram no chão, brilhando como olhos vidrados à luz do abajur. Ela viu pelo</p><p>menos seis pretos.</p><p>Por dentro</p><p>da porta do armário acima da pia com duas cubas havia um quadro de madeira</p><p>envernizada com formato de chave. Um dos clientes de Stan tinha feito em sua oficina e deu</p><p>para ele dois Natais antes. O quadro de chave era cheio de pequenos ganchos, e penduradas</p><p>neles estavam todas as chaves da casa, duas duplicatas em cada gancho. Abaixo de cada</p><p>gancho havia uma tira adesiva, e cada tira estava marcada com a letra pequena e caprichada</p><p>de Stan: GARAGEM, SÓTÃO, BANHEIRO DE BX, BANHEIRO DE CIMA, PORTA DA FRENTE , PORTA DOS FUNDOS . Em um</p><p>lado estavam as duplicatas das chaves dos carros com os adesivos M-B e VOLVO.</p><p>Patty pegou a chave com o adesivo BANHEIRO DE CIMA, começou a correr para a escada e se</p><p>obrigou a andar. Correr fazia o pânico querer voltar, e o pânico já estava perto demais da</p><p>superfície naquele momento. Além disso, se ela apenas andasse, talvez nada estivesse errado.</p><p>Ou, se houvesse alguma coisa errada, Deus podia olhar para baixo, vê-la andando e pensar:</p><p>Ah, que bom, foi um tremendo erro, mas tenho tempo de corrigir.</p><p>Andando com a tranquilidade de uma mulher a caminho da reunião do Clube do Livro, ela</p><p>subiu a escada e foi até a porta fechada do banheiro.</p><p>— Stanley? — chamou ela, tentando abrir a porta de novo ao mesmo tempo, de repente</p><p>com mais medo do que nunca, sem querer usar a chave porque ter que usar a chave era de</p><p>alguma forma definitivo demais. Se Deus não tivesse desfeito quando ela usasse a chave,</p><p>então jamais desfaria. A era dos milagres, afinal, já tinha acabado.</p><p>Mas a porta ainda estava trancada; o deliberado plink… pausa da água pingando era a</p><p>única resposta.</p><p>Sua mão estava tremendo, e a chave bateu por toda a área ao redor antes de encontrar o</p><p>caminho do buraco da fechadura e se alojar. Ela a girou e ouviu a tranca estalar. Esticou a</p><p>mão desajeitada para a maçaneta de vidro entalhado. Tentou deslizar pela mão dela de novo,</p><p>não porque a porta estava trancada desta vez, mas porque a palma da mão estava molhada de</p><p>suor. Ela firmou o toque e a fez girar. Abriu a porta.</p><p>— Stanley? Stanley? St…</p><p>Ela olhou para a banheira com a cortina azul encolhida na extremidade da vara de aço</p><p>inoxidável e esqueceu como terminar o nome do marido. Ela apenas olhou para a banheira,</p><p>com o rosto tão solene quanto o rosto de uma criança no primeiro dia de aula. Em um momento</p><p>ela começaria a gritar, e Anita MacKenzie da casa ao lado a ouviria, e seria Anita MacKenzie</p><p>quem chamaria a polícia, convencida de que alguém tinha invadido a casa dos Uris e de que</p><p>havia pessoas sendo mortas lá.</p><p>Mas naquele momento, naquele único momento, Patty Uris simplesmente ficou em silêncio</p><p>com as mãos unidas na frente da saia escura de algodão, com o rosto solene e os olhos</p><p>enormes. E agora, o olhar de seriedade quase sagrada começou a se transformar em outra</p><p>coisa. Os olhos enormes começaram a saltar. A boca se repuxou em um sorriso terrível de</p><p>horror. Ela queria gritar, mas não conseguia. Os gritos eram grandes demais para sair.</p><p>O banheiro era iluminado por lâmpadas fluorescentes. Estava muito claro. Não havia</p><p>sombras. Dava para ver tudo, quer você quisesse, quer não. A água na banheira estava cor-de-</p><p>rosa vívida. Stanley estava deitado com as costas apoiadas na banheira. Tinha inclinado a</p><p>cabeça tão para trás que algumas pontas do cabelo preto e curto encostavam na pele entre as</p><p>omoplatas. Se os olhos arregalados ainda fossem capazes de ver, ela estaria de cabeça para</p><p>baixo para ele. A boca estava aberta como uma porta escancarada. A expressão era de pavor</p><p>abismal e congelado. Um pacote de lâminas Gilette Platinum Plus estava sobre a beirada da</p><p>banheira. Ele tinha cortado a parte interna dos antebraços do pulso até a altura do cotovelo, e</p><p>fez outro corte perpendicular a cada um na altura do pulso, criando um par de tês maiúsculos.</p><p>Os cortes brilhavam vermelho-arroxeados na luz branca e forte. Ela pensou que os tendões e</p><p>ligamentos expostos pareciam cortes de carne barata.</p><p>Uma gota de água se formou na boca da torneira cromada reluzente. Engordou. Engravidou,</p><p>podia-se dizer. Cintilou. Caiu. Plink.</p><p>Ele tinha mergulhado o indicador direito no próprio sangue e escrito uma única palavra nos</p><p>azulejos azuis acima da banheira, cinco letras trêmulas. Uma marca de dedo ziguezagueante</p><p>descia abaixo da última letra da palavra. O dedo dele tinha feito a marca, ela viu, quando a</p><p>mão caiu na banheira, onde agora flutuava. Ela pensou que Stanley devia ter feito aquela</p><p>marca, sua impressão final no mundo, quando perdeu a consciência. Parecia gritar para ela:</p><p>Outra gota caiu na banheira.</p><p>Plink.</p><p>Isso foi o gatilho. Patty Uris finalmente encontrou a voz. Olhando nos olhos mortos e</p><p>cintilantes do marido, ela começou a gritar.</p><p>2</p><p>Richard Tozier toma chá de sumiço</p><p>Rich achou que estava indo muito bem até os vômitos começarem.</p><p>Ele ouviu tudo que Mike Hanlon contou a ele, disse todas as coisas certas, respondeu as</p><p>perguntas, até fez algumas também. Ficou vagamente ciente de que estava usando uma de suas</p><p>Vozes — não uma estranha e escandalosa, como as que às vezes usava no rádio (Kinky</p><p>Briefcase, o Contador Sexual, era a favorita dele, pelo menos por enquanto, e as reações</p><p>positivas de ouvintes a Kinky eram quase tantas quantas as do favorito de todos os tempos dos</p><p>ouvintes, o coronel Buford Kissdrivel), mas uma Voz calorosa, intensa, confiante. Uma Voz de</p><p>Estou-Bem. Causava uma ótima impressão, mas era mentira. Assim como as outras Vozes</p><p>eram mentira.</p><p>— O quanto você lembra, Rich? — perguntou Mike.</p><p>— Muito pouco — disse Rich e fez uma pausa. — O suficiente, eu acho.</p><p>— Você vem?</p><p>— Vou — disse Rich e desligou.</p><p>Ele ficou sentado um minuto no escritório, recostado na cadeira atrás da mesa, olhando</p><p>para o oceano Pacífico. Havia dois garotos à esquerda, deslizando em pranchas de surf, não</p><p>exatamente surfando. Não havia ondas para surfe.</p><p>O relógio sobre a mesa, um modelo caro de quartzo com mostrador LED que fora presente</p><p>do representante de uma gravadora, dizia que eram 17h09 do dia 28 de maio de 1985. É claro</p><p>que eram horas mais tarde no local de onde Mike estava ligando. Escuro, até. Ele sentiu um</p><p>arrepio ao pensar nisso e começou a se mexer, a fazer coisas. Primeiro, é claro, colocou um</p><p>disco, sem procurar, apenas pegando cegamente em meio aos milhares sobre as prateleiras. O</p><p>rock-and-roll era quase tão parte da vida dele quanto as Vozes, e era difícil para ele fazer</p><p>qualquer coisa sem música tocando, e quanto mais alto, melhor. O disco que ele pegou era</p><p>uma retrospectiva da Motown. Marvin Gaye, um dos membros mais novos do que Rich às</p><p>vezes chamava de Banda Toda Morta, começou a cantar “I Heard It Through the Grapevine”.</p><p>“Oooh-hoo, I bet you’re wond’rin’ how I knew…”</p><p>— Nada mau — disse Rich. Ele até sorriu um pouco. Isso era ruim, e ele admitia que o</p><p>tinha deixado desnorteado, mas ele sentia que ia conseguir encarar. Sem estresse.</p><p>Ele começou a se aprontar para voltar para casa. E em determinado ponto durante a hora</p><p>seguinte, ocorreu a ele que era como se ele tivesse morrido e tido permissão de cuidar dos</p><p>últimos compromissos de trabalho… assim como o planejamento do próprio enterro. E sentia</p><p>que estava se saindo bem. Tentou a agente de viagens que usava, achando que ela devia estar</p><p>na estrada a caminho de casa a essas alturas, mas arriscou mesmo assim. Por sorte, ela ainda</p><p>estava na agência. Ele disse a ela o que queria, e ela pediu 15 minutos.</p><p>— Te devo uma, Carol — disse ele. Eles tinham progredido de sr. Tozier e sra. Feeny para</p><p>Rich e Carol ao longo dos últimos três anos, o que era muita intimidade, considerando que</p><p>nunca tinham se encontrado.</p><p>— Tudo bem, pode pagar — disse ela. — Pode fazer Kinky Briefcase pra mim?</p><p>Sem nem fazer uma pausa (se você precisasse fazer pausa para encontrar sua Voz,</p><p>costumava não haver Voz para ser encontrada), Rich disse:</p><p>— Kinky Briefcase, Contador Sexual aqui. Um amigo veio aqui outro dia querendo saber</p><p>qual era a pior coisa de pegar aids. — O tom de voz dele tinha baixado ligeiramente; ao</p><p>mesmo tempo, o ritmo aumentou e ficou mais alegre. Era claramente uma voz americana, mas</p><p>de alguma forma conjurava imagens de um rapaz colonial britânico rico que era tão charmoso</p><p>de uma maneira confusa quanto era mimado. Rich não fazia a menor ideia de quem Kinky</p><p>Briefcase realmente era, mas tinha certeza de que sempre usava ternos brancos, lia a revista</p><p>Esquire e bebia coisas que vinham em copos altos e tinham cheiro de xampu de coco. — Falei</p><p>imediatamente: tentar explicar pra sua mãe que você pegou de uma garota haitiana. Até a</p><p>próxima, aqui é Kinky Briefcase, Contador Sexual, lembrando: “Você precisa do meu cartão</p><p>se não consegue uma ereção.”</p><p>Carol Feeny gritou de tanto rir.</p><p>— Isso é perfeito! Perfeito! Meu namorado diz que não acredita que você consegue</p><p>simplesmente fazer essas vozes, diz que tem que ser um mecanismo de filtro de voz ou coisa</p><p>do tipo…</p><p>— Apenas talento, minha querida — disse Rich. Kinky Briefcase sumira. W. C. Fields, de</p><p>cartola, nariz vermelho, bolsas de golfe e tudo, estava aqui. — Tenho tanto talento que preciso</p><p>tapar todos os meus orifícios corporais apenas para impedir que vaze como… bem, apenas</p><p>que vaze.</p><p>Ela teve outro acesso barulhento de gargalhadas e Rich fechou os olhos. Conseguia sentir o</p><p>princípio de uma dor de cabeça.</p><p>— Seja boazinha e veja o que pode fazer, tá? — pediu ele, ainda sendo W. C. Fields, e</p><p>desligou no meio da risada dela.</p><p>Agora ele tinha que voltar a ser ele mesmo, e era difícil. Ficava mais difícil fazer isso a</p><p>cada ano. Era mais fácil ser corajoso quando você era outra pessoa.</p><p>Ele estava tentando escolher um par de bons sapatos e tinha praticamente decidido ficar de</p><p>tênis quando o telefone tocou de novo. Era Carol Feeny em tempo recorde. Ele sentiu uma</p><p>vontade momentânea de usar a Voz Buford Kissdrivel, mas lutou contra. Ela conseguiu</p><p>arrumar para ele um assento na primeira classe no voo noturno sem escalas da American</p><p>Airlines de Los Angeles para Boston. Ele sairia de L. A. às 21h03 e chegaria a Logan cerca de</p><p>5h da manhã de amanhã. A Delta o levaria de Boston às 7h30 até Bangor, Maine, chegando às</p><p>8h20. Ela conseguira um sedã para ele na Avis, e eram apenas 40 quilômetros do balcão da</p><p>Avis no aeroporto internacional de Bangor até a fronteira de Derry.</p><p>Apenas 40 quilômetros?, pensou Rich. Isso é tudo, Carol? Bem, talvez seja, pelo menos</p><p>em quilômetros. Mas você não faz a menor ideia da distância verdadeira até Derry, nem eu.</p><p>Mas, ah, Deus, ah, meu querido Deus, vou descobrir.</p><p>— Não procurei um quarto de hotel porque você não me disse quanto tempo vai ficar lá —</p><p>disse ela. — Você quer…?</p><p>— Não, deixa que eu cuido disso — disse Rich, e então Buford Kissdrivel assumiu. —</p><p>Você foi um anjo, minha querida. Um anjo dos céééus.</p><p>Ele desligou delicadamente na cara dela (sempre os deixe rindo) e ligou para 207-555-</p><p>1212 para obter o auxílio à lista do estado do Maine. Queria o número do Derry Town House.</p><p>Deus, aí estava um nome do passado. Ele não pensava no Derry Town House havia… o quê?</p><p>Dez anos? Vinte? Vinte e cinco anos, até? Por mais louco que pudesse parecer, ele achava que</p><p>havia pelo menos 25 anos, e se Mike não tivesse ligado, ele achava que poderia não ter</p><p>voltado a pensar nele durante o resto da vida. Mas houve uma época na vida dele em que ele</p><p>passara por aquela pilha enorme de tijolos vermelhos todos os dias, e em mais de uma ocasião</p><p>ele passara correndo, com Henry Bowers e Arroto Huggins e aquele outro garoto grande,</p><p>Victor Fulano de Tal, correndo atrás, todos gritando amabilidades como Vamos te pegar, cara</p><p>de cu! Vamos te pegar, espertinho! Vamos te pegar, veado quatro olhos! Algum dia eles o</p><p>pegaram?</p><p>Antes que Richie conseguisse lembrar, uma telefonista estava perguntando que cidade, por</p><p>favor.</p><p>— Em Derry, telefonista…</p><p>Derry! Deus! Até a palavra soava estranha e esquecida nos lábios dele; dizê-la era como</p><p>beijar uma antiguidade.</p><p>— … você tem o número do Derry Town House?</p><p>— Um momento, senhor.</p><p>De jeito nenhum. Ele não vai existir mais. Foi derrubado em um programa de reforma</p><p>urbana. Transformado em um Elk’s Hall ou um boliche ou um fliperama Electric</p><p>Dreamscape. Ou talvez tenha pegado fogo uma noite quando a sorte finalmente acabou</p><p>para algum vendedor de sapatos bêbado que fumou na cama. Tudo já era, Richie, assim</p><p>como os óculos pelos quais Henry Bowers sempre implicava com você. O que diz aquela</p><p>música de Springsteen? Dias de glória… somem no piscar dos olhos de uma jovem. Que</p><p>jovem? Ah, Bev, é claro. Bev…</p><p>O Town House podia estar mudado, mas aparentemente não tinha deixado de existir,</p><p>porque uma voz monótona e robótica agora entrou na linha e disse:</p><p>— O… número… é… nove… quatro… um… oito… dois… oito… dois. Repetindo:… o…</p><p>número… é…</p><p>Mas Rich anotou da primeira vez. Era um prazer desligar na cara daquela voz monótona.</p><p>Era fácil demais imaginar um enorme monstro globular do auxílio à lista enterrado em algum</p><p>lugar, suando rios e segurando milhares de telefones em milhares de tentáculos articulados</p><p>cromados, a versão Ma Bell do inimigo do Aranha, o dr. Octopus. Cada ano o mundo em que</p><p>Rich vivia parecia mais e mais uma enorme casa assombrada eletrônica na qual fantasmas</p><p>digitais e seres humanos assustados viviam em coexistência desconfortável.</p><p>Ainda de pé. Parafraseando Paul Simon, ainda de pé depois de todos esses anos.</p><p>Ele ligou para o hotel que tinha visto pela última vez por entre os aros de chifre que usara</p><p>na infância. Ligar para aquele número, 1-207-941-8282, foi fatalmente fácil. Ele segurou o</p><p>telefone ao lado do ouvido enquanto olhava pelo janelão do escritório. Os surfistas tinham</p><p>sumido; um casal estava andando lentamente pela praia, de mãos dadas, no ponto em que eles</p><p>estavam antes. O casal poderia ser um pôster na parede da agência de viagens onde Carol</p><p>Feeny trabalhava de tão perfeito que era. Exceto pelo fato de que os dois usavam óculos.</p><p>Vamos te pegar, cara de cu! Vamos quebrar seus óculos!</p><p>Criss surgiu abruptamente em sua mente. O sobrenome dele era Criss. Victor Criss.</p><p>Ah, Deus, isso não era nada que ele quisesse saber, não a essas alturas, mas não pareceu</p><p>importar em nada. Alguma coisa estava acontecendo lá embaixo nas catacumbas, lá onde Rich</p><p>Tozier guardava sua coleção pessoal de discos antigos. Portas estavam se abrindo.</p><p>Só que não são discos lá embaixo, são? Lá embaixo você não é Rich “Discos” Tozier, o</p><p>DJ fera da KLAD e Homem das Mil Vozes, é? E essas coisas que estão se abrindo… elas</p><p>não são exatamente portas, são?</p><p>Ele tentou afastar esses pensamentos.</p><p>A coisa a lembrar é que estou bem. Estou bem, você está bem, Rich Tozier está bem. Um</p><p>cigarro cairia bem, só isso.</p><p>Ele tinha parado de fumar quatro anos antes, mas um cigarro cairia bem mesmo agora.</p><p>Não são discos, mas cadáveres. Você os enterrou fundo, mas agora tem uma espécie de</p><p>terremoto maluco acontecendo e o chão está cuspindo todos para cima da superfície. Você</p><p>não é Rich “Discos” Tozier lá embaixo; lá embaixo, você é apenas Rich “Quatro Olhos”</p><p>Tozier e está com seus amigos e está com tanto medo que parece que suas bolas estão</p><p>virando geleia de uva. Não são portas, e elas não estão se abrindo. São criptas, Richie.</p><p>Estão se abrindo lentamente e os vampiros que você achava que estavam mortos estão</p><p>todos voltando a sair.</p><p>Um cigarro, apenas um. Até um Carlton serviria, por Deus amado.</p><p>Vamos te pegar, quatro olhos! Vamos te fazer comer essa porra de mochila!</p><p>— Town House — disse uma voz masculina com sotaque ianque; ela viajara por toda Nova</p><p>Inglaterra, pelo Meio-Oeste e por baixo dos cassinos de Las Vegas para chegar ao ouvido</p><p>dele.</p><p>Rich perguntou à voz se podia reservar uma suíte no Town House a partir do dia seguinte.</p><p>A voz disse para ele que sim e perguntou por quanto tempo.</p><p>— Não sei dizer. Eu tenho… — Ele fez uma breve pausa.</p><p>O que ele tinha exatamente? Em sua mente, viu um garoto com mochila xadrez correndo</p><p>dos valentões; viu um garoto que usava óculos, um garoto magro com rosto pálido que de</p><p>alguma forma parecia gritar Me bate! Vem me bater! de alguma forma misteriosa para todo</p><p>valentão que passava. Aqui estão meus lábios! Esmaga eles contra meus dentes! Aqui está</p><p>meu nariz! Faz ele sangrar e quebra se conseguir!</p><p>Bate numa orelha pra que inche como</p><p>uma couve-flor! Abre um supercílio! Aqui está meu queixo, acerta em cheio! Aqui estão</p><p>meus olhos, tão azuis e tão ampliados por trás desses óculos tão detestáveis, esses óculos</p><p>com aro de osso com um lado preso com fita adesiva. Quebra os óculos! Enfia um estilhaço</p><p>de vidro em um desses olhos e fecha ele pra sempre! Que porra!</p><p>Ele fechou os olhos e disse:</p><p>— Tenho negócios em Derry, sabe. Não sei quanto tempo a transação vai demorar. Que tal</p><p>três dias, com opção de prorrogar?</p><p>— Opção de prorrogar? — perguntou o recepcionista em dúvida, e Rich esperou</p><p>pacientemente que o sujeito refletisse. — Ah, entendi! Tudo bem!</p><p>— Obrigado, e eu… ah… espero que você vote em nós em novembro — disse John F.</p><p>Kennedy. — Jackie quer… ah… reformar o… ah… Salão Oval, e tenho um trabalho pronto</p><p>pro meu… ah... irmão Bobby.</p><p>— Sr. Tozier?</p><p>— Sim.</p><p>— Certo… outra pessoa entrou na linha por alguns segundos.</p><p>Só um velho amigo do V. P. D., pensou Rich. Quer dizer Velho Partido Morto, caso você</p><p>queira saber. Não se preocupe. Um tremor o percorreu, e ele disse para si mesmo quase com</p><p>desespero: Você está bem, Rich.</p><p>— Também ouvi — disse Rich. — Deve ter sido linha cruzada. Como estamos com relação</p><p>ao quarto?</p><p>— Ah, não tem problema nenhum — disse o recepcionista. — Temos movimento em Derry,</p><p>mas nunca ficamos lotados.</p><p>— É mesmo?</p><p>— Ai, é — concordou o recepcionista, e Rich tremeu de novo. Ele tinha se esquecido disso</p><p>também, desse jeito simples da Nova Inglaterra de dizer sim. Ai, é.</p><p>Vamos te pegar, fedelho! , a voz fantasmagórica de Henry Bowers gritou, e ele sentiu mais</p><p>criptas se abrindo dentro de si; o fedor que sentia não era de corpos em decomposição, mas</p><p>sim de lembranças em decomposição, e isso era pior de alguma forma.</p><p>Ele deu o número do American Express para o recepcionista do Town House e desligou.</p><p>Em seguida, ligou para Steve Covall, diretor de programação da KLAD.</p><p>— O que está rolando, Rich? — perguntou Steve. As últimas avaliações de popularidade</p><p>tinham mostrado a KLAD no topo do mercado canibal de rádios de rock FM de Los Angeles, e</p><p>desde então Steve estava com excelente humor, graças a Deus.</p><p>— Bem, você talvez lamente a pergunta — disse ele para Steve. — Estou tomando chá de</p><p>sumiço.</p><p>— Tomando… — Ele conseguiu ouvir a dúvida na voz de Steve. — Acho que não entendi,</p><p>Rich.</p><p>— Tenho que calçar os tênis de caminhada. Vou viajar.</p><p>— O que você quer dizer com vai viajar? De acordo com a programação que está na minha</p><p>frente, você entra no ar amanhã das duas da tarde até as seis, como sempre. Na verdade, você</p><p>vai entrevistar Clarence Clemons no estúdio às quatro. Você conhece Clarence Clemons,</p><p>Rich? De “Venha soprar, Big Man”?</p><p>— Clemons pode conversar com Mike O’Hara do mesmo jeito que pode conversar comigo.</p><p>— Clarence não quer conversar com Mike, Rich. Clarence não quer conversar com Bobby</p><p>Russell. Não quer conversar comigo. Clarence é fã de Buford Kissdrivel e Wyatt, o</p><p>Ensacador Homicida. Ele quer falar com você, meu amigo. E não tenho interesse em ter um</p><p>saxofonista de 110 quilos puto da vida com sede de sangue e que já quase foi escolhido pra</p><p>jogar futebol americano profissional no meu estúdio.</p><p>— Acho que ele não tem histórico de sede de sangue — disse Rich. — Afinal, estamos</p><p>falando de Clarence Clemons, não de Keith Moon.</p><p>Fez-se silêncio na linha. Rich esperou pacientemente.</p><p>— Você não está falando sério, está? — perguntou Steve por fim. Parecia implorar. — A</p><p>não ser que sua mãe tenha acabado de morrer ou você esteja com um tumor cerebral, isso se</p><p>chama deixar na mão.</p><p>— Tenho que ir, Steve.</p><p>— Sua mãe está doente? Que Deus não permita, mas ela morreu?</p><p>— Ela morreu dez anos atrás.</p><p>— Você está com um tumor no cérebro?</p><p>— Não tenho nem um pólipo retal.</p><p>— Não é engraçado, Rich.</p><p>— Não.</p><p>— Você está sendo um babaca e não estou gostando nada disso.</p><p>— Também não gosto, mas tenho que ir.</p><p>— Pra onde? Por quê? O que está acontecendo? Fala comigo, Rich!</p><p>— Uma pessoa me ligou. Uma pessoa que conheci há muito tempo. Em outro lugar. Naquela</p><p>época, aconteceu uma coisa. Fiz uma promessa. Todos prometemos que voltaríamos se essa</p><p>coisa voltasse a acontecer. E acho que voltou.</p><p>— De que coisa estamos falando, Rich?</p><p>— Eu preferia não dizer ainda. — Além do mais, você vai achar que estou louco se eu</p><p>disser a verdade: não lembro.</p><p>— Quando você fez essa famosa promessa?</p><p>— Muito tempo atrás. No verão de 1958.</p><p>Houve outra longa pausa, e ele sabia que Steve Covall estava tentando decidir se Rich</p><p>“Discos” Tozier, também conhecido como Buford Kissdrivel, também conhecido como Wyatt,</p><p>o Ensacador Homicida etc. etc. estava tirando sarro dele ou tendo algum tipo de colapso</p><p>mental.</p><p>— Você era só uma criança — disse Steve friamente.</p><p>— Tinha 11 anos. Quase 12.</p><p>Outra longa pausa. Rich esperou pacientemente.</p><p>— Tudo bem — disse Steve. — Vou mudar os turnos e colocar Mike no seu lugar. Posso</p><p>ligar pra Chuck Foster pra cobrir alguns horários, eu acho, se conseguir descobrir em qual</p><p>restaurante chinês ele está enfiado agora. Vou fazer isso porque temos uma longa história</p><p>juntos. Mas nunca vou esquecer que você me deixou na mão, Rich.</p><p>— Ah, corta essa — disse Rich, mas a dor de cabeça estava piorando. Ele sabia o que</p><p>estava fazendo; será que Steve achava mesmo que não? — Preciso de uns dias de folga, só</p><p>isso. Você está agindo como se eu tivesse cagado no alvará da Comissão Federal de</p><p>Comunicações.</p><p>— Alguns dias de folga pra quê? A reunião do seu grupo de escoteiros de Merdolândia,</p><p>Dakota do Norte, ou Bocetópolis, Virgínia Ocidental?</p><p>— Na verdade, acho que Merdolândia fica no Arkansas, camarada — disse Buford</p><p>Kissdrivel com sua voz alta e estrondosa, mas Steve não ia se deixar distrair.</p><p>— Porque você fez uma promessa quando tinha 11 anos? Crianças não fazem promessas</p><p>sérias aos 11 anos, pelo amor de Deus! E nem é isso, Rich, e você sabe. Isso aqui não é uma</p><p>empresa de seguros; não é um escritório de advocacia. É show-business, por mais humilde</p><p>que seja, e você sabe muito bem disso. Se você tivesse me avisado uma semana antes, eu não</p><p>estaria com esse telefone em uma das mãos e uma garrafa de Mylanta na outra. Você está</p><p>colocando minhas bolas na linha de fogo e sabe bem disso, então não insulte minha</p><p>inteligência!</p><p>Steve estava quase gritando agora, e Rich fechou os olhos. Nunca vou esquecer, Steve</p><p>disse, e Rich supunha que não esqueceria mesmo. Mas Steve também disse que crianças não</p><p>faziam promessas sérias aos 11 anos, e isso não era nem um pouco verdade. Rich não</p><p>conseguia lembrar qual tinha sido a promessa, não sabia se queria lembrar, mas tinha sido</p><p>bem séria.</p><p>— Steve, eu tenho que ir.</p><p>— É. E falei pra você que posso resolver. Então vai em frente. Vai em frente, me deixa na</p><p>mão.</p><p>— Steve, isso é rid…</p><p>Mas Steve já tinha desligado. Rich colocou o fone no gancho. Ele mal tinha começado a se</p><p>afastar quando o aparelho voltou a tocar, e ele sabia antes de atender que era Steve de novo,</p><p>mais furioso do que nunca. Falar com ele nesse momento não faria bem nenhum; as coisas só</p><p>ficariam mais feias. Ele deslizou o botão na lateral do telefone para a direita, cortando o toque</p><p>no meio.</p><p>Ele subiu a escada, tirou duas malas do armário e as encheu com um amontoado de roupas</p><p>para as quais mal olhou: calças jeans, camisas, cuecas, meias. Só ocorreria a ele bem mais</p><p>tarde que ele só levou roupas no estilo de criança. Ele levou as duas malas para baixo.</p><p>Na parede da sala de TV havia uma fotografia em preto e branco de Big Sur tirada por</p><p>Ansel Adams. Rich a puxou como uma porta presa por dobradiças escondidas e revelou um</p><p>cofre de parede. Ele o abriu e enfiou a mão para trás da papelada: da casa, localizada</p><p>agradavelmente entre a falha geológica e a zona de incêndios florestais, de 20 acres de</p><p>floresta madeireira em Idaho, algumas ações. Ele comprou as ações aparentemente de forma</p><p>aleatória (quando seu corretor via Rich chegando, imediatamente colocava as mãos na</p><p>cabeça), mas as ações tinham todas subido regularmente ao longo dos anos. Às vezes, ele</p><p>ficava surpreso pela ideia de que era quase (não exatamente,</p><p>mas quase) um homem rico.</p><p>Tudo cortesia do rock-and-roll… e das Vozes, é claro.</p><p>A casa, o terreno, ações, o seguro, até uma cópia de seu último testamento. As cordas que</p><p>prendem você ao mapa da sua vida, pensou ele.</p><p>Houve um impulso selvagem e repentino de pegar o isqueiro Zippo e acender todo o</p><p>amontoado de por-conseguintes e saibam-todos-por-meio-desta e o-portador-deste-</p><p>certificado-possui. Ele podia fazer isso. Os papéis no cofre de repente deixaram de ter</p><p>significado.</p><p>O primeiro pavor real o atingiu naquele momento, e não havia nada de sobrenatural nele.</p><p>Era apenas a percepção do quanto era fácil destruir sua vida. Era isso o que havia de tão</p><p>apavorante. Era só apontar o ventilador para tudo que você tinha passado anos reunindo e</p><p>acender a porra do isqueiro. Fácil. Queimar tudo ou explodir, depois tomar chá de sumiço.</p><p>Atrás dos papéis, que eram apenas primos de segundo grau do dinheiro vivo, estava o</p><p>material verdadeiro. A grana. Quatro mil dólares em notas de dez, vinte e cinquenta.</p><p>Ao pegar as notas agora e enfiar nos bolsos do jeans, ele se perguntou se não sabia o que</p><p>estava fazendo quando guardou o dinheiro lá, cinquenta dólares em um mês, 120 no mês</p><p>seguinte, talvez apenas dez no mês que veio depois. Dinheiro escondido. Dinheiro de chá de</p><p>sumiço.</p><p>— Cara, isso é apavorante — disse ele, sem nem perceber que tinha falado. Estava</p><p>olhando cegamente pelo janelão que dava para a praia. Estava deserta agora, sem os surfistas,</p><p>sem o casal em lua de mel (se é que eles eram isso).</p><p>Ah, sim, doutor, me lembro de tudo agora. Lembra-se de Stanley Uris, por exemplo?</p><p>Aposto seu couro que lembra… lembra como a gente dizia isso e achava tão bacana?</p><p>Stanley Urina, era assim que os garotos grandes o chamavam. “Ei, Urina! Ei, seu merda</p><p>matador de Cristo! Tá indo pra onde? Um dos seus amigos bichas vai te pagar um bola</p><p>gato?”</p><p>Ele fechou a porta do cofre e colocou a foto no lugar. Quando tinha pensado em Stan Uris</p><p>pela última vez? Cinco anos atrás? Dez? Vinte? Rich e sua família tinham se mudado de Derry</p><p>na primavera de 1960, e como os rostos de todos desapareceram rápido, da gangue dele,</p><p>daquele grupo sofrível de otários com seu clubinho no que era conhecido na época como</p><p>Barrens, que significava “estéril”, um nome engraçado para uma área tão rica em vegetação</p><p>quanto aquela. Brincando de exploradores da selva, ou militares abrindo uma área para pista</p><p>de aterrissagem em um atol do Pacífico enquanto mantinham os japas longe, brincando de</p><p>construtores de represa, caubóis, astronautas em um mundo de selva, pode escolher, mas seja</p><p>lá o que você escolher, não vamos esquecer o que eles estavam realmente fazendo: se</p><p>escondendo. Se escondendo dos garotos grandes. Se escondendo de Henry Bowers e Victor</p><p>Criss e Arroto Huggins e do resto. Que bando de otários eles eram: Stan Uris com aquele nariz</p><p>grande de judeu, Bill Denbrough, que não conseguia dizer nada além de “Hi-yo, Silver!” sem</p><p>gaguejar tanto que você ficava puto da vida, Beverly Marsh com os hematomas e os cigarros</p><p>enrolados na manga da blusa, Ben Hanscom, que era tão grande que parecia uma versão</p><p>humana de Moby Dick, e Richie Tozier, com seus óculos grossos e notas A e respostas</p><p>rápidas e um rosto que implorava para ser socado e modelado em formatos novos e excitantes.</p><p>Havia uma palavra para o que eles eram? Ah, sim. Sempre havia. Le mot juste. Nesse caso, le</p><p>mot juste era covardes.</p><p>Como tudo voltava, como tudo estava voltando… e agora ele estava na sala de TV</p><p>tremendo de forma tão impotente quanto um vira-lata de rua preso em uma tempestade,</p><p>tremendo porque os caras com quem ele correra não era tudo que ele lembrava. Havia outras</p><p>coisas, coisas em que ele não pensava havia anos, tremendo logo abaixo da superfície.</p><p>Coisas sangrentas.</p><p>Uma escuridão. Alguma escuridão.</p><p>A casa na rua Neibolt, e Bill gritando: Você m-matou meu irmão, seu fi-filho da p-puta!</p><p>Ele lembrava? Apenas o bastante para não querer lembrar mais nada, e você pode apostar</p><p>seu couro nisso.</p><p>Um cheiro de lixo, um cheiro de merda e um cheiro de outra coisa. Uma coisa pior do que</p><p>as outras duas. Era o fedor do animal, o fedor da Coisa, lá embaixo na escuridão debaixo de</p><p>Derry onde as máquinas trovejavam sem parar. Ele se lembrava de George…</p><p>Mas isso foi demais e ele correu para o banheiro, esbarrando na poltrona Eames no</p><p>caminho e quase caindo. Ele conseguiu… por pouco. Deslizou de joelhos até o vaso pelo piso</p><p>escorregadio, como um dançarino bizarro de break, agarrou as beiradas e vomitou tudo que</p><p>tinha nas entranhas. Mesmo então, não parou; de repente, ele conseguia ver Georgie</p><p>Denbrough como se o tivesse visto ontem pela última vez, Georgie, que tinha sido o começo</p><p>de tudo, Georgie, que tinha sido assassinado no outono de 1957. Georgie morreu logo depois</p><p>da enchente, um de seus braços foi arrancado do corpo, e Rich tinha bloqueado isso tudo da</p><p>memória. Mas às vezes essas coisas voltam, ah, sim, elas voltam, às vezes elas voltam.</p><p>O espasmo passou e Rich tateou cegamente em busca da descarga. A água rugiu. Seu jantar,</p><p>regurgitado em pedaços quentes, desapareceu graciosamente pelo vaso.</p><p>Pelo esgoto.</p><p>Pela imundície e fedor e escuridão do esgoto.</p><p>Ele fechou o tampo, apoiou a testa sobre ele e começou a chorar. Era a primeira vez que</p><p>ele chorava desde que a mãe morreu em 1975. Sem nem pensar no que estava fazendo, ele</p><p>cobriu os olhos com as mãos, e as lentes de contato que ele usava deslizaram para cima das</p><p>palmas das mãos, reluzentes.</p><p>Quarenta minutos depois, sentindo-se renovado e um tanto limpo, ele jogou as malas no</p><p>porta-malas do MG e saiu de ré da garagem. O dia estava terminando. Ele olhou para a casa</p><p>com as plantas novas, olhou para a praia, para a água, que tinha assumido o brilho de</p><p>esmeraldas pálidas quebradas por uma linha estreita de ouro batido. E uma convicção tomou</p><p>conta dele de que ele jamais veria nada disso de novo, de que era um homem morto</p><p>caminhando.</p><p>— Estou indo pra casa agora — sussurrou Rich Tozier para si mesmo. — Estou indo pra</p><p>casa, e que Deus me ajude. Estou indo pra casa.</p><p>Ele botou o carro em movimento e seguiu em frente, sentindo mais uma vez o quão tinha</p><p>sido fácil deslizar por uma fissura inesperada do que ele considerava uma vida sólida; como</p><p>era fácil seguir para o lado negro, velejar do azul em direção ao negro.</p><p>Do azul para o negro, sim, era isso. Onde qualquer coisa poderia estar esperando.</p><p>3</p><p>Ben Hanscom toma um drink</p><p>Se, naquela noite de 28 de maio de 1985, você</p><p>quisesse encontrar o homem que a revista Time</p><p>chamou de “talvez o mais promissor jovem</p><p>arquiteto dos Estados Unidos” (“Conservação de</p><p>energia urbana e os jovens turcos”, Time, 15 de</p><p>outubro de 1984), você teria que dirigir para o</p><p>oeste de Omaha pela estrada interestadual 80.</p><p>Teria que pegar a saída de Swedholm e depois a</p><p>rodovia 81 até o centro de Swedholm (que não é</p><p>muita coisa). Lá, você entraria na rodovia 92 no</p><p>Bucky’s Hi-Hat Eat-Em-Up (“Filé de frango frito é</p><p>nossa especialidade”) e, depois que estivesse em</p><p>área rural de novo, pegaria a direita na rodovia 63,</p><p>que segue reto como uma régua pela cidadezinha</p><p>deserta de Gatlin e chega em Hemingford Home. O</p><p>centro de Hemingford Home fazia o centro de</p><p>Swedholm parecer Nova York; a área comercial</p><p>consistia em oito construções, cinco de um lado e</p><p>três do outro. Havia uma barbearia Kleen Kut</p><p>(preso na vitrine havia um cartaz amarelado escrito</p><p>à mão de 15 anos antes que dizia SE VOCÊ É “HIPPY”, CORTE</p><p>SEU CABELO EM OUTRO LUGAR), o cinema que só passava</p><p>reprises e a loja de U$ 1,99. Havia uma agência do</p><p>banco Nebraska Homeowner’s, um posto de</p><p>gasolina 76, uma farmácia Rexall e a Loja de</p><p>Ferramentas e Artigos para Fazendas, que era o</p><p>único negócio da cidade que parecia ligeiramente</p><p>próspero.</p><p>E, perto do final da rua principal, um pouco afastado das outras construções como um pária</p><p>e na beirada de uma área vazia, havia um bar comum: o Red Wheel. Se você chegasse àquele</p><p>ponto, veria no estacionamento de terra batida um Cadillac conversível 1968 velho com</p><p>antenas duplas de rádio amador na traseira. A placa da frente dizia simplesmente:</p><p>com a corrente carregando-o tão rápido que George teve que correr</p><p>para acompanhar. As galochas espalhavam água em jatos enlameados. As fivelas emitiam um</p><p>som alegre enquanto George Denbrough corria em direção à sua estranha morte. E a sensação</p><p>que tomou conta dele naquele momento foi amor claro e simples pelo irmão Bill… amor e um</p><p>toque de arrependimento por Bill não poder estar lá para ver e participar. É claro que ele</p><p>tentaria descrever para Bill quando chegasse em casa, mas sabia que não conseguiria fazer</p><p>Bill enxergar do jeito que conseguiria fazer com que ele enxergasse se as posições estivessem</p><p>trocadas. Bill era bom em ler e escrever, mas mesmo na idade dele, George era esperto o</p><p>bastante para saber que aquele não era o único motivo para Bill só ter A no boletim, e nem</p><p>para os professores gostarem tanto das redações dele. Contar era apenas parte do talento. Bill</p><p>era bom em ver.</p><p>O barco quase voou pelo canal em diagonal, só uma página arrancada da seção de</p><p>classificados do Derry News, mas agora George o imaginava como uma lancha torpedeira em</p><p>um filme de guerra, como os que ele via às vezes no cinema de Derry com Bill nas matinês de</p><p>sábado. Um filme de guerra com John Wayne lutando contra os japoneses. A proa do barco de</p><p>jornal jogava jatos de água para os dois lados enquanto corria, depois chegou à vala no lado</p><p>esquerdo da rua Witcham. Um novo jorro de água subia pela abertura no asfalto naquele ponto</p><p>e criava um redemoinho grande, e pareceu a ele que o barco seria inundado e viraria. Ele se</p><p>inclinou de maneira alarmante, mas George se alegrou quando se endireitou, virou e desceu</p><p>rapidamente para o cruzamento. George correu para alcançá-lo. Acima da cabeça dele, um</p><p>sopro forte de vento de outubro balançou as árvores, agora quase sem o peso das folhas</p><p>coloridas por causa da tempestade, que naquele ano foi uma ceifeira das mais cruéis.</p><p>2</p><p>Sentado na cama, com as bochechas ainda</p><p>vermelhas de calor (mas com a febre baixando,</p><p>assim como o Kenduskeag), Bill terminou o barco.</p><p>Mas quando George esticou a mão para pegá-lo,</p><p>Bill o tirou do alcance dele.</p><p>— A-Agora pega a p-p-parafina.</p><p>— O que é isso? Onde fica?</p><p>— Fica na pra-pra-prateleira do porão quando você está descendo — disse Bill. — Em</p><p>uma caixa que diz Gu-Gu-ulf… Gulf. Traz pra mim, junto com uma faca e uma t-tigela. E uma</p><p>c-caixa de fu-fu-fósforos.</p><p>George foi obedientemente buscar os objetos. Ele conseguia ouvir a mãe tocando piano,</p><p>não “Für Elise” agora, mas uma outra música da qual ele não gostava tanto; era uma música</p><p>que parecia seca e barulhenta. Ele conseguia ouvir a chuva caindo regularmente nas janelas da</p><p>cozinha. Eram sons agradáveis, mas a ideia do porão não era nada agradável. Ele não gostava</p><p>do porão e não gostava de descer a escada do porão, porque sempre imaginava que havia</p><p>alguma coisa lá embaixo no escuro. Era bobagem, é claro, o pai e a mãe sempre diziam, e,</p><p>mais importante de tudo, Bill dizia que era bobagem, mas mesmo assim…</p><p>Ele não gostava nem de abrir a porta para acender a luz porque sempre pensava (era uma</p><p>coisa tão idiota que ele não ousava contar para ninguém) que, enquanto estivesse tateando</p><p>atrás do interruptor, uma garra horrível pousaria de leve sobre o pulso dele… e o puxaria para</p><p>baixo, para a escuridão com cheiro de terra e umidade e legumes podres.</p><p>Idiotice! Não existiam coisas com garras, peludas e cheias de ódio assassino. De vez em</p><p>quando alguém ficava louco e matava muita gente (às vezes Chet Huntley contava sobre coisas</p><p>assim no noticiário noturno), e é claro que existiam comunistas, mas não existia nenhum</p><p>monstro estranho morando no porão. Mesmo assim, a ideia não sumia. Naqueles momentos</p><p>intermináveis em que ele procurava o interruptor com a mão direita (com o braço esquerdo</p><p>segurando a maçaneta com força total), aquele cheiro do porão parecia se intensificar até</p><p>encher o mundo. Aromas de terra e umidade de legumes estragados se misturavam com o</p><p>aroma inconfundível e inescapável, o cheiro do monstro, a apoteose de todos os monstros. Era</p><p>o cheiro de uma coisa para a qual ele não tinha nome: o cheiro da Coisa, agachada,</p><p>espreitando e pronta para atacar. Uma criatura que comeria qualquer coisa, mas que estava</p><p>particularmente faminta por carne de garoto.</p><p>Ele abriu a porta naquela manhã e tateou eternamente em busca do interruptor, segurando a</p><p>maçaneta com o aperto habitual, com os olhos fechados com força, a ponta da língua saindo do</p><p>canto da boca como uma trepadeira em agonia em busca de água em um lugar de seca.</p><p>Engraçado? Claro! Pode apostar! Olha pra você, Georgie! Georgie tem medo do escuro! Que</p><p>bebezão!</p><p>O som do piano vinha do que o pai chamava de sala de estar e a mãe chamava de sala de</p><p>visitas. Parecia música do outro mundo, bem distante, como conversas e risadas em uma praia</p><p>lotada no verão devem parecer para o nadador cansado que luta contra a corrente.</p><p>Seus dedos encontraram o interruptor! Ah!</p><p>Eles o viraram…</p><p>… e nada. Nada de luz.</p><p>Ah, droga! A energia!</p><p>George puxou o braço como se estivesse dentro de uma cesta cheia de cobras. Deu um</p><p>passo para longe da porta do porão, com o coração disparado no peito. Não havia energia, é</p><p>claro. Ele tinha esquecido. Que porcaria! E agora? Voltar e dizer para Bill que não podia</p><p>pegar a caixa de parafina porque não havia energia e ele tinha medo de alguma coisa pegá-lo</p><p>quando ele estava na escada do porão, uma coisa que não era um comunista nem um assassino</p><p>em série, mas uma criatura muito pior do que os dois? Que a criatura deslizaria parte do corpo</p><p>podre entre os degraus da escada e agarraria seu tornozelo? Outros poderiam rir dessa</p><p>fantasia, mas Bill não riria. Bill ficaria zangado. Bill diria: “Vê se cresce, Georgie… Você</p><p>quer o barco ou não?”</p><p>Como se esse pensamento fosse uma dica, Bill gritou do quarto:</p><p>— Você m-m-morreu aí, G-Georgie?</p><p>— Não, estou pegando, Bill — gritou George na mesma hora. Ele esfregou os braços para</p><p>tentar fazer os arrepios sumirem e a pele ficar lisa de novo. — Só parei pra tomar um copo de</p><p>água.</p><p>— Então a-anda logo!</p><p>Então ele desceu os quatro degraus até a prateleira do porão, com o coração como um</p><p>martelo quente batendo na garganta, o cabelo da nuca em pé, os olhos ardendo, as mãos frias,</p><p>certo de que a qualquer momento a porta do porão se fecharia sozinha, bloqueando a luz</p><p>branca que entrava pelas janelas da cozinha, e ele ouviria A Coisa, algo pior do que todos os</p><p>comunistas e assassinos do mundo, pior do que os japoneses, pior do que Átila, o Huno, pior</p><p>do que as coisas de cem filmes de terror. A Coisa, rosnando profundamente; ele ouviria o</p><p>rosnado naqueles segundos lunáticos antes de ser atacado e ter as entranhas arrancadas.</p><p>O cheiro de porão estava pior do que nunca por causa da inundação. A casa deles ficava no</p><p>alto na rua Witcham, perto do topo da colina, e eles tinham escapado do pior, mas ainda havia</p><p>água parada lá embaixo que tinha entrado pela velha base de pedras. O cheiro era suave e</p><p>desagradável, e fazia você querer respirar superficialmente.</p><p>George mexeu nas coisas na prateleira o mais rápido que conseguiu: latas velhas de graxa</p><p>de sapatos Kiwi e trapos sujos de graxa, um lampião de querosene quebrado, dois vidros</p><p>quase vazios de Windex, uma velha lata achatada de cera Turtle. Por algum motivo, essa lata</p><p>chamou a atenção dele, e ele passou quase trinta segundos olhando para a tartaruga na tampa</p><p>com uma espécie de assombro hipnótico. Mas então ele a jogou de volta… e ali estava enfim,</p><p>uma caixa quadrada com a palavra GULF escrita.</p><p>George a pegou e subiu correndo a escada o mais rápido que conseguiu, ciente de repente</p><p>de que a parte de trás da camisa estava para fora da calça e certo de que isso seria sua</p><p>desgraça: a coisa no porão permitiria que ele chegasse quase na saída e agarraria a parte de</p><p>trás da camisa, o puxaria para trás e…</p><p>Ele chegou à cozinha e fechou a porta. Ela bateu com força. Ele se recostou nela com os</p><p>olhos fechados, o suor brotando nos braços e na testa, com a caixa de parafina presa com</p><p>força na mão.</p><p>O piano tinha parado, e a voz da mãe chegou até ele:</p><p>— Georgie, não</p><p>CADDY DO BEN.</p><p>E dentro, ao andar em direção ao bar, você encontraria seu homem: magro, queimado de sol,</p><p>usando camisa de cambraia, calça jeans surrada e um par de botas gastas. Havia leves rugas</p><p>ao redor dos olhos dele, mas em nenhuma outra parte. Ele parecia talvez dez anos mais jovem</p><p>do que a idade que realmente tinha, 38 anos.</p><p>— Oi, sr. Hanscom — disse Ricky Lee enquanto colocava um guardanapo de papel sobre o</p><p>balcão do bar e Ben se sentava. Ricky Lee pareceu um tanto surpreso, e realmente estava.</p><p>Nunca tinha visto Hanscom no Wheel em dia de semana antes. Ele ia regularmente todas as</p><p>noites de sexta para tomar duas cervejas, e todas as noites de sábado para quatro ou cinco;</p><p>sempre perguntava sobre os três meninos de Ricky Lee; sempre deixava a mesma gorjeta de 5</p><p>dólares debaixo da caneca quando ia embora. Em termos tanto de conversa profissional</p><p>quanto pessoal, ele era de longe o freguês favorito de Ricky Lee. Os 10 dólares por semana (e</p><p>50 que ele deixou na época de Natal nos últimos cinco anos) eram bons, mas a companhia do</p><p>homem valia bem mais. Companhia boa era sempre uma raridade, mas em uma cidade de fim</p><p>de mundo como essa, onde a conversa sempre era barata, era mais raro do que galinhas com</p><p>dentes.</p><p>Apesar de as raízes de Hanscom serem da Nova Inglaterra e de ele ter estudado em uma</p><p>faculdade da Califórnia, havia mais do que um toque de texano extravagante nele. Ricky Lee</p><p>contava com as paradas de sexta e sábado à noite de Ben Hanscom porque tinha aprendido ao</p><p>longo dos anos que podia contar com elas. O sr. Hanscom podia estar construindo um arranha-</p><p>céu em Nova York (onde já tinha três dos prédios mais falados da cidade), uma galeria de arte</p><p>nova em Redondo Beach ou um prédio comercial em Salt Lake City, mas quando chegava a</p><p>noite de sexta, a porta que levava ao estacionamento sempre se abria entre as 20h e as 21h30 e</p><p>ele entrava, como se morasse do outro lado da cidade e tivesse decidido ir até lá porque não</p><p>havia nada de bom na TV. Ele tinha seu próprio jatinho e uma pista de aterrissagem em sua</p><p>fazenda, em Junkins.</p><p>Dois anos antes, ele tinha ido a Londres, primeiro para o projeto e depois para</p><p>supervisionar a construção do novo centro de comunicações da BBC, um prédio sobre o qual</p><p>a imprensa britânica debatia contra e a favor ardorosamente (o Guardian: “Talvez o prédio</p><p>mais bonito a ser construído em Londres nos últimos vinte anos”; o Mirror: “Além do rosto da</p><p>minha sogra depois de uma turnê por vários bares, é a coisa mais feia que já vi”). Quando o</p><p>sr. Hanscom pegou aquele projeto, Ricky Lee pensou: Bem, algum dia o vejo novamente. Ou</p><p>talvez ele se esqueça de nós. E, de fato, a noite de sexta depois que Ben Hanscom partiu para</p><p>a Inglaterra passou sem sinal dele, embora Ricky Lee tenha olhado rapidamente todas as vezes</p><p>que a porta se abriu entre as 20h e as 21h30. Bem, algum dia o vejo de novo. Talvez. O algum</p><p>dia acabou sendo a noite seguinte. A porta se abriu às 20h45 e ele entrou, usando uma calça</p><p>jeans e uma camiseta com os dizeres GO ’BAMA e as velhas botas, parecendo ter saído apenas do</p><p>outro lado da cidade. E quando Ricky Lee gritou quase com empolgação “Oi, sr. Hanscom!</p><p>Deus! O que você está fazendo aqui?”, o sr. Hanscom pareceu ligeiramente surpreso, como se</p><p>não houvesse nada de estranho no fato de ele estar ali. E isso não aconteceu apenas uma vez;</p><p>ele apareceu todas as noites de sábado durante os dois anos de seu envolvimento ativo com o</p><p>prédio da BBC. Ele saía de Londres todas as manhãs de sábado às 11h de Concorde, contou</p><p>ele a um fascinado Ricky Lee, e chegava ao aeroporto Kennedy em Nova York às 10h15, 15</p><p>minutos antes de ter saído de Londres, ao menos pelo relógio (“Deus, é como uma viagem no</p><p>tempo, não é?” comentara um impressionado Ricky Lee). Uma limusine o esperava para levar</p><p>até o aeroporto Teterboro em Nova Jersey, uma viagem que não costumava durar mais de uma</p><p>hora em uma manhã de sábado. Ele estava no cockpit do jatinho antes do meio-dia sem</p><p>dificuldade alguma e descia em Junkins por volta de 14h30. Se você seguir para o oeste</p><p>rápido o bastante, contou ele a Ricky, o dia parece se prolongar para sempre. Ele tirava um</p><p>cochilo de duas horas, passava uma hora com seu capataz e uma hora com a secretária.</p><p>Jantava e ia para o Red Wheel por uma hora e meia, mais ou menos. Ele sempre ia sozinho,</p><p>sempre se sentava ao balcão do bar e sempre saía como tinha entrado, embora houvesse</p><p>muitas mulheres nessa parte do Nebraska que ficariam felizes de trepar com ele até cansar. Na</p><p>fazenda, ele dormia por seis horas e o processo todo se revertia. Ricky nunca tivera um</p><p>freguês que não se impressionasse com essa história. Talvez ele seja gay, disse uma mulher</p><p>uma vez. Ricky Lee olhou para ela rapidamente, observando o cabelo cuidadosamente</p><p>arrumado, as roupas bem cortadas que sem dúvida tinham etiquetas de marca, os diamantes</p><p>nas orelhas, a expressão no rosto, e soube que ela era de algum lugar no leste, talvez de Nova</p><p>York, em breve visita a um parente ou talvez a uma velha amiga de escola, e mal podia</p><p>esperar para ir embora de novo. Não, respondeu ele. O sr. Hanscom não é boiola. Ela pegou</p><p>um maço de cigarros Doral na bolsa e segurou um entre lábios vermelhos cintilantes até que</p><p>ele acendesse para ela. Como você sabe?, perguntou ela com um leve sorriso. Apenas sei,</p><p>disse ele. E sabia. Ele pensou em dizer para ela: acho que ele é o homem mais solitário que já</p><p>conheci na vida. Mas não ia dizer uma coisa dessas para uma mulher de Nova York que estava</p><p>olhando para ele como se ele fosse uma forma de vida nova e divertida.</p><p>Esta noite, o sr. Hanscom estava um pouco pálido, um pouco distraído.</p><p>— Oi, Ricky Lee — disse ele ao se sentar, e passou a observar as mãos.</p><p>Ricky Lee sabia que ele iria passar os próximos seis ou oito meses em Colorado Springs</p><p>supervisionando o princípio da construção do Centro Cultural dos Estados Montanhosos, um</p><p>complexo de seis prédios que seria entalhado na lateral de uma montanha. Quando estiver</p><p>pronto, as pessoas vão dizer que parece que um garoto gigante deixou os blocos de</p><p>brinquedo espalhados em uma escada, dissera Ben para Ricky Lee. Pelo menos algumas</p><p>vão, e vão estar ao menos parcialmente certas. Mas acho que vai dar certo. É a maior coisa</p><p>que já tentei, e erguê-lo vai ser apavorante, mas acho que vai dar certo.</p><p>Ricky Lee supunha que era possível que o sr. Hanscom estivesse com um toque de pânico.</p><p>Não havia nada de surpreendente nisso, e também nada de errado. Quando você ficava grande</p><p>o bastante para que reparassem em você, estava grande o bastante para tentarem atingir você.</p><p>Ou talvez ele estivesse com algum vírus. Havia um bem potente por aí.</p><p>Ricky Lee pegou uma caneca no balcão do bar e foi em direção à torneira de chope</p><p>Olympia.</p><p>— Não faça isso, Ricky Lee.</p><p>Ricky Lee se virou, surpreso. E quando Ben Hanscom ergueu o olhar, sentiu medo</p><p>repentinamente. Porque o sr. Hanscom não parecia estar em pânico, nem com o vírus que</p><p>estava se espalhando, nem nada do tipo. Ele parecia ter sofrido um golpe terrível e ainda estar</p><p>tentando entender o que o tinha atingido.</p><p>Alguém morreu. Ele não é casado, mas todo homem tem família, e alguém na dele acabou</p><p>de bater as botas. Foi isso que aconteceu, tão certo quanto a merda desce pelo esgoto de</p><p>um banheiro.</p><p>Alguém colocou uma moeda na jukebox, e Barbara Mandrell começou a cantar sobre um</p><p>homem bêbado e uma mulher solitária.</p><p>— Você está bem, sr. Hanscom?</p><p>Ben Hanscom olhou para Ricky Lee com olhos que de repente pareceram dez, não, vinte</p><p>anos mais velhos do que o resto do rosto, e Ricky Lee ficou surpreso de observar que o cabelo</p><p>do sr. Hanscom estava ficando grisalho. Nunca tinha reparado em um traço grisalho no cabelo</p><p>dele antes.</p><p>Hanscom sorriu. O sorriso foi medonho, horrível. Era como ver um cadáver sorrir.</p><p>— Acho que não, Ricky Lee. Não, senhor. Não hoje. Nem um pouco.</p><p>Ricky Lee colocou a caneca no balcão e andou de volta até onde Hanscom estava. O bar</p><p>estava tão vazio quanto um bar bem distante da temporada de futebol numa noite de segunda</p><p>pode ficar. Annie estava sentada ao lado da porta na</p><p>cozinha, jogando cribbage com o</p><p>cozinheiro.</p><p>— Más notícias, sr. Hanscom?</p><p>— Más notícias, isso mesmo. Más notícias vindas de casa. — Ele olhou para Ricky Lee.</p><p>Olhou através de Ricky Lee.</p><p>— Lamento ouvir isso, sr. Hanscom.</p><p>— Obrigado, Ricky Lee.</p><p>Ele ficou em silêncio, e Ricky Lee estava prestes a perguntar se havia alguma coisa que ele</p><p>pudesse fazer quando Hanscom disse:</p><p>— Qual é o seu uísque da casa, Ricky Lee?</p><p>— Pra todo mundo nesse buraco é Four Roses — disse Ricky Lee. — Mas pra você pode</p><p>ser Wild Turkey.</p><p>Hanscom deu um pequeno sorriso ao ouvir isso.</p><p>— É legal da sua parte, Ricky Lee. Acho que é melhor você pegar a caneca, afinal. O que</p><p>você deve fazer é encher de Wild Turkey.</p><p>— Encher? — perguntou Ricky Lee, sinceramente atônito. — Meu Deus, eu vou ter que</p><p>rolar você daqui! — Ou chamar uma ambulância, pensou ele.</p><p>— Hoje, não — disse Hanscom. — Acho que não.</p><p>Ricky Lee olhou cuidadosamente nos olhos do sr. Hanscom para ver se ele podia estar</p><p>brincando e levou menos de um segundo para ver que não. Assim, ele pegou a caneca no</p><p>balcão e a garrafa de Wild Turkey em uma das prateleiras abaixo. O gargalo da garrafa bateu</p><p>na beirada da caneca quando ele começou a servir. Ele viu o uísque escorrer, fascinado</p><p>apesar de tudo. Ricky Lee decidiu que era mais do que um toque do texano que o sr. Hanscom</p><p>tinha em si: essa tinha que ser a maior dose de uísque que ele já servira ou jamais serviria na</p><p>vida.</p><p>Chamar uma ambulância o cacete. Se ele beber isso, vou ligar pra Parker e Waters em</p><p>Swedholm pra trazerem o rabecão.</p><p>De qualquer modo, ele levou a caneca e colocou na frente de Hanscom; o pai de Ricky Lee</p><p>uma vez disse para ele que se um homem estava em seu estado normal, você tinha que dar para</p><p>ele o que ele quisesse comprar, fosse mijo ou veneno. Ricky Lee não sabia se era um conselho</p><p>bom ou ruim, mas sabia que, se você atendia em um bar para se sustentar, ajudava bastante a</p><p>impedir que você fosse massacrado pela própria consciência.</p><p>Hanscom olhou para o drinque gigantesco de forma pensativa por um momento e perguntou:</p><p>— Quanto te devo por uma dose dessas, Ricky Lee?</p><p>Ricky Lee balançou a cabeça devagar, ainda vidrado na caneca de uísque, sem querer</p><p>levantar a cabeça e encontrar aqueles olhos fundos e arregalados.</p><p>— Não — disse ele. — Esse é por conta da casa.</p><p>Hanscom sorriu de novo, desta vez com mais naturalidade.</p><p>— Nossa, obrigado, Ricky Lee. Agora vou te mostrar uma coisa que aprendi no Peru em</p><p>1978. Eu estava trabalhando com um cara chamado Frank Billings, aprendendo com ele, acho</p><p>que se pode dizer. Frank Billings era o melhor arquiteto do mundo na minha opinião. Ele</p><p>pegou uma febre e os médicos injetaram um bilhão de antibióticos diferentes nele, e nenhum</p><p>baixou a febre. Ele ardeu por duas semanas e morreu. O que vou te mostrar aprendi com</p><p>índios locais trabalhando no projeto. A birita local é bastante potente. Você toma um gole e</p><p>acha que está descendo suave, sem problemas, mas de repente parece que alguém acendeu um</p><p>maçarico na sua boca e apontou pra sua garganta. Mas os índios bebem como Coca-Cola, e</p><p>raramente vi um bêbado, e nunca vi um de ressaca. Nunca tive coragem de testar o jeito deles.</p><p>Mas acho que vou experimentar hoje. Me traz umas bandas de limão.</p><p>Ricky Lee pegou quatro e colocou sobre um guardanapo ao lado da caneca de uísque.</p><p>Hanscom pegou um pedaço, inclinou a cabeça para trás como um homem prestes a colocar</p><p>colírio nos olhos e começou a espremer o suco de limão direto na narina direita.</p><p>— Puta merda! — disse Ricky Lee horrorizado.</p><p>A garganta de Hanscom se contraiu. Seu rosto ficou vermelho… e então Ricky Lee viu</p><p>lágrimas escorrendo pelas laterais do rosto em direção às orelhas. Agora os Spinners estavam</p><p>tocando, cantando sobre o homem-elástico. “Ah, Deus, não sei quanto disso sou capaz de</p><p>suportar”, cantaram os Spinners.</p><p>Hanscom tateou cegamente pelo bar, encontrou outro pedaço de limão e espremeu o suco na</p><p>outra narina.</p><p>— Você vai se matar, porra — sussurrou Ricky Lee.</p><p>Hanscom jogou os dois pedaços de limão espremido no balcão. Seus olhos estavam</p><p>vermelhos e ele respirava ofegante e fazendo caretas. Suco de limão pingava das duas narinas</p><p>dele e escorria até os cantos da boca. Ele pegou a caneca, levantou e bebeu um terço.</p><p>Paralisado, Ricky Lee viu o pomo de Adão dele subir e descer.</p><p>Hanscom colocou a caneca no balcão, tremeu duas vezes e assentiu. Olhou para Ricky Lee</p><p>e sorriu um pouco. Seus olhos não estavam mais vermelhos.</p><p>— Funciona como eles disseram que funcionaria. Você fica tão preocupado com o nariz</p><p>que não sente o que está descendo pela garganta.</p><p>— Você é louco, sr. Hanscom — disse Ricky Lee.</p><p>— Pode apostar seu couro nisso — disse o sr. Hanscom. — Se lembra dessa, Ricky Lee?</p><p>Dizíamos isso quando éramos crianças. “Pode apostar seu couro nisso.” Já te contei que eu</p><p>era gordo?</p><p>— Não, senhor, nunca — sussurrou Ricky Lee. Ele agora estava convencido de que o sr.</p><p>Hanscom tinha recebido uma notícia tão terrível que o homem tinha mesmo enlouquecido… ou</p><p>pelo menos abandonado temporariamente a sensatez.</p><p>— Eu era um tremendo balofo. Nunca joguei beisebol nem basquete, sempre era o primeiro</p><p>a pegarem quando brincava de pique-pega, não fazia nenhum esforço a mais do que o mínimo</p><p>necessário. Eu era gordo mesmo. E havia uns caras na minha cidade que iam sempre atrás de</p><p>mim. Tinha um cara chamado Reginald Huggins, só que todo mundo chamava ele de Arroto.</p><p>Um garoto chamado Victor Criss. Alguns outros. Mas o verdadeiro cérebro do grupo era um</p><p>sujeito chamado Henry Bowers. Se já houve um garoto genuinamente mau andando pela face</p><p>da Terra, Ricky Lee, Henry Bowers era esse garoto. Eu não era o único que ele perseguia;</p><p>meu problema era que eu não conseguia correr tão rápido quanto os outros.</p><p>Hanscom desabotoou a camisa e abriu. Ricky Lee se inclinou para a frente e viu uma</p><p>cicatriz estranha e retorcida na barriga do sr. Hanscom, bem acima do umbigo. Inchada,</p><p>branca e velha. Era uma letra, reparou ele. Alguém tinha desenhado a letra “H” na barriga do</p><p>sujeito, provavelmente bem antes de o sr. Hanscom se tornar um homem.</p><p>— Henry Bowers fez isso comigo. Há uns mil anos. Tenho sorte de não estar com o nome</p><p>dele todo aqui.</p><p>— Sr. Hanscom…</p><p>Hanscom pegou as outras duas fatias de limão, uma com cada mão, inclinou a cabeça para</p><p>trás e pingou como descongestionante nasal. Ele tremeu intensamente, colocou-as de lado e</p><p>tomou dois grandes goles da caneca. Tremeu de novo, tomou outro gole e tateou em busca da</p><p>beirada do balcão do bar com os olhos fechados. Por um momento, segurou-se como um</p><p>homem em um veleiro se segurando para se apoiar no mar agitado. Em seguida, abriu os olhos</p><p>de novo e sorriu para Ricky Lee.</p><p>— Eu podia montar esse touro a noite toda — disse ele.</p><p>— Sr. Hanscom, eu gostaria que você não fizesse mais isso — disse Ricky Lee</p><p>nervosamente.</p><p>Annie se aproximou com a bandeja e pediu duas Miller. Ricky Lee serviu e levou até ela.</p><p>Estava com as pernas bambas.</p><p>— O sr. Hanscom está bem, Ricky Lee? — perguntou Annie. Ela estava olhando para trás</p><p>de Ricky Lee, e ele se virou para acompanhar o olhar dela. O sr. Hanscom estava inclinado</p><p>sobre o bar escolhendo cuidadosamente pedaços de limão no recipiente onde Ricky Lee</p><p>deixava as decorações dos drinques.</p><p>— Não sei — disse ele. — Acho que não.</p><p>— Então tira o dedo do cu e faz alguma coisa. — Como a maior parte das outras mulheres,</p><p>Annie tinha uma quedinha por Ben Hanscom.</p><p>— Não sei. Meu pai sempre dizia que se um homem está em seu estado normal…</p><p>— Seu pai não tinha um cérebro tão bom quanto o de um esquilo — disse Annie. —</p><p>Esquece seu pai. Você tem que acabar com isso, Ricky Lee. Ele vai se matar.</p><p>Após receber tais ordens, Ricky Lee voltou para onde Ben Hanscom estava.</p><p>— Sr. Hanscom, acho que você bebeu o bast…</p><p>Hanscom inclinou a cabeça para trás. Espremeu. Na verdade, inalou o suco de limão desta</p><p>vez, como se fosse cocaína. Bebeu o uísque como se fosse água. Olhou para Ricky Lee</p><p>solenemente.</p><p>— Bing-bang, vi toda a gangue dançando no tapete da minha sala — disse ele e riu. Havia</p><p>cerca de 5 centímetros de uísque na caneca</p><p>agora.</p><p>— Já chega — disse Ricky Lee e esticou a mão para pegar a caneca.</p><p>Hanscom a tirou delicadamente do alcance dele.</p><p>— O dano já foi feito, Ricky Lee — disse ele. — O dano já foi feito, meu garoto.</p><p>— Sr. Hanscom, por favor…</p><p>— Tenho uma coisa pros seus garotos, Ricky Lee. Caramba, quase esqueci!</p><p>Ele estava usando um colete jeans surrado e enfiou a mão em um dos bolsos. Ricky Lee</p><p>ouviu um estalo seco.</p><p>— Meu pai morreu quando eu tinha 4 anos — disse Hanscom. A voz dele não estava em</p><p>nada arrastada. — Nos deixou um bando de dívidas e isto. Quero que seus filhos fiquem com</p><p>eles, Ricky Lee. — Ele colocou três reluzentes dólares de prata sobre o balcão do bar, onde</p><p>brilharam sob as luzes suaves. Ricky Lee prendeu a respiração.</p><p>— Sr. Hanscom, é muita gentileza, mas eu não poderia…</p><p>— Eram quatro, mas dei um pro Bill Gago e pros outros. Bill Denbrough, esse era o nome</p><p>dele. Bill Gago era como a gente chamava ele… Era só uma coisa que a gente dizia, como</p><p>“pode apostar seu couro nisso”. Foi um dos melhores amigos que já tive, e tive alguns, sabe.</p><p>Até um garoto gordo como eu tinha amigos. Bill Gago é escritor agora.</p><p>Ricky Lee mal o escutou. Estava olhando para os dólares de prata com fascinação. 1921,</p><p>1923 e 1924. Só Deus sabia o quanto valiam agora, e apenas pelo fato da prata pura que</p><p>continham.</p><p>— Não posso — disse ele de novo.</p><p>— Mas eu insisto.</p><p>O sr. Hanscom pegou a caneca e bebeu até o fim. Ele devia estar caindo de bêbado, mas</p><p>seus olhos não se afastaram dos de Ricky Lee. Aqueles olhos estavam lacrimejantes e muito</p><p>injetados de sangue, mas Ricky Lee poderia jurar sobre uma pilha de Bíblias que também</p><p>eram os olhos de um homem sóbrio.</p><p>— Você está me assustando um pouco, sr. Hanscom — disse Ricky Lee.</p><p>Dois anos antes, Gresham Arnold, um bêbado de fama local, entrou no Red Wheel com um</p><p>tubinho de moedas de 25 centavos em uma das mãos e uma nota de 20 dólares enfiada na tira</p><p>do chapéu. Ele entregou o tubinho para Annie com instruções de colocar as moedas na jukebox</p><p>de quatro em quatro. Colocou a nota de vinte no bar e instruiu Ricky Lee a servir bebidas para</p><p>todos. Esse bêbado, Gresham Arnold, tinha sido um jogador de basquete famoso muito antes</p><p>no Hemingford Rams e os levou ao primeiro (e provavelmente último) campeonato escolar.</p><p>Foi em 1961. Um futuro quase ilimitado parecia se abrir à frente do jovem. Mas ele ficou</p><p>reprovado na Louisiana State University no primeiro semestre, vítima da bebedeira, drogas e</p><p>noitadas de farra. Ele voltou para casa, destruiu o conversível amarelo que os pais tinham</p><p>dado a ele como presente de formatura e arrumou um emprego de vendedor-chefe de produtos</p><p>agrícolas John Deere, na loja do pai. Cinco anos se passaram. O pai não conseguia suportar a</p><p>ideia de demiti-lo; acabou vendendo a loja e se aposentou no Arizona, um homem assombrado</p><p>e envelhecido antes da época pela degeneração inexplicável e aparentemente irreversível do</p><p>filho. Enquanto a loja ainda era do pai e ele ao menos fingia trabalhar, Arnold se esforçou</p><p>para ficar longe da bebida; depois, ela o dominou por completo. Ele podia ser cruel, mas</p><p>estava doce como chiclete na noite em que levou as moedas e pagou bebidas para todos, e</p><p>todos agradeceram com sinceridade; Annie ficou colocando músicas de Moe Bandy porque</p><p>Gresham Arnold gostava de Moe Bandy. Ele ficou sentado ali no bar, no mesmo banco onde o</p><p>sr. Hanscom estava sentado agora, percebeu Ricky Lee com desconforto crescente, e tomou</p><p>três ou quatro uísques com licor de ervas; cantou com a jukebox, não provocou confusão e foi</p><p>para casa quando Ricky Lee fechou o Wheel; ele se enforcou com o cinto pendurado em um</p><p>armário embutido do andar de cima. Os olhos de Gresham Arnold naquela noite estavam um</p><p>pouco parecidos com os de Ben Hanscom naquele momento.</p><p>— Estou te assustando um pouco, é? — perguntou Hanscom, sem tirar os olhos de Ricky</p><p>Lee. Ele afastou a caneca e cruzou os braços na frente dos três dólares de prata. — Devo</p><p>estar. Mas você não está com tanto medo quanto eu, Ricky Lee. Reze pra Jesus pra nunca ficar.</p><p>— Bem, qual é o problema? — perguntou Ricky Lee. — Talvez… — Ele molhou os</p><p>lábios. — Talvez eu possa ajudar.</p><p>— O problema? — Ben Hanscom riu. — Ah, não muito. Recebi hoje a ligação de um velho</p><p>amigo. Um cara chamado Mike Hanlon. Eu tinha me esquecido completamente dele, Ricky</p><p>Lee, mas isso não me assustou muito. Afinal, eu era apenas um garoto quando conheci ele, e</p><p>garotos se esquecem das coisas, não? Claro que esquecem. Pode apostar seu couro nisso. O</p><p>que me assustou foi chegar na metade do caminho até aqui e perceber que não foi só de Mike</p><p>que me esqueci. Eu tinha esquecido tudo de quando era criança.</p><p>Ricky Lee apenas olhou para ele. Ele não fazia ideia do que o sr. Hanscom estava falando,</p><p>mas o homem estava mesmo com medo. Não havia dúvida disso. Caía de uma maneira</p><p>estranha em Ben Hanscom, mas era real.</p><p>— Eu quero dizer que tinha esquecido tudo sobre isso — disse ele, e bateu os dedos</p><p>dobrados de leve no bar para enfatizar. — Você já ouviu falar, Ricky Lee, de uma amnésia tão</p><p>completa que você nem sabia que estava com amnésia?</p><p>Ricky Lee balançou a cabeça.</p><p>— Nem eu. Mas ali estava eu, dirigindo o Caddy, e de repente eu lembrei. Eu me lembrei</p><p>de Mike Hanlon, mas só porque ele me ligou. Eu me lembrei de Derry, mas só porque era de</p><p>onde ele estava ligando.</p><p>— Derry?</p><p>— Mas isso foi tudo. Eu percebi que nem pensava na época de criança desde… desde nem</p><p>sei quando. E então, de repente, tudo começou a voltar. Como o que fizemos com o quarto</p><p>dólar de prata.</p><p>— O que vocês fizeram com ele, sr. Hanscom?</p><p>Hanscom olhou para o relógio e de repente desceu do banco. Cambaleou um pouco, bem</p><p>pouco. Só isso.</p><p>— Não posso deixar o tempo fugir — disse ele. — Vou voar hoje.</p><p>Ricky Lee ficou imediatamente alarmado, e Hanscom riu.</p><p>— Vou voar, mas não pilotar. Não desta vez. Vou de United Airlines, Ricky Lee.</p><p>— Ah. — Ele achou que o alívio ficou evidente em seu rosto, mas não se importou. — Pra</p><p>onde você vai?</p><p>A camisa de Hanscom ainda estava aberta. Ele olhou pensativamente para as linhas brancas</p><p>e inchadas da velha cicatriz na barriga e começou a abotoar a camisa.</p><p>— Pensei que já tivesse dito, Ricky Lee. Pra casa. Vou pra casa. Dê os dólares de prata</p><p>pros seus filhos. — Ele saiu andando em direção à porta, e tinha alguma coisa no jeito como</p><p>ele andou, até no jeito como puxou as laterais da calça, que apavorou Ricky Lee. A</p><p>similaridade com o falecido e nada lamentado Gresham Arnold foi tão intensa de repente que</p><p>foi quase como ver um fantasma.</p><p>— Sr. Hanscom! — gritou ele alarmado.</p><p>Hanscom se virou, e Ricky Lee deu um passo rápido para trás. Sua bunda bateu na</p><p>prateleira de trás do bar e houve som de vidro quando as garrafas bateram umas nas outras.</p><p>Ele deu um passo para trás porque ficou convencido de repente de que Ben Hanscom estava</p><p>morto. Sim, Ben Hanscom estava deitado e morto em algum lugar, em uma vala ou sótão ou</p><p>possivelmente um armário com o cinto ao redor do pescoço e a ponta das botas de 400</p><p>dólares penduradas a quase 5 centímetros do chão, e essa coisa de pé perto da jukebox</p><p>olhando para ele era um fantasma. Por um momento, só um momento, mas longo o bastante</p><p>para cobrir seu coração de trabalhador com uma camada de gelo, ele se convenceu de que</p><p>conseguia ver mesas e cadeiras através do homem.</p><p>— O que é, Ricky Lee?</p><p>— Na-n-na. Nada.</p><p>Ben Hanscom olhou para Ricky Lee com olhos que tinham crescentes roxos embaixo. Suas</p><p>bochechas ardiam pela bebida; o nariz estava vermelho e irritado.</p><p>— Nada — sussurrou Ricky Lee de novo, mas não conseguiu tirar os olhos daquele rosto, o</p><p>rosto de um homem que morreu afundado em pecado e agora está rígido na porta lateral e</p><p>fumegante do inferno.</p><p>— Eu era gordo e nós éramos pobres — disse Ben Hanscom. — Me lembro disso agora. E</p><p>lembro que ou uma garota chamada Beverly ou Bill Gago salvou minha vida com um dólar de</p><p>prata. Tenho um medo quase louco de qualquer outra coisa que eu possa lembrar antes que a</p><p>noite de hoje acabe, mas o tamanho do medo que eu sinto não importa, porque vai voltar de</p><p>qualquer jeito.</p><p>Está tudo aqui, como uma bolha enorme crescendo na minha mente. Mas eu</p><p>vou, porque tudo que já consegui e tudo que tenho agora está ligado ao que fizemos naquela</p><p>época, e você paga pelo que recebe neste mundo. Talvez seja por isso que Deus nos fez</p><p>crianças primeiro e nos colocou mais perto do chão, porque Ele sabe que é preciso cair muito</p><p>e sangrar muito pra aprender essa simples lição. Você paga pelo que recebe, você é dono</p><p>daquilo pelo que pagou… e mais cedo ou mais tarde, o que é seu volta pra casa, pra você.</p><p>— Mas você volta no fim de semana, não volta? — perguntou Ricky Lee com lábios</p><p>dormentes. Em sua crescente aflição, isso foi tudo a que ele conseguiu se apegar. — Você vai</p><p>voltar no fim de semana como sempre, não vai?</p><p>— Não sei — disse o sr. Hanscom, e deu um sorriso terrível. — Vou bem mais longe do</p><p>que Londres desta vez, Ricky Lee.</p><p>— Sr. Hanscom…!</p><p>— Dê aqueles dólares de prata pros seus filhos — repetiu ele, e saiu para a noite.</p><p>— Que porra…? — perguntou Annie, mas Ricky Lee a ignorou. Ele levantou a parte móvel</p><p>da bancada do bar e correu até uma das janelas que davam para o estacionamento. Viu os</p><p>faróis do Cadillac do sr. Hanscom se acenderem, ouviu o motor dar ré. Ele saiu do</p><p>estacionamento de terra levantando um tapete de poeira atrás. Os faróis traseiros diminuíram</p><p>até virarem pontos vermelhos na rodovia 63, e o vento noturno do Nebraska começou a</p><p>espalhar a terra que estava no ar.</p><p>— Ele tomou uma tonelada de álcool e você deixou ele entrar naquele carrão dele e ir</p><p>embora dirigindo — disse Annie. — Parabéns, Ricky Lee.</p><p>— Deixa pra lá.</p><p>— Ele vai se matar.</p><p>E apesar de esse ter sido o pensamento do próprio Ricky Lee menos de cinco minutos</p><p>antes, ele se virou para ela quando os faróis sumiram e balançou a cabeça.</p><p>— Não acho — disse ele. — Embora, pela forma como ele estava hoje, talvez fosse</p><p>melhor se ele se matasse.</p><p>— O que ele disse pra você?</p><p>Ele balançou a cabeça. Estava tudo confuso em sua mente, e o todo não parecia querer</p><p>dizer nada.</p><p>— Não importa. Mas acho que nunca mais vamos ver esse velho camarada.</p><p>4</p><p>Eddie Kaspbrak toma seu remédio</p><p>Se você quisesse saber tudo que se tem para saber</p><p>sobre um homem ou mulher americanos de classe</p><p>média conforme o milênio se aproxima do final, só</p><p>precisaria olhar o armário de remédios, ou é o que</p><p>dizem. Mas, meu Deus, dê uma olhada neste agora</p><p>que Eddie Kaspbrak o abre, felizmente fazendo seu</p><p>rosto branco e seus olhos arregalados</p><p>desaparecerem.</p><p>Na prateleira superior há Anacin, Excedrin, Excedrin noturno, Contac, Gelusil, Tylenol e</p><p>um vidro grande de pastilhas Vick, que parece um céu anoitecendo guardado dentro de um</p><p>vidro. Há um vidro de Vivarin, um de Serutan (É “Nature’s” de trás pra frente , diziam os</p><p>anúncios do programa de Lawrence Welk quando Eddie Kaspbrak era um garotinho), e dois</p><p>vidros de Leite de Magnésia Phillips, um do tipo comum, com gosto de giz líquido, e o outro</p><p>do novo com sabor de menta, com gosto de giz líquido com gosto de menta. Há um vidro</p><p>grande de Rolaids ao lado de um vidro grande de Tums. O Tums está ao lado de um vidro</p><p>grande de pastilhas Di-Gel sabor laranja. Os três parecem um trio de cofrinhos estranhos,</p><p>cheios de comprimidos em vez de moedas.</p><p>Na segunda prateleira ficam as vitaminas: tem vitamina E, tem C, tem C com rosehips. Tem</p><p>vitamina B simples e complexo B e B12. Tem L-Lisina, que serve para ajudar naqueles</p><p>problemas constrangedores de pele, e lecitina, que é para resolver o acúmulo constrangedor</p><p>de colesterol no coração e perto dele. Tem ferro, cálcio e óleo de fígado de bacalhau. Tem</p><p>One-A-Day múltiplo, Myadec múltiplo, Centrum múltiplo. E em cima do armário em si, há um</p><p>vidro gigantesco de Geritol, só por garantia.</p><p>Indo para a terceira prateleira de Eddie, encontramos os jogadores utilitários do mundo da</p><p>medicina patenteada. Ex-Lax. Carter’s Little Pills. Os dois mantinham o funcionamento do</p><p>intestino de Eddie Kaspbrak. Bem perto está o Kaopectate, o Pepto-Bismol e o Preparation H</p><p>para o caso de o funcionamento ser rápido demais ou doloroso demais. Havia também Tucks</p><p>em um vidro de tampa de rosca para manter tudo limpo depois que o serviço acabou, fosse em</p><p>que quantidade fosse. Tem Formula 44 para tosse, Nyquil e Dristan para resfriados e um vidro</p><p>grande de óleo de castor. Há uma lata de Sucrets para o caso de a garganta de Eddie inflamar,</p><p>e há um quarteto de enxaguantes bucais: Chloraseptic, Cepacol, Cepestat spray e, é claro, o</p><p>velho e bom Listerine, frequentemente imitado, mas nunca duplicado. Visine e Murine para os</p><p>olhos. Pomadas Cortaid e Neosporin para a pele (a segunda linha de defesa caso a L-Lisina</p><p>não atinja as expectativas), um tubo de Oxy-5 e uma garrafa plástica de Oxy-Wash (porque</p><p>Eddie preferia ter menos centavos a mais espinhas) e alguns comprimidos de tetraciclina.</p><p>E, em um dos lados, reunidos como conspiradores ressentidos, há três vidros de xampu de</p><p>alcatrão.</p><p>A prateleira de baixo está quase vazia, mas o que tem nela é coisa séria. Dava para viajar</p><p>com essas coisas. Com elas, você podia voar mais alto do que o avião de Ben Hanscom e cair</p><p>com mais força do que o de Thurman Munson. Tem Valium, Percodan, Elavil e Darvon</p><p>Complex. Tem também outra caixa de Sucrets na prateleira de baixo, mas não tem Sucrets</p><p>dentro. Se você a abrisse, encontraria seis Quaaludes.</p><p>Eddie Kaspbrak acreditava no lema dos escoteiros.</p><p>Ele estava carregando uma bolsa azul quando entrou no banheiro. Colocou-a na pia, abriu</p><p>e, com mãos trêmulas, começou a colocar vidros, garrafas, tubos e sprays lá dentro. Sob</p><p>outras circunstâncias, ele os teria pegado cuidadosamente, mas não havia tempo para</p><p>gentilezas agora. A escolha, pelo ponto de vista de Eddie, era tão simples quanto brutal:</p><p>começar a se mover e continuar em movimento ou ficar parado em um lugar tempo o bastante</p><p>para começar a pensar no que tudo isso queria dizer e simplesmente morrer de medo.</p><p>— Eddie? — gritou Myra do andar de baixo. — Eddie, o que você está fazeeeendo?</p><p>Eddie colocou a caixa de Sucrets com os Quaaludes na bolsa. O armário de remédios</p><p>estava agora quase vazio, exceto pelo Midol de Myra e um tubo pequeno e quase terminado de</p><p>Blistex. Ele começou a fechar o zíper da bolsa, ficou em dúvida e colocou o Midol na bolsa</p><p>também. Ela sempre podia comprar mais.</p><p>— Eddie? — Vindo agora da metade da escada.</p><p>Eddie fechou o resto da bolsa e saiu do banheiro com ela pendurada ao lado do corpo. Era</p><p>um homem baixo com um tipo de rosto tímido de coelho. Ele tinha perdido a maior parte do</p><p>cabelo; o que sobrara crescia em aglomerados aleatórios. O peso da bolsa o deixava</p><p>claramente inclinado para um dos lados.</p><p>Uma mulher extremamente gorda estava subindo lentamente para o segundo andar. Eddie</p><p>conseguia ouvir a escada estalar em protesto debaixo dela.</p><p>— O que você está FAZEEEEEENDO?</p><p>Eddie não precisava que um psicólogo dissesse para ele que, de certa forma, se casara com</p><p>a própria mãe. Myra Kaspbrak era enorme. Era apenas grande quando Eddie se casara com</p><p>ela cinco anos antes, mas ele às vezes pensava que seu subconsciente vira o potencial para</p><p>enormidade nela; Deus sabia que a mãe dele era gigantesca. E ela parecia maior do que nunca</p><p>ao chegar ao segundo andar. Estava usando uma camisola branca que inchava em ondas nos</p><p>seios e quadris. O rosto dela, sem maquiagem nenhuma, estava branco e brilhoso. Ela parecia</p><p>muito assustada.</p><p>— Tenho que viajar por um tempo — disse Eddie.</p><p>— O que você quer dizer com tem que viajar? O que foi aquele telefonema?</p><p>— Nada — disse ele, descendo abruptamente pelo corredor até o closet. Ele colocou a</p><p>bolsa no chão, abriu a porta do armário e mexeu na meia dúzia de ternos pretos idênticos que</p><p>estavam pendurados ali, tão ostensivos quanto uma nuvem de tempestade em meio a outras</p><p>roupas mais coloridas. Ele sempre usava um dos ternos pretos quando estava trabalhando.</p><p>Inclinou-se para dentro do armário, sentiu o cheiro de naftalina e lã e puxou uma das malas</p><p>que estavam atrás. Abriu-a e começou a jogar roupas dentro.</p><p>A sombra dela caiu sobre ele.</p><p>— De que se trata isso, Eddie? Pra onde você vai? Me diz!</p><p>— Não</p><p>posso dizer.</p><p>Ela ficou ali observando-o, tentando decidir o que dizer ou o que fazer. A ideia de</p><p>empurrá-lo para dentro do closet e ficar com as costas na porta até essa loucura passar cruzou</p><p>sua mente, mas ela não conseguiu fazer isso, apesar de ser capaz; era 8 centímetros mais alta</p><p>do que Eddie e 50 quilos mais pesada. Não conseguia pensar no que fazer ou dizer porque</p><p>isso era tão incomum para ele. Ela não teria ficado mais consternada e assustada se tivesse</p><p>entrado na sala de TV e encontrado a TV de tela grande flutuando no ar.</p><p>— Você não pode ir — ela se ouviu dizer. — Prometeu que ia conseguir pra mim o</p><p>autógrafo do Al Pacino. — Era um absurdo, Deus sabia que era, mas àquelas alturas, até um</p><p>absurdo era melhor do que nada.</p><p>— Você ainda vai ter seu autógrafo — disse Eddie. — Vai ter que dirigir pra ele.</p><p>Ah, aqui estava um novo terror para juntar-se aos que já rodopiavam pela pobre cabeça</p><p>tonta de Myra. Ela deu um pequeno grito.</p><p>— Não posso… Eu nunca…</p><p>— Você vai ter que ir — disse ele. Estava examinando os sapatos agora. — Não tem mais</p><p>ninguém.</p><p>— Nenhum dos meus uniformes cabe mais! Estão apertados demais nos peitos!</p><p>— Mande Delores afrouxar um deles — disse ele de forma implacável.</p><p>Ele pegou dois pares de sapatos, encontrou uma caixa de sapato vazia e colocou um</p><p>terceiro dentro dela. Bons e velhos sapatos pretos, que ainda durariam muito tempo, mas</p><p>estavam um pouco gastos demais para usar no trabalho. Quando você trabalhava dirigindo</p><p>para pessoas ricas em Nova York, muitas delas pessoas ricas e famosas, tudo tinha que</p><p>parecer perfeito. Esses sapatos não pareciam mais perfeitos… mas ele achava que serviam</p><p>para onde ele estava indo. E para o que quer que ele tivesse que fazer quando chegasse lá.</p><p>Talvez Rich Tozier…</p><p>Mas então a escuridão ameaçou e ele sentiu a garganta começando a fechar. Eddie se deu</p><p>conta com pânico verdadeiro de que tinha colocado a farmácia inteira na bolsa e tinha deixado</p><p>a coisa mais importante, seu inalador, no andar de baixo, em cima da estante do som.</p><p>Ele fechou a mala e trancou. Olhou para Myra, que estava de pé no corredor com a mão</p><p>apertando o pescoço grosso e curto como se fosse ela quem tivesse asma. Estava olhando para</p><p>ele, com o rosto cheio de perplexidade e terror, e ele poderia ter sentido pena dela se seu</p><p>coração já não estivesse tão cheio de pavor por si mesmo.</p><p>— O que aconteceu, Eddie? Quem era ao telefone? Você está encrencado? Está, não está?</p><p>Em que tipo de problema se meteu?</p><p>Ele andou em direção a ela, com a bolsa em uma das mãos e a mala na outra, mais ou</p><p>menos ereto agora que o peso nas mãos estava mais bem distribuído. Ela ficou na frente dele e</p><p>bloqueou a passagem da escada, e a princípio ele achou que ela não se afastaria. Mas quando</p><p>o rosto dele estava prestes a se chocar contra o bloqueio macio que eram os seios dela, ela</p><p>chegou para o lado… com medo. Quando ele passou por ela, sem diminuir a velocidade, ela</p><p>começou a chorar lágrimas infelizes.</p><p>— Não posso dirigir pro Al Pacino! — gritou ela. — Vou bater em uma placa ou em</p><p>algum outro lugar, eu sei! Eddie, estou com meeedo!</p><p>Ele olhou para o relógio Seth Thomas sobre a mesa ao lado da escada. Nove e vinte. O</p><p>funcionário da Delta com voz enlatada disse que ele já tinha perdido o último voo para o</p><p>norte, para o Maine, o que saiu de La Guardia às 20h25. Ele ligou para Amtrak e descobriu</p><p>que havia um trem noturno para Boston saindo da Penn Station às 23h30, que o deixaria na</p><p>South Station, onde ele podia pegar um táxi até o escritório da Cape Cod Limousine na rua</p><p>Arlington. Cape Cod e a empresa de Eddie, Royal Crest, fizeram um acordo útil e</p><p>amigavelmente recíproco ao longo dos anos. Uma ligação rápida para Butch Carrington em</p><p>Boston cuidara de seu transporte para o norte. Butch disse que teria uma limusine Cadillac</p><p>abastecida e pronta para ele. Então ele iria com estilo e sem nenhum cliente pentelho sentado</p><p>no banco de trás, enchendo o ar com o fedor de um charuto enorme e perguntando se Eddie</p><p>sabia onde ele podia arrumar uma gata ou alguns gramas de cocaína, ou as duas coisas.</p><p>Vou com estilo, isso mesmo, pensou ele. O único jeito de ir com mais estilo seria ir de</p><p>rabecão. Mas não se preocupe, Eddie. Deve ser assim que você vai voltar. Se sobrar o</p><p>bastante de você pra se enterrar, claro.</p><p>— Eddie?</p><p>Nove e vinte. Tempo o suficiente para falar com ela, tempo o suficiente para ser gentil. Ah,</p><p>mas seria tão melhor se fosse na noite em que ela saía para jogar cartas, se ele pudesse ter</p><p>saído deixando apenas um bilhete embaixo de um dos ímãs da porta da geladeira (a porta da</p><p>geladeira era onde ele deixava todos os seus bilhetes para Myra, porque ela sempre os via lá).</p><p>Sair assim, como um fugitivo, não teria sido bom, mas isso era ainda pior. Era como ter que</p><p>sair da casa dos pais de novo, e isso fora tão difícil que ele teve que fazer três vezes.</p><p>Às vezes, o lar é onde o coração está, pensou Eddie aleatoriamente. Acredito nisso. O</p><p>velho Bobby Frost disse que o lar é o lugar onde, quando você precisa ir lá, eles têm que te</p><p>receber. Infelizmente, também é o lugar em que, quando você entra, não querem deixar você</p><p>sair.</p><p>Ele ficou no alto da escada, com o movimento temporariamente interrompido, cheio de</p><p>medo, com a respiração chiando pelo buraco de agulha que sua garganta tinha virado, e</p><p>observou a esposa chorosa.</p><p>— Desça comigo e vou contar o que puder — disse ele.</p><p>Eddie colocou as duas malas, uma com roupas, a outra com remédios, ao lado da porta do</p><p>hall da frente. Lembrou-se de uma outra coisa naquele momento… ou melhor, o fantasma da</p><p>mãe, que estava morta havia muitos anos, mas que ainda falava frequentemente na mente dele,</p><p>lembrou por ele.</p><p>Você sabe que quando seus pés ficam molhados, você sempre fica resfriado, Eddie. Você</p><p>não é como as outras pessoas, você tem o corpo muito fraco, tem que tomar cuidado. É por</p><p>isso que precisa sempre usar as galochas quando chove.</p><p>Chovia muito em Derry.</p><p>Eddie abriu o armário do hall da frente, pegou as galochas no gancho onde estavam</p><p>cuidadosamente penduradas dentro de uma sacola plástica e colocou-as na mala de roupas.</p><p>Bom menino, Eddie.</p><p>Ele e Myra estavam assistindo TV quando a merda bateu no ventilador. Eddie foi até a sala</p><p>de TV e apertou o botão que baixava o telão. A tela era tão grande que fazia Freeman McNeil</p><p>parecer um visitante de Brobdingnag nas tarde de domingo. Pegou o telefone e chamou um</p><p>táxi. O atendente disse para ele que deveria demorar 15 minutos. Eddie disse que não havia</p><p>problema.</p><p>Ele desligou e pegou a bombinha de cima do aparelho de CD caro da Sony. Gastei 1.500</p><p>dólares em um aparelho de som de primeira para que Myra não perdesse uma única nota</p><p>dos discos de Barry Manilow e do “Supremes Greatest Hits” , pensou ele, e sentiu uma</p><p>pontada de culpa. Isso não era justo, e ele sabia bem. Myra ficaria tão feliz com os velhos</p><p>discos arranhados quanto com os novos CDs do tamanho de discos de 45 rotações, assim</p><p>como ficaria feliz de continuar morando na casinha de quatro cômodos no Queens até os dois</p><p>ficarem velhos e grisalhos (e, para falar a verdade, já havia um pouco de neve no alto da</p><p>montanha que era a cabeça de Eddie Kaspbrak). Ele tinha comprado o luxuoso aparelho de</p><p>som pelo mesmo motivo que comprara esta casa rústica de pedra em Long Island, onde os dois</p><p>vagavam como as duas últimas ervilhas na lata: porque podia, e porque eram formas de</p><p>aplacar a voz suave, assustada, frequentemente perplexa e sempre implacável da mãe; eram</p><p>formas de dizer: Consegui, mãe! Olha isso tudo! Consegui! Agora será que você pode fazer</p><p>o favor de calar a boca um pouco?</p><p>Eddie enfiou a bombinha na boca e, como um homem imitando suicídio, puxou o gatilho.</p><p>Uma nuvem do terrível gosto de alcaçuz desceu ardendo pela garganta dele, e Eddie respirou</p><p>fundo. Conseguia sentir passagens respiratórias quase fechadas começarem a se abrir de novo.</p><p>O aperto no peito começou a diminuir, e de repente ele ouviu vozes na mente, vozes-fantasma.</p><p>Você não recebeu o bilhete que mandei?</p><p>Recebi, sra. Kaspbrak, mas…</p><p>Bem, caso você não saiba ler, treinador Black, vou</p><p>dizer em pessoa. Está pronto?</p><p>Sra. Kaspbrak…</p><p>Ótimo. Aqui vai, dos meus lábios pros seus ouvidos. Pronto? Meu Eddie não pode fazer</p><p>aula de educação física. Repito: ele NÃO pode fazer aula de educação física. Eddie é muito</p><p>delicado, e se ele correr… ou pular…</p><p>Sra. Kaspbrak, tenho o resultado do último exame físico de Eddie arquivado no meu</p><p>escritório. É exigência estadual. Lá diz que Eddie é um pouco pequeno para a idade, mas</p><p>fora isso, perfeitamente normal. Assim, liguei pro médico da sua família pra ter certeza e</p><p>ele confirmou…</p><p>Está me chamando de mentirosa, treinador Black? É isso? Bem, aqui está ele! Aqui está</p><p>Eddie, de pé bem do meu lado! Você consegue ouvir como ele respira? CONSEGUE?</p><p>Mãe… por favor… estou bem…</p><p>Eddie, você sabe que não deve fazer isso. Eu te ensinei direito. Não interrompa os mais</p><p>velhos.</p><p>Consigo escutar, sra. Kaspbrak, mas…</p><p>Consegue? Que bom! Pensei que talvez você fosse surdo! Ele parece um caminhão</p><p>subindo uma ladeira com marcha baixa, não parece? E se isso não é asma…</p><p>Mãe, vou ficar…</p><p>Fique quieto, Eddie, não me interrompa de novo. Se isso não for asma, treinador Black,</p><p>então eu sou a rainha Elizabeth!</p><p>Sra. Kaspbrak, Eddie costuma parecer bem e feliz nas aulas de educação física. Adora</p><p>participar de jogos e corre bem rápido. Na minha conversa com o dr. Baynes, a palavra</p><p>“psicossomático” surgiu. Eu me pergunto se a senhora considerou a possibilidade de…</p><p>… de que meu filho seja louco? É isso que você está tentando dizer? VOCÊ ESTÁ</p><p>TENTANDO DIZER QUE MEU FILHO É LOUCO????</p><p>Não, mas…</p><p>Ele é delicado.</p><p>Sra. Kaspbrak…</p><p>Meu filho é muito delicado.</p><p>Sra. Kaspbrak, o dr. Baynes confirmou que não conseguiu encontrar nada…</p><p>— … fisicamente errado — concluiu Eddie. A lembrança daquele encontro humilhante,</p><p>com a mãe gritando com o treinador Black no ginásio da escola Derry Elementary enquanto</p><p>ele ofegava e se encolhia ao lado dela e os outros garotos se reuniam em torno de uma das</p><p>cestas para olhar só voltara a ele esta noite em anos. E essa não era a única lembrança que a</p><p>ligação de Mike Hanlon traria de volta, ele sabia. Conseguia sentir muitas outras, tão ruins ou</p><p>até piores, se reunindo e se debatendo como consumidores enlouquecidos em uma liquidação,</p><p>entulhados na porta de uma loja de departamentos. Mas em pouco tempo o aglomerado se</p><p>abriria e elas chegariam. Ele tinha certeza. E o que encontrariam? A sanidade dele? Era</p><p>possível. Pela metade do preço. Liquidação arrasadora. Queima de estoque.</p><p>— Nada fisicamente errado — repetiu ele, respirou fundo de forma trêmula e enfiou a</p><p>bombinha no bolso.</p><p>— Eddie — disse Myra. — Por favor, me conte do que isso se trata!</p><p>Marcas de lágrimas reluziam nas bochechas gordas. As mãos se retorciam sem parar como</p><p>um par de animais rosados e pelados brincando. Uma vez, pouco antes de pedi-la em</p><p>casamento, ele pegou uma foto que Myra dera para ele e colocou ao lado da foto da mãe, que</p><p>morrera de ataque cardíaco aos 64 anos. Na época da morte, a mãe de Eddie passou do peso</p><p>de 180kg; 184kg, para ser exato. Ela tinha se tornado uma coisa quase monstruosa: seu corpo</p><p>não parecia mais do que peitos, bunda e barriga, com o rosto pastoso e perpetuamente</p><p>consternado por cima. Mas a foto que ele colocou ao lado da de Myra tinha sido tirada em</p><p>1944, dois anos antes de ele nascer (Você foi um bebê muito doente , sussurrou agora a mãe-</p><p>fantasma em seu ouvido. Muitas vezes tememos pela sua vida…). Em 1944, a mãe tinha o</p><p>peso relativamente leve de 81kg.</p><p>Ele fizera essa comparação, supunha ele, em um esforço final de se fazer parar de cometer</p><p>incesto psicológico. Olhou da mãe para Myra, de Myra para a mãe.</p><p>Elas podiam ter sido irmãs. A semelhança era tanta assim.</p><p>Eddie olhou para as duas fotos quase idênticas e prometeu a si mesmo que não faria essa</p><p>coisa louca. Ele sabia que os rapazes no trabalho já faziam piadas sobre Jack Sprat e sua</p><p>esposa, mas não sabiam metade da história. As piadas e os comentários debochados ele</p><p>conseguia suportar, mas será que queria mesmo ser um palhaço em um circo freudiano desses?</p><p>Não. Não queria. Ele terminaria com Myra. Seria gentil com ela porque ela era muito doce e</p><p>tinha ainda menos experiência com homens do que ele tinha com mulheres. E então, depois que</p><p>ela finalmente velejasse para longe do horizonte da vida dele, talvez ele pudesse fazer aquelas</p><p>aulas de tênis em que vinha pensando havia tanto tempo</p><p>(Eddie costuma parecer bem e feliz nas aulas de educação física)</p><p>ou havia títulos de sócio da piscina sendo vendidos no U. N. Plaza Hotel,</p><p>(Eddie adora participar de jogos)</p><p>sem mencionar a academia que abriu na Terceira Avenida em frente à garagem…</p><p>(Eddie corre bem rápido ele corre bem rápido quando a senhora não está aqui corre bem</p><p>rápido quando não tem ninguém por perto para lembrá-lo do quanto é delicado e vejo no</p><p>rosto dele sra. Kaspbrak que ele sabe já agora aos 9 anos ele sabe que o maior favor no</p><p>mundo que ele poderia fazer a si mesmo seria correr rápido em qualquer direção em que</p><p>você não esteja deixa ele ir sra. Kaspbrak deixa ele CORRER)</p><p>Mas no final ele casou-se com Myra mesmo assim. No final a mesmice e os velhos hábitos</p><p>foram fortes demais. Lar era o local onde, quando você precisa ir para lá, eles precisam</p><p>acorrentar você. Ah, ele podia ter vencido o fantasma da mãe. Teria sido difícil, mas ele tinha</p><p>certeza de que teria conseguido, se aquilo fosse tudo que necessitava ser feito. Foi a própria</p><p>Myra quem acabou afastando-o da independência. Ela o condenou com solicitude, o prendeu</p><p>com a preocupação, o acorrentou com a doçura. Myra, como a mãe, teve a visão final e fatal</p><p>da personalidade dele: Eddie era ainda mais delicado porque às vezes desconfiava que não</p><p>era nada delicado; Eddie precisava ser protegido de seus próprios ímpetos burros de possível</p><p>valentia.</p><p>Em dias chuvosos, Myra sempre tirava as galochas de dentro do saco plástico no armário e</p><p>colocava junto do cabide de casacos ao lado da porta. Ao lado do prato de torrada sem</p><p>manteiga todas as manhãs havia um prato do que poderia ser visto para um observador casual</p><p>como cereal multicolorido e adoçado para uma criança, mas que um olhar mais atento</p><p>revelaria ser um espectro completo de vitaminas (a maior parte das quais presentes na bolsa</p><p>de remédios de Eddie naquele momento). Myra, como a mãe dele, entendia, e ele não teve</p><p>chance nenhuma. Quando homem jovem e solteiro, ele saíra da casa da mãe três vezes e</p><p>voltara para ela três vezes. Quatro anos depois que a mãe morreu no hall da frente do</p><p>apartamento no Queens, bloqueando a porta tão completamente com o volume do corpo que o</p><p>pessoal do socorro médico (chamados pelos moradores do andar de baixo quando ouviram o</p><p>baque monstruoso da sra. Kaspbrak caindo pela última vez) teve que arrombar a porta</p><p>trancada entre a cozinha do apartamento e a escadaria de serviço, ele voltou por uma quarta e</p><p>última vez. Pelo menos ele acreditara que era pela última vez — de volta pra casa, de volta</p><p>pra casa, lá-lá-lá; de volta pra casa, de volta pra casa, com Myra, a porca. Ela era uma</p><p>porca, mas era uma porca doce, e ele a amava, e realmente ele não tivera chance nenhuma. Ela</p><p>o atraíra com o olhar fatal e hipnotizador da compreensão.</p><p>De volta pra casa pra sempre, pensara ele na época.</p><p>Mas talvez eu estivesse errado, pensou ele. Talvez aqui não seja minha casa, nem nunca</p><p>foi. Talvez meu lar seja o lugar pra onde tenho que ir hoje. O lar é o local onde, quando</p><p>você vai pra lá, tem que finalmente encarar a coisa no escuro.</p><p>Ele tremeu indefeso, como se tivesse saído sem a capa e pegado um vento terrível.</p><p>— Eddie, por favor!</p><p>Ela estava começando a chorar de novo. Lágrimas eram a defesa final dela, assim como</p><p>sempre foram a da mãe: a arma delicada que paralisa, que transforma a gentileza e o carinho</p><p>em rachaduras fatais na armadura de uma pessoa.</p><p>Não que ele alguma vez tivesse usado armadura; elas não pareciam cair bem nele.</p><p>Lágrimas foram mais do que uma defesa para a mãe dele; elas foram uma arma. Myra</p><p>raramente usou suas lágrimas tão cinicamente… mas, cinicamente ou não, ele se deu conta de</p><p>que ela as estava tentando</p><p>usar dessa forma agora… e estava se saindo bem.</p><p>Ele não podia deixar. Seria fácil demais pensar no quanto seria solitário ficar sentado em</p><p>um trem que seguia para o norte na direção de Boston pela escuridão, com a mala no</p><p>compartimento acima e a bolsa cheia de panaceias entre os pés, com o medo pesando no peito</p><p>como um pacote rançoso de pastilhas Vick. Era fácil demais deixar Myra levá-lo para cima e</p><p>fazer amor com ele com aspirina e uma massagem com álcool. E colocá-lo na cama, onde eles</p><p>poderiam ou não fazer um tipo de amor ainda mais franco.</p><p>Mas ele prometera. Prometera.</p><p>— Myra, me escuta — disse ele, deixando a voz propositalmente seca, propositalmente</p><p>direta.</p><p>Ela o observou com olhos molhados, nus, apavorados.</p><p>Ele pensou que tentaria agora explicar da melhor maneira que pudesse; contaria a ela que</p><p>Mike Hanlon ligara e dissera que tinha começado de novo, e sim, ele achava que a maior parte</p><p>dos outros também ia.</p><p>Mas o que saiu de sua boca foi coisa bem mais sensata.</p><p>— Vá até o escritório logo de manhã cedo. Fale com Phil. Diga pra ele que precisei viajar</p><p>e que você vai dirigir pra Al Pacino…</p><p>— Eddie, não consigo! — choramingou ela. — Ele é um grande astro! Se eu me perder, ele</p><p>vai gritar comigo, sei que vai, ele vai gritar, todos gritam quando o motorista se perde… e…</p><p>e vou chorar… pode acontecer um acidente… provavelmente vai acontecer um acidente…</p><p>Eddie… Eddie, você precisa ficar em casa…</p><p>— Pelo amor de Deus! Pare!</p><p>Ela se encolheu ao ouvir a voz dele, magoada; apesar de pegar a bombinha, Eddie não a</p><p>usaria. Ela veria isso como fraqueza, uma que poderia usar contra ele. Bom Deus, se o Senhor</p><p>estiver aí, por favor, acredite em mim quando digo que não quero magoar Myra. Não quero</p><p>cortá-la, não quero nem machucá-la. Mas eu prometi, todos prometemos, fizemos um</p><p>juramento com sangue, por favor, Deus, me ajude, porque preciso fazer isso…</p><p>— Odeio quando você grita comigo, Eddie — sussurrou ela.</p><p>— Myra, odeio quando preciso gritar — disse ele, e ela fez uma careta. Aí está, Eddie,</p><p>você a machucou de novo. Por que não dá uns socos nela? Isso provavelmente seria mais</p><p>delicado. E mais rápido.</p><p>De repente (deve ter sido o pensamento de dar socos em alguém que fez a imagem surgir),</p><p>ele viu o rosto de Henry Bowers. Foi a primeira vez que pensou em Bowers em anos, e não</p><p>ajudou em nada sua paz de espírito. Nem um pouco.</p><p>Ele fechou os olhos brevemente, depois os abriu e disse:</p><p>— Você não vai se perder, e ele não vai gritar com você. O sr. Pacino é muito gentil, muito</p><p>compreensivo. — Ele nunca tinha dirigido para Al Pacino na vida, mas se contentou em saber</p><p>que pelo menos a lei das probabilidades estava do lado dele nessa mentira: de acordo com</p><p>boatos populares, a maior parte das celebridades era sacana, mas Eddie dirigira para um</p><p>número suficiente para saber que costumava não ser verdade.</p><p>É claro que havia exceções à regra, e na maior parte dos casos, as exceções eram</p><p>verdadeiras monstruosidades. Ele torcia fervorosamente pelo bem de Myra para que Pacino</p><p>não fosse um desses.</p><p>— Ele é? — perguntou ela timidamente.</p><p>— É. É, sim.</p><p>— Como você sabe?</p><p>— Demetrios dirigiu pra ele duas ou três vezes quando trabalhava na Manhattan Limousine</p><p>— disse Eddie de maneira loquaz. — Ele disse que o sr. Pacino sempre dava pelo menos 50</p><p>dólares de gorjeta.</p><p>— Eu não me importaria se ele só me desse 50 centavos, desde que não gritasse comigo.</p><p>— Myra, é tão fácil quanto contar até três. Um, você pega ele no Saint Regis amanhã às 19h</p><p>e leva para o prédio da ABC. Estão refilmando a última cena da peça da qual Al Pacino</p><p>participa, acho que se chama American Buffalo. Dois, você leva ele de volta pro Saint Regis</p><p>por volta das 23h. Três, você volta pra garagem, entrega o carro e assina a folha.</p><p>— Só isso?</p><p>— Só isso. Você pode fazer de cabeça pra baixo, Marty.</p><p>Ela costumava rir ao ouvir o apelido, mas agora só olhou para ele com seriedade dolorosa</p><p>e infantil.</p><p>— E se ele quiser sair pra jantar em vez de voltar pro hotel? Ou ir beber? Ou dançar?</p><p>— Acho que não vai querer, mas se acontecer, você leva ele. Se parecer que ele vai ficar</p><p>na farra a noite toda, você pode chamar Phil Thomas pelo rádio depois da meia-noite. A essa</p><p>altura, ele vai ter um motorista livre pra assumir seu lugar. Eu jamais colocaria você em uma</p><p>coisa assim se tivesse um motorista livre, mas dois estão doentes, Demetrios está de férias e</p><p>todos os outros têm trabalho marcado. Você vai estar na cama à uma da manhã, Marty. Uma da</p><p>manhã no máximo. Dou minha garantia abiiiisoluta.</p><p>Ela também não riu do abiiiisoluta.</p><p>Ele limpou a garganta e se inclinou para a frente, com os cotovelos sobre os joelhos.</p><p>Imediatamente, sua mãe-fantasma sussurrou: Não se sente assim, Eddie. Faz mal pra sua</p><p>postura e espreme seus pulmões. Você tem pulmões muito delicados.</p><p>Ele se sentou ereto de novo, sem nem perceber que estava fazendo isso.</p><p>— É melhor que seja a única vez que preciso dirigir — disse ela, quase gemendo. — Virei</p><p>um cavalo nos últimos dois anos, e meus uniformes ficam horríveis agora.</p><p>— É a única vez, eu prometo.</p><p>— Quem te ligou, Eddie?</p><p>Como se combinado, luzes penetraram na sala; uma buzina tocou uma vez e o táxi embicou</p><p>na garagem. Ele sentiu uma onda de alívio. Eles tinham passado 15 minutos falando de Pacino</p><p>em vez de Derry, Mike Hanlon e Henry Bowers, e isso era bom. Bom para Myra e bom para</p><p>ele também. Ele não queria passar nenhum tempo pensando nem falando sobre aquelas coisas</p><p>até que fosse necessário.</p><p>Eddie ficou de pé.</p><p>— É o meu táxi.</p><p>Ela se levantou tão rápido que tropeçou na barra da própria camisola e caiu para a frente.</p><p>Eddie a segurou, mas por um momento a questão ficou em dúvida profunda: ela era mais</p><p>pesada do que ele cerca de 50 quilos.</p><p>E estava começando a perguntar de novo.</p><p>— Eddie, você precisa me contar!</p><p>— Não posso. Não dá tempo.</p><p>— Você nunca escondeu nada de mim antes, Eddie — chorou ela.</p><p>— E não estou escondendo agora. Não de verdade. Não me lembro de tudo. Pelo menos,</p><p>ainda não. O homem que ligou era, é, um velho amigo. Ele…</p><p>— Você vai ficar doente — disse ela desesperadamente, seguindo-o quando ele andou para</p><p>o hall da frente. — Sei que vai. Me deixa ir, Eddie, por favor, vou cuidar de você, Pacino</p><p>pode pegar um táxi, sei lá, não vai matar ele, o que você acha, hein? — A voz dela estava</p><p>aumentando, ficando frenética, e para o horror de Eddie ela começou a parecer mais e mais</p><p>com sua mãe, sua mãe como estava nos últimos meses antes de morrer: velha, gorda e doida.</p><p>— Vou fazer massagem nas suas costas e cuidar pra que você tome seus remédios… eu… vou</p><p>ajudar você… não vou falar se você não quiser, mas você pode me contar tudo… Eddie…</p><p>Eddie, por favor, não vá! Eddie, por favor! Por favooooooor!</p><p>Ele estava descendo o corredor para a porta da frente agora, andando cegamente, com a</p><p>cabeça baixa, movendo-se como um homem se move contra o vento forte. Estava ofegante de</p><p>novo. Quando pegou as malas, cada uma parecia pesar 50 quilos. Conseguia sentir as mãos</p><p>gordas e rosadas dela nele, tocando-o, explorando-o, puxando com desejo impotente, mas sem</p><p>força real, tentando seduzi-lo com as lágrimas doces de preocupação, tentando atraí-lo de</p><p>volta.</p><p>Não vou conseguir!, pensou ele desesperadamente. A asma estava pior agora, pior do que</p><p>em qualquer ocasião desde que ele era criança. Ele esticou a mão para a maçaneta, mas ela</p><p>pareceu se afastar, se recolher na escuridão do espaço sideral.</p><p>— Se você ficar, vou fazer bolo de café com creme azedo — disse ela. — Vamos comer</p><p>pipoca… faço seu prato favorito de peru no jantar… faço de café da manhã amanhã se você</p><p>quiser… começo agora mesmo… e molho de miúdos… Eddie por favor estou com medo você</p><p>está me assustando muito!</p><p>Ela segurou o colarinho dele e o puxou para trás, como um policial corpulento agarrando</p><p>um suspeito que está tentando fugir. Com um esforço final, Eddie continuou a andar… e</p><p>quando estava no fim das forças e capacidade de resistir, sentiu o toque dela se afastar.</p><p>Ela deu um grito final.</p><p>Os dedos dele se fecharam ao redor da maçaneta, e quão abençoadamente fria ela estava!</p><p>Ele abriu</p><p>a porta e viu um táxi Checker parado lá fora, um embaixador da terra da sanidade. A</p><p>noite estava clara. As estrelas estavam luminosas e lúcidas.</p><p>Ele se virou para Myra, ofegante e sibilante.</p><p>— Você precisa entender que não é uma coisa que eu queira fazer — disse ele. — Se eu</p><p>tivesse escolha, qualquer escolha, eu não iria. Por favor, entenda isso, Marty. Eu vou, mas</p><p>volto.</p><p>Ah, mas isso pareceu mentira.</p><p>— Quando? Por quanto tempo?</p><p>— Uma semana. Talvez dez dias. Sem dúvida não mais que isso.</p><p>— Uma semana! — gritou ela, com as mãos contra os seios como uma diva em uma ópera</p><p>ruim. — Uma semana! Dez dias! Por favor, Eddie! Por favoooooor…</p><p>— Marty, para. Tá? Já chega.</p><p>Milagrosamente, ela fez isso: parou e ficou olhando para ele com olhos molhados e feridos,</p><p>não com raiva, só apavorada por ele e, coincidentemente, por si mesma. E talvez pela</p><p>primeira vez em todos os anos que ele a conhecia, ele sentiu que podia amá-la seguramente.</p><p>Será que fazia parte do afastamento? Ele achava que sim. Não… pode jogar o achava na</p><p>privada. Ele sabia que sim. Ele já se sentia como uma coisa morando no lado errado de um</p><p>telescópio.</p><p>Mas talvez não houvesse problema. Era isso o que ele queria dizer? Que tinha finalmente</p><p>decidido que não tinha problema amá-la? Que não tinha problema apesar de ela parecer sua</p><p>mãe quando mais nova e apesar de ela comer brownies na cama enquanto via Hardcastle and</p><p>McCormick e Falcon Crest e as migalhas sempre caírem do lado dele e apesar de ela não ser</p><p>tão inteligente e apesar de ela entender e aceitar seus remédios no armário do banheiro porque</p><p>guardava os dela na geladeira?</p><p>Ou era…</p><p>Podia ser…</p><p>Essas outras ideias eram coisas que ele tinha considerado de uma forma ou de outra, em</p><p>algum momento, durante suas vidas estranhamente entrelaçadas como filho e amante e marido;</p><p>agora, no momento de sair de casa pelo que parecia ser a última vez, uma nova possibilidade</p><p>lhe ocorreu, e um espanto assustado o tocou como a asa de algum pássaro enorme.</p><p>Poderia Myra estar com mais medo do que ele estava?</p><p>Será que a mãe dele também?</p><p>Outra lembrança de Derry voltou voando do subconsciente como fogos de artifício</p><p>estalando. Havia uma loja de sapatos na rua Center. The Shoeboat. Sua mãe o levara lá um</p><p>dia, ele achava que não passava de 5 ou 6 anos de idade, e disse para ele ficar quieto e ser</p><p>bonzinho enquanto ela comprava um par de sapatos brancos de salto para um casamento.</p><p>Assim, ele ficou quieto e foi bonzinho enquanto a mãe conversava com o sr. Gardener, que era</p><p>um dos funcionários da loja, mas ele só tinha 5 anos (ou talvez 6), e depois que a mãe rejeitou</p><p>o terceiro par de sapatos brancos de salto que o sr. Gardener mostrou a ela, Eddie ficou</p><p>entediado e andou até o canto para olhar uma coisa que tinha visto lá. A princípio, ele achou</p><p>que era apenas uma caixa grande de pé. Quando chegou mais perto, concluiu que era algum</p><p>tipo de mesa. Mas era a mesa mais estranha que ele tinha visto. Era tão estreita! Era feita de</p><p>madeira polida com várias linhas curvas incrustadas e desenhos entalhados. Além do mais,</p><p>havia três degraus que levavam até ela, e ele nunca tinha visto uma mesa com degraus.</p><p>Quando chegou bem perto, ele viu que havia uma abertura na parte de baixo da coisa-mesa, um</p><p>botão de cada lado, e em cima, fascinante!, havia uma coisa idêntica ao Espaçoscópio do</p><p>Capitão Vídeo.</p><p>Eddie andou até o outro lado e viu uma placa. Ele devia ter pelo menos 6 anos, porque</p><p>conseguiu ler, sussurrando baixinho cada palavra:</p><p>SEUS SAPATOS CABEM DIREITO?</p><p>VERIFIQUE E VEJA!</p><p>Ele voltou para o outro lado, subiu os três degraus até a pequena plataforma e enfiou o pé</p><p>no buraco na parte de baixo do verificador. Os sapatos dele cabiam direito? Eddie não sabia,</p><p>mas estava doido para verificar e ver. Ele enfiou o rosto no protetor de borracha e apertou o</p><p>botão. Uma luz verde brilhou sobre seus olhos. Eddie sufocou um grito. Conseguia ver um pé</p><p>flutuando dentro de um sapato cheio de fumaça verde. Ele mexeu os dedos, e os dedos para o</p><p>qual ele estava olhando se balançaram também; eram mesmo os dele, como ele desconfiava. E</p><p>então ele percebeu que não eram apenas os dedos que ele conseguia ver; conseguia ver os</p><p>ossos também! Os ossos do pé ! Ele cruzou o dedão com o segundo dedo (como se afastando</p><p>sorrateiramente as consequências de contar uma mentira), e os ossos sobrenaturais no</p><p>instrumento fizeram um xis que não era branco, mas verde como um duende. Ele conseguia</p><p>ver…</p><p>Naquele momento, sua mãe gritou, um som crescente de pânico que partiu a loja silenciosa</p><p>de sapatos como uma ceifa, como um sino de fogo, como o fim do mundo a cavalo. Ele tirou o</p><p>rosto assustado e consternado do visor e a viu correndo de meias pela loja em direção a ele,</p><p>com o vestido voando atrás. Derrubou uma cadeira, e uma daquelas coisas de medir sapato</p><p>que sempre fazia cócegas nos seus pés saiu voando. Os seios dela se balançavam. Sua boca</p><p>era um O escarlate de pavor. Rostos se viraram para acompanhar o progresso dela.</p><p>— Eddie saia daí! — gritou ela. — Saia daí! Essas máquinas vão te fazer ter câncer!</p><p>Saia daí! Eddie! Eddieeeeee…</p><p>Ele recuou como se a máquina de repente estivesse pelando. Em seu pânico assustado, ele</p><p>se esqueceu dos degraus atrás de si. Seus calcanhares caíram do de cima e ele ficou ali de pé,</p><p>caindo lentamente para trás, com os braços girando loucamente em uma batalha perdida para</p><p>recuperar o equilíbrio. E ele não pensou com uma espécie louca de alegria: Vou cair! Vou</p><p>descobrir como é cair e bater a cabeça! Que bom!...? Ele não pensou isso? Ou era apenas o</p><p>homem impondo as ideias adultas acima da mente da criança, sempre rugindo com conjecturas</p><p>confusas e imagens não totalmente percebidas (imagens que perdiam o sentido na claridade),</p><p>pensou… ou tentou pensar?</p><p>Fosse como fosse, era uma pergunta retórica. Ele não caiu. A mãe chegou a tempo. A mãe o</p><p>segurou. Ele caiu no choro, mas não caiu.</p><p>Todo mundo estava olhando para eles. Ele se lembrava disso. Lembrava-se do sr.</p><p>Gardener pegando a coisa de medir sapatos e verificando os aparatos deslizantes para ter</p><p>certeza de que ainda estavam bons enquanto outro vendedor endireitava a cadeira caída e</p><p>batia os braços uma vez, com nojo e diversão, antes de recuperar a expressão agradavelmente</p><p>neutra de vendedor. O que ele mais se lembrava era da bochecha molhada da mãe e do hálito</p><p>quente e azedo. Ele se lembrava dela sussurrando sem parar em seu ouvido: “Nunca mais faça</p><p>isso, nunca mais faça isso, nunca mais.” Era o que a mãe repetia para afastar os problemas.</p><p>Ela cantarolou a mesma coisa um ano antes, quando descobriu que a babá tinha levado Eddie</p><p>para a piscina pública no parque Derry em um dia de verão abafado e quente. Isso foi quando</p><p>o medo da pólio no início dos anos 1950 estava começando a morrer. Ela o arrastou da</p><p>piscina repetindo que ele nunca mais devia fazer aquilo, nunca, nunca, e todas as crianças</p><p>ficaram com a cara que todos os vendedores e fregueses estavam agora, e o hálito dela tinha o</p><p>mesmo toque azedo.</p><p>Ela o arrastou para fora do The Shoeboat, gritando com os vendedores que ela veria todos</p><p>no tribunal se houvesse alguma coisa errada com o menino dela. As lágrimas apavoradas de</p><p>Eddie continuaram a cair pelo resto da manhã, e sua asma atacou com intensidade maior</p><p>durante todo aquele dia. Naquela noite, ele ficou acordado durante horas depois da hora em</p><p>que costumava dormir, se perguntando exatamente o que seria câncer, se era pior do que pólio,</p><p>se matava, quanto tempo demorava caso matasse e o quanto doía antes de você morrer. Ele</p><p>também se perguntava se iria para o inferno depois.</p><p>A ameaça foi séria, isso ele sabia.</p><p>Ela sentiu tanto medo. Era assim que ele sabia.</p><p>Ficou tão apavorada.</p><p>— Marty — disse ele tantos anos depois —, você me daria um beijo?</p><p>Ela o beijou e abraçou com tanta força que os ossos nas costas dele estalaram. Se</p><p>estivéssemos dentro d’água, pensou ele, ela afogaria os dois.</p><p>— Não tenha medo — sussurrou ele no ouvido dela.</p><p>— Não consigo controlar! — gritou ela.</p><p>— Eu sei — disse ele, e percebeu que, apesar de ela o estar abraçando com força de</p><p>quebrar</p><p>costelas, a asma tinha melhorado. O sibilar na respiração sumiu. — Eu sei, Marty.</p><p>O motorista do táxi buzinou de novo.</p><p>— Você vai ligar? — pediu ela com voz trêmula.</p><p>— Se eu puder.</p><p>— Eddie, você não pode por favor me dizer o que é?</p><p>E vamos supor que pudesse? O quanto ajudaria a tranquilizar a mente dela?</p><p>Marty, recebi uma ligação de Mike Hanlon hoje e conversamos um pouco, mas tudo que</p><p>dissemos se resume a duas coisas. “Começou de novo”, disse Mike; “Você vem?”, disse</p><p>Mike. E agora, estou com febre, Marty, só que é uma febre que não baixa com aspirina, e</p><p>estou com uma falta de fôlego que a maldita bombinha não resolve, porque essa falta de</p><p>fôlego não é na garganta nem nos pulmões, é ao redor do meu coração. Vou voltar pra você</p><p>se puder, Marty, mas me sinto um homem de pé na boca de uma velha mina cheia de</p><p>deslizamentos prestes a acontecer, me despedindo da luz do dia.</p><p>Sim, sem dúvida! Isso obviamente tranquilizaria a mente dela.</p><p>— Não — disse ele — Não dá pra contar o que é.</p><p>E antes que ela pudesse falar mais, antes que pudesse recomeçar (Eddie, saia desse táxi!</p><p>Ele vai te fazer ter câncer!), ele estava andando para longe dela, cada vez mais rápido.</p><p>Quando chegou ao táxi, estava quase correndo.</p><p>Ela ainda estava de pé na porta quando o táxi saiu para a rua de ré, ainda de pé quando eles</p><p>saíram para a cidade, uma grande sombra negra de mulher contornada pela luz que saía da</p><p>casa deles. Ele acenou e achou que ela levantou a mão em resposta.</p><p>— Pra onde vamos hoje, amigo? — perguntou o motorista.</p><p>— Penn Station — disse Eddie, e sua mão relaxou sobre a bombinha. A asma tinha ido</p><p>para onde quer que ela fosse para repousar entre os ataques aos brônquios dele. Ele se</p><p>sentia… quase bem.</p><p>Mas precisou da bombinha mais do que nunca quatro horas depois, ao sair de um cochilo</p><p>leve em um único salto espasmódico que fez o sujeito de terno do outro lado baixar o jornal e</p><p>olhar para ele com curiosidade levemente apreensiva.</p><p>Eu voltei, Eddie!, gritou a asma com alegria. Eu voltei e, ah, não sei, desta vez quem sabe</p><p>eu vou te matar! Por que não? Vou ter que fazer isso alguma hora, sabe! Não dá pra ficar</p><p>enrolando pra sempre!</p><p>O peito de Eddie se agitou e repuxou. Ele tateou em busca da bombinha, encontrou e</p><p>apontou para a garganta, depois apertou. Em seguida, se recostou no assento alto da Amtrak,</p><p>tremendo, esperando alívio, pensando no sonho do qual tinha acabado de acordar. Sonho?</p><p>Meu Deus, se isso fosse tudo. Ele tinha medo de ser mais lembrança do que sonho. Nele</p><p>houvera uma luz verde como a luz dentro da máquina de raios-X de uma loja de sapatos e um</p><p>leproso podre que perseguiu um garoto chamado Eddie Kaspbrak aos gritos por túneis</p><p>debaixo da terra. Ele correu e correu</p><p>(ele corre bem rápido disse o treinador Black pra sua mãe e ele correu bem rápido com</p><p>aquela coisa podre atrás dele ah sim pode acreditar pode apostar seu couro)</p><p>nesse sonho em que tinha 11 anos, e então sentiu um cheiro de uma coisa como a morte do</p><p>tempo, e alguém acendeu um fósforo e ele olhou para baixo e viu o rosto em decomposição de</p><p>um garoto chamado Patrick Hockstetter, um garoto que desapareceu em julho de 1958, e havia</p><p>vermes rastejando para dentro e para fora das bochechas de Patrick Hockstetter, e aquele</p><p>cheiro denso e horrível estava vindo de dentro de Patrick Hockstetter e nesse sonho que era</p><p>mais lembrança do que sonho ele olhou para um lado e viu dois livros escolares inchados pela</p><p>umidade e cobertos de mofo verde: Roads to Everywhere e Understanding Our America.</p><p>Estavam em tais condições por causa da umidade fedida aqui embaixo (“Como passei as</p><p>férias de verão”, redação de Patrick Hockstetter: “Passei morto em um túnel! Cresceu mofo</p><p>nos meus livros e eles incharam até ficarem do tamanho de catálogos da Sears!”). Eddie abriu</p><p>a boca para gritar e foi aí que os dedos repulsivos do leproso tocaram sua bochecha e se</p><p>enfiaram em sua boca, e foi aí que ele acordou com aquele salto de estalar as costas e se viu</p><p>não nos esgotos abaixo de Derry, Maine, mas em um vagão de trem Amtrak perto do primeiro</p><p>carro percorrendo Rhode Island sob uma grande lua branca.</p><p>O homem do outro lado do corredor hesitou, quase desistiu de falar e disse:</p><p>— Tudo bem, senhor?</p><p>— Ah, sim — disse Eddie. — Adormeci e tive um sonho ruim. Fez minha asma atacar.</p><p>— Entendo. — O jornal subiu de novo. Eddie viu que era o jornal que sua mãe às vezes</p><p>chamava de Judeu York Times.</p><p>Eddie olhou pela janela para um cenário adormecido, iluminado apenas pela bela lua. Aqui</p><p>e ali havia casas, ou algumas vezes aglomerados delas, a maioria na escuridão, algumas com</p><p>luzes acesas. Mas as luzes pareciam fracas e falsamente debochadas em comparação com o</p><p>brilho fantasmagórico da lua.</p><p>Ele achava que a lua falava com ele, pensou ele de repente. Henry Bowers. Deus, ele era</p><p>tão louco. Ele se perguntou onde Henry Bowers estava agora. Morto? Preso? Vagando por</p><p>planícies vazias em algum lugar no meio do país como um vírus incurável, assaltando Seven-</p><p>Elevens nas horas tranquilas entre uma e quatro da madrugada, ou talvez matando algumas das</p><p>pessoas burras o bastante para hesitar sob a mira da arma à ordem de transferir os dólares em</p><p>suas carteiras para a dele?</p><p>Era possível, era possível.</p><p>Em um manicômio estadual em algum lugar? Olhando para esta lua, que estava quase</p><p>cheia? Falando com ela, ouvindo respostas que só ele conseguia ouvir?</p><p>Eddie considerou isso ainda mais possível. Ele tremeu. Estou finalmente me lembrando da</p><p>minha infância, pensou ele. Estou lembrando como passei as férias de verão naquele ano</p><p>obscuro e morto de 1958. Ele pressentia que agora podia se concentrar em quase qualquer</p><p>cena daquele verão que quisesse, mas não queria. Ah, Deus, se eu apenas pudesse esquecer</p><p>tudo de novo.</p><p>Ele apoiou a testa no vidro sujo da janela, com a bombinha na mão frouxa como se fosse</p><p>um artefato religioso, vendo a noite voar ao redor do trem.</p><p>Indo pro norte, pensou ele, mas isso estava errado.</p><p>Não indo pro norte. Porque não é um trem, é uma máquina do tempo. Não pro norte; pra</p><p>trás. Voltando no tempo.</p><p>Ele pensou ter ouvido a lua murmurar.</p><p>Eddie Kaspbrak apertou a bombinha com força e fechou os olhos contra uma vertigem</p><p>repentina.</p><p>5</p><p>Beverly Rogan toma uma surra</p><p>Tom estava quase dormindo quando o telefone</p><p>tocou. Ele lutou para se levantar um pouco e se</p><p>inclinou; sentiu um dos seios de Beverly espremido</p><p>sobre seu ombro quando ela esticou o braço para</p><p>atender. Ele voltou a se deitar no travesseiro,</p><p>perguntando-se quem estava ligando para o</p><p>número residencial não listado a essa hora da</p><p>noite. Ouviu Beverly dizer alô e voltou a</p><p>adormecer. Ele tinha bebido quase uma dúzia e</p><p>meia de cervejas durante o jogo de beisebol e</p><p>estava exausto.</p><p>Ouviu a voz de Beverly, aguda e curiosa, perfurar seu ouvido como um cortador de gelo, e</p><p>voltou a abrir os olhos:</p><p>— O quêêêê?</p><p>Ele tentou se sentar, mas o fio do telefone afundou em seu pescoço grosso.</p><p>— Tira essa porra de cima de mim, Beverly — disse ele, e ela se levantou rapidamente e</p><p>andou ao redor da cama, segurando o fio do telefone com os dedos.</p><p>Seu cabelo era ruivo escuro e caía pela camisola em ondas naturais quase até a cintura.</p><p>Cabelo de puta. Os olhos dela não seguiram para o rosto dele para ler a tempestade emocional</p><p>ali, e Tom Rogan não gostou disso. Ele se sentou. Sua cabeça estava começando a doer.</p><p>Merda, já devia estar doendo, mas quando você estava dormindo, não percebia.</p><p>Ele foi para o banheiro, urinou pelo que pareceram três horas e decidiu que, como estava</p><p>de pé, devia pegar outra cerveja e tentar afastar a maldição da ameaça de ressaca.</p><p>Ao passar pelo quarto a caminho da escada, um homem de cueca boxer branca que</p><p>balançava como velas de um barco abaixo da barriga considerável, com os braços parecendo</p><p>troncos (ele parecia mais um estivador do que o presidente e gerente geral da Beverly</p><p>Fashions, Inc.), ele olhou por cima do ombro e gritou mal-humorado:</p><p>— Se for aquela sapatão da Lesley, manda ela ir chupar uma modelo qualquer e deixar a</p><p>gente dormir!</p><p>Beverly ergueu o olhar brevemente, balançou a cabeça para indicar</p><p>que não era Lesley e</p><p>olhou de volta para o telefone. Tom sentiu os músculos da nuca se contraírem. Parecia uma</p><p>dispensa. Dispensado pela Milady. Miporralady. Isso estava começando a parecer que ia</p><p>virar uma situação. Talvez Beverly precisasse de uma aula curta de revisão sobre quem estava</p><p>no comando aqui. Era possível. Às vezes, ela precisava. Aprendia muito devagar.</p><p>Ele desceu a escada e andou pelo corredor até a cozinha, puxando a cueca da racha da</p><p>bunda sem prestar muita atenção, e abriu a geladeira. A mão que ele esticou capturou algo</p><p>nada alcoólico, um Tupperware de sobra de macarrão a Romanoff. A cerveja toda tinha</p><p>acabado. Até a lata que ele guardava bem atrás (do mesmo jeito que mantinha uma nota de</p><p>vinte dólares dobrada atrás da carteira de motorista para emergências) tinha sumido. O jogo</p><p>teve 14 ciclos, e tudo para nada. O White Sox perdeu. Bando de bichinhas esse ano.</p><p>Seus olhos se desviaram para as garrafas de bebidas pesadas na prateleira com porta de</p><p>vidro acima da bancada da cozinha, e por um momento ele se viu se servindo de uma dose de</p><p>Jim Beam sobre um único cubo de gelo. Mas acabou voltando para a escada, sabendo que</p><p>estaria pedindo mais confusão do que a cabeça já estava sentindo. Ele olhou para o mostrador</p><p>do antigo relógio de pêndulo no pé da escada e viu que passava da meia-noite. Essa</p><p>informação não melhorou em nada seu humor, que nunca era muito bom mesmo no melhor dos</p><p>momentos.</p><p>Ele subiu a escada com lentidão deliberada, ciente, ciente demais, do quanto seu coração</p><p>estava se esforçando. Ka-bum, ka-pam. Ka-bum, ka-pam. Ka-bum, ka-pam. Ele ficava nervoso</p><p>quando conseguia sentir nos ouvidos e pulsos o coração batendo, tanto quanto no peito. Às</p><p>vezes, quando isso acontecia, ele o imaginava não como um órgão que espreme e afrouxa, mas</p><p>como um painel enorme no lado esquerdo do peito com uma agulha chegando</p><p>ameaçadoramente perto da zona vermelha. Não gostava dessa merda; não precisava dessa</p><p>merda. O que ele precisava era de uma boa noite de sono.</p><p>Mas a vaca burra com quem ele era casado ainda estava ao telefone.</p><p>— Entendo isso, Mike… sim… sim, eu vou… eu sei… mas…</p><p>Uma pausa mais longa.</p><p>— Bill Denbrough? — exclamou ela, e o furador de gelo entrou pelo seu ouvido de novo.</p><p>Ele ficou de pé do lado de fora da porta do quarto até recuperar o fôlego. Agora estava ka-</p><p>pam, ka-pam, ka-pam de novo: o estouro tinha parado. Imaginou brevemente a agulha se</p><p>afastando do vermelho e tirou a imagem da cabeça. Ele era um homem, pelo amor de Deus, e</p><p>um homem muito bom, não uma fornalha com termostato ruim. Estava em ótima forma. Era de</p><p>ferro. E se ela precisasse reaprender isso, ele ficaria feliz em ensinar.</p><p>Ele começou a entrar, mas pensou melhor e ficou onde estava mais um momento, ouvindo-</p><p>a, não ligando para com quem ela estava falando nem o que dizia, só ouvindo os tons altos e</p><p>baixos da voz dela. E o que ele sentiu foi a familiar fúria cega.</p><p>Ele a conhecera em um bar para solteiros no centro de Chicago quatro anos antes. A</p><p>conversa foi fácil porque os dois trabalhavam no prédio da Standard Brands e conheciam</p><p>algumas pessoas em comum. Tom trabalhava na King & Landry Relações Públicas no 42º</p><p>andar. Beverly Marsh, o nome dela na época, era estilista assistente na Delia Fashions, no 12º.</p><p>Delia, que mais tarde seria moderadamente popular no Meio-Oeste, produzia para o público</p><p>jovem; as saias, as blusas, os xales e as calças da Delia eram vendidos para o que Delia</p><p>Castleman chamava de “lojas de jovens” e o que Tom chamava de “loja de maconheiros”.</p><p>Tom Rogan soube duas coisas sobre Beverly Marsh quase imediatamente: ela era desejável e</p><p>era vulnerável. Em menos de um mês, soube uma terceira também: ela era talentosa. Muito</p><p>talentosa. Nos desenhos que fazia de vestidos casuais e blusas, ele via uma máquina de fazer</p><p>dinheiro de potencial quase assustador.</p><p>Mas não nas lojas de maconheiros, pensou ele, mas não disse (pelo menos não na época).</p><p>Chega de iluminação ruim, chega de preços baixos, chega de áreas de exibição de merda no</p><p>fundo da loja entre a parafernália de drogas e as camisetas de banda de rock. Que essa</p><p>merda fique para os menores.</p><p>Ele descobriu uma boa quantidade de coisas sobre ela antes que ela soubesse que ele</p><p>estava realmente interessado, e era assim que Tom queria. Estava procurando alguém como</p><p>Beverly Marsh a vida toda, e partiu para cima com a velocidade de um leão atrás de um</p><p>antílope lento. Não que a vulnerabilidade ficasse evidente na superfície; você olhava e via</p><p>uma bela mulher, magra, mas cheia de curvas. Os quadris não eram grande coisa, talvez, mas</p><p>ela tinha uma bela bunda e os melhores peitos que ele já tinha visto. Tom Rogan era homem de</p><p>peitos, sempre fora, e garotas altas quase sempre tinham peitos decepcionantes. Usavam</p><p>blusas finas e os mamilos te deixavam doido, mas quando você tirava essas blusas finas,</p><p>descobria que mamilos eram tudo que elas tinham. Os peitos em si pareciam puxadores de</p><p>gaveta. “Um monte de desperdício”, seu colega de quarto de faculdade gostava de dizer, mas</p><p>no que dizia respeito a Tom, seu colega de quarto de faculdade era tão ruim de roda que</p><p>cantava pneu em todas as curvas.</p><p>Ah, ela era bem linda mesmo, com aquele corpo explosivo e a bela cascata de cabelos</p><p>ruivos ondulados. Mas era fraca… fraca, de alguma forma. Era como se estivesse enviando</p><p>sinais de rádio que só ele conseguia receber. Era possível apontar para certas coisas: o quanto</p><p>ela fumava (mas ele quase a tinha curado disso); a forma inquieta como seus olhos se moviam,</p><p>nunca observando os de quem estava falando com ela, apenas tocando neles de tempos em</p><p>tempos e se afastando; o hábito de esfregar de leve os cotovelos quando estava nervosa; a</p><p>aparência das unhas, que eram bem-cuidadas, mas estavam sempre brutalmente curtas. Tom</p><p>reparou isso no dia em que a conheceu. Ela pegou a taça de vinho branco, ele viu as unhas e</p><p>pensou: Ela as deixa curtas assim porque rói.</p><p>Leões podem não pensar, pelo menos não como as pessoas pensam… mas eles veem. E</p><p>quando os antílopes correm para longe de um lago, alertados pelo aroma de terra da morte que</p><p>se aproxima, os felinos podem observar qual fica para trás do grupo, talvez por ter uma perna</p><p>ruim, talvez por ser naturalmente mais lento… ou talvez porque seu senso de perigo seja</p><p>menos desenvolvido. E pode até ser possível que alguns antílopes (e algumas mulheres)</p><p>queiram ser abatidos.</p><p>De repente, ele ouviu um som que o arrancou rudemente dessas lembranças: o estalo do</p><p>isqueiro dela.</p><p>A fúria cega voltou. Seu estômago se encheu de um calor que não era completamente</p><p>desagradável. Fumando. Ela estava fumando. Eles tiveram alguns Seminários Especiais de</p><p>Tom Rogan sobre o assunto. E aqui estava ela, fazendo de novo. Era lenta no aprendizado</p><p>mesmo, mas um bom professor atinge seu melhor com alunos lentos.</p><p>— Sim — disse ela agora. — Aham. Tudo bem. Sim… — Ela escutou, depois deu uma</p><p>risada estranha e irregular que ele nunca ouviu antes. — Duas coisas, já que você perguntou:</p><p>reserve um quarto e faça uma oração pra mim. Sim, certo… aham… eu também. Boa noite.</p><p>Ela estava desligando quando ele entrou. Ele queria entrar com tudo, gritando com ela para</p><p>apagar, apagar agora, AGORA!, mas quando a viu, as palavras morreram em sua garganta. Ele</p><p>a tinha visto assim antes, mas só duas ou três vezes. Uma vez antes do primeiro grande desfile</p><p>deles, uma vez antes da primeira prévia particular para compradores nacionais, e uma vez</p><p>quando eles foram para Nova York para o International Design Awards.</p><p>Ela estava cruzando o quarto em passadas largas, com a camisola branca de renda moldada</p><p>ao corpo, o cigarro preso entre os dentes da frente (Deus, ele odiava a aparência dela com</p><p>uma guimba na boca) emitindo uma fileira branca por cima do ombro esquerdo como fumaça</p><p>saindo da chaminé de uma locomotiva.</p><p>Mas foi o rosto dela que o fez pausar, que fez a gritaria planejada morrer em sua garganta.</p><p>Seu coração deu um salto (ka-BAMP) e ele se encolheu, dizendo para si mesmo que o que</p><p>sentia não era medo, mas apenas surpresa por encontrá-la assim.</p><p>Ela era uma mulher</p><p>dá pra bater a porta com mais força da próxima vez? Quem sabe você</p><p>consegue quebrar alguns dos pratos na cômoda se realmente tentar?</p><p>— Desculpa, mãe — gritou ele em resposta.</p><p>— George, seu bosta — disse Bill no quarto. O tom de voz foi baixo para a mãe deles não</p><p>ouvir.</p><p>George sufocou um risinho. O medo já tinha ido embora; fugiu dele tão facilmente quanto</p><p>um pesadelo desaparece para o homem que acorda com pele fria e ofegante; que sente o corpo</p><p>e olha para os arredores para ter certeza de que nada aconteceu, e então começa a esquecer.</p><p>Metade já sumiu quando os pés tocam o chão; três quartos quando ele sai do chuveiro e</p><p>começa a se secar; tudo quando ele termina o café da manhã. Tudo some… até a próxima vez,</p><p>quando, durante o pesadelo, todos os medos serão lembrados.</p><p>Aquela tartaruga, pensou George, indo até a gaveta da bancada em que ficavam os</p><p>fósforos. Onde vi uma tartaruga assim antes?</p><p>Mas nenhuma resposta surgiu, e ele descartou a pergunta.</p><p>Ele pegou uma caixa de fósforos na gaveta, uma faca do cepo (segurando a parte afiada</p><p>cuidadosamente longe do corpo, como o pai o ensinara) e uma pequena tigela da cômoda da</p><p>sala de jantar. Em seguida, voltou para o quarto de Bill.</p><p>— Q-Que cuzão você é, Gi-Georgie — disse Bill de maneira afável, e afastou algumas das</p><p>coisas de garoto doente na mesa de cabeceira: um copo vazio, uma jarra de água, Kleenex,</p><p>livros, um vidro de Vick-VapoRub, cujo cheiro Bill associaria durante toda a vida com peitos</p><p>encatarrados e narizes escorrendo. O velho rádio Philco estava lá também, tocando não</p><p>Chopin nem Bach, mas uma música de Little Richard… Só que bem baixinho, tão baixinho que</p><p>parecia que tinham roubado todo o poder primordial de Little Richard. A mãe deles, que</p><p>estudara piano clássico em Juilliard, odiava rock-and-roll. Ela não apenas desgostava;</p><p>abominava.</p><p>— Não sou cuzão — disse George, sentado na beirada da cama de Bill e colocando as</p><p>coisas que reuniu na mesa de cabeceira.</p><p>— É, sim — disse Bill. — Não passa de um grande cuzão marrom, você.</p><p>George tentou imaginar um garoto que não passasse de um grande cuzão com pernas e</p><p>começou a rir.</p><p>— Seu cu é maior do que Augusta — disse Bill, também começando a rir.</p><p>— Seu cu é maior do que o estado todo — respondeu George. Isso fez os garotos rirem por</p><p>quase dois minutos.</p><p>O que seguiu foi uma conversa sussurrada do tipo que significa muito pouco para qualquer</p><p>pessoa além de garotos pequenos: acusações de quem era o cuzão maior, quem tinha o cuzão</p><p>maior, que cuzão era o mais marrom, e assim por diante. Por fim, Bill disse uma das palavras</p><p>proibidas (acusou George de ser um cuzão grande e marrom de merda) e os dois começaram a</p><p>rir com descontrole. A gargalhada de Bill virou um ataque de tosse. Quando finalmente</p><p>começou a passar (a essas alturas o rosto de Bill tinha ficado de um tom arroxeado que</p><p>George observou com alarme), o piano parou de novo. Os dois olharam na direção da sala de</p><p>estar, prestando atenção ao som de arrastar do banco do piano, aos passos impacientes da</p><p>mãe. Bill escondeu a boca na dobra do cotovelo para sufocar as últimas tosses e apontou para</p><p>a jarra ao mesmo tempo. George serviu um copo de água, que ele bebeu todo.</p><p>O piano recomeçou a tocar “Für Elise”. Bill Gago nunca esqueceu essa melodia, e mesmo</p><p>muitos anos depois, ela sempre lhe deixava com a pele dos braços e das costas arrepiada; seu</p><p>coração ficava apertado e ele lembrava: Minha mãe estava tocando isso no dia que Georgie</p><p>morreu.</p><p>— Vai tossir mais, Bill?</p><p>— Não.</p><p>Bill pegou um Kleenex na caixa, fez um som retumbante no peito, cuspiu catarro no lenço,</p><p>amassou-o e jogou na lixeira ao lado da cama, que estava cheia de lenços amassados do</p><p>mesmo jeito. Em seguida, abriu a caixa de parafina e colocou um cubo da substância na palma</p><p>da mão. George o observou com atenção, mas sem falar nem perguntar. Bill não gostava que</p><p>George falasse enquanto ele fazia coisas, mas George aprendera que, se ficasse de boca</p><p>fechada, Bill costumava explicar o que estava fazendo.</p><p>Bill usou a faca para cortar um pequeno pedaço do cubo de parafina. Botou o pedaço na</p><p>tigela, acendeu um fósforo e colocou em cima da parafina. Os dois garotos observaram a</p><p>pequena chama amarela enquanto o vento jogava chuva na janela de tempos em tempos.</p><p>— Temos que proteger o barco da água, senão vai ficar molhado e afundar — disse Bill.</p><p>Quando ele estava com George, a gagueira ficava leve, e às vezes ele nem gaguejava. Mas</p><p>na escola, ficava tão forte que falar era impossível. A comunicação era encerrada e os colegas</p><p>de Bill olhavam para outro lugar enquanto Bill segurava as laterais da mesa, com o rosto</p><p>ficando quase tão vermelho quanto o cabelo e os olhos apertados por tentar fazer uma palavra</p><p>sair da garganta teimosa. Às vezes, na maioria delas, a palavra saía. Outras vezes, ela</p><p>simplesmente se recusava. Ele foi atropelado por um carro quando tinha 3 anos e jogado na</p><p>lateral de um prédio; ficou inconsciente durante 7 horas. A mãe disse que foi o acidente que</p><p>causou a gagueira. George às vezes tinha a sensação de que o pai (e o próprio Bill) não tinha</p><p>tanta certeza.</p><p>O pedaço de parafina na tigela estava quase completamente derretido. A chama do fósforo</p><p>diminuiu e ficou azul ao envolver o palito de papelão, e depois sumiu. Bill enfiou o dedo no</p><p>líquido e puxou de volta com um ligeiro assobio. Deu um sorriso de desculpas para George.</p><p>— Quente — disse ele.</p><p>Depois de alguns segundos, ele mergulhou o dedo de novo e começou a espalhar a cera nas</p><p>laterais do barco, onde ela rapidamente secou e formou uma cobertura leitosa.</p><p>— Posso fazer um pouco? — perguntou George.</p><p>— Pode. Mas não deixa cair no cobertor senão mamãe vai te matar.</p><p>George mergulhou o dedo na parafina, que agora estava morna, mas não quente, e começou</p><p>a espalhar do outro lado do barco.</p><p>— Não coloca tanto, seu cuzão! — disse Bill. — Quer afundar ele no cruzeiro de</p><p>inauguração?</p><p>— Desculpa.</p><p>— Tudo bem. Vai d-devagar.</p><p>George terminou o outro lado e ergueu o barco nas mãos. Estava um pouco mais pesado,</p><p>mas não muito.</p><p>— Muito legal — disse ele. — Vou sair e botar ele pra velejar.</p><p>— É, faz isso — disse Bill. Ele parecia repentinamente cansado; cansado e ainda não</p><p>muito bem.</p><p>— Queria que você pudesse vir — disse George. Ele queria mesmo. Bill às vezes ficava</p><p>mandão depois de um tempo, mas sempre tinha as ideias mais legais e quase nunca batia. — É</p><p>seu barco, na verdade.</p><p>— Veleiro — disse Bill. — Isso aí é um v-veleiro.</p><p>— Veleiro, então.</p><p>— Eu também queria poder ir — disse Bill, mal-humorado.</p><p>— Bem… — George se mexeu inquieto com o barco nas mãos.</p><p>— Coloca suas coisas de chuva — disse Bill —, senão vai acabar com gr-gripe como eu.</p><p>Deve pegar de qualquer jeito, dos meus gi-germes.</p><p>— Obrigado, Bill. É um barco legal. — E fez uma coisa que não fazia havia muito tempo,</p><p>um gesto que Bill nunca esqueceu: se inclinou e beijou a bochecha do irmão.</p><p>— Agora você vai pegar com certeza, seu cuzão — disse Bill, mas pareceu mais alegre</p><p>mesmo assim. Ele sorriu para George. — Coloca tudo no lugar. Senão mamãe vai ter um tru-</p><p>troço.</p><p>— Claro.</p><p>Ele pegou o material e atravessou o quarto, com o barco precariamente equilibrado sobre a</p><p>caixa de parafina, que estava inclinada em cima da tigela.</p><p>— Gi-Gi-Georgie?</p><p>George se virou para olhar para o irmão.</p><p>— Toma c-cuidado.</p><p>— Claro. — Ele franziu um pouco a testa. Era o tipo de coisa que a mãe dizia, não o irmão</p><p>mais velho. Era tão estranho quanto se Bill tivesse lhe dado um beijo. — Claro que tomo.</p><p>Ele saiu. Bill nunca mais o viu.</p><p>3</p><p>Agora aqui estava ele, correndo atrás do barco pelo</p><p>lado esquerdo da rua Witcham. Estava correndo</p><p>rápido, mas a água estava ainda mais rápida, e o</p><p>barco estava se afastando. Ele ouviu um rugido</p><p>profundo e viu que 50 metros abaixo na colina a</p><p>água na vala estava caindo em um bueiro ainda</p><p>aberto. Era um semicírculo longo e escuro</p><p>acompanhando o meio-fio, e enquanto George</p><p>olhava, um galho seco, com o tronco tão escuro e</p><p>brilhoso quanto pele de foca, caiu na bocarra do</p><p>bueiro. Ficou na beirada por um momento e</p><p>escorregou para dentro. Era para lá que seguia</p><p>que ganhava vida quando o ritmo do trabalho se aproximava do clímax.</p><p>Cada uma das ocasiões lembradas foi relacionada ao trabalho. Nessas épocas, ele viu uma</p><p>mulher diferente da que conhecia tão bem, uma mulher que detonava seu radar sensitivo de</p><p>medo com trechos enormes de estática. A mulher que surgia em momentos de estresse era forte</p><p>mas tensa, destemida mas imprevisível.</p><p>Havia muita cor nas bochechas dela agora, um rubor natural no alto das maçãs do rosto. Os</p><p>olhos estavam arregalados e cintilando, sem nem um traço de sono. O cabelo caía em cascata.</p><p>E… ah, vejam isso, amigos e vizinhos! Vejam bem isso! Ela está tirando uma mala do</p><p>armário? Uma mala? Por Deus, está!</p><p>Reserve um quarto… faça uma oração pra mim.</p><p>Bem, ela não precisaria de quarto em hotel nenhum, não no futuro próximo, porque a</p><p>pequena Beverly Rogan ficaria bem aqui em casa, muito obrigado, e faria as refeições de pé</p><p>nos próximos três ou quatro dias.</p><p>Mas ela podia mesmo precisar de uma oração ou duas antes de ele terminar com ela.</p><p>Ela jogou a mala no pé da cama e foi até a cômoda. Abriu a gaveta de cima e pegou duas</p><p>calças jeans e uma de veludo. Jogou na mala. Voltou para a cômoda, com o cigarro emitindo</p><p>fumaça por cima do ombro. Pegou um suéter, duas camisetas, uma das velhas blusas Ship ’n</p><p>Shore que a deixavam com aparência idiota, mas das quais ela não abria mão. Quem tinha</p><p>ligado para ela não era rico. Era coisa simples, estritamente Jackie-Kennedy em Hyannisport</p><p>no fim de semana.</p><p>Não que ele se importasse com quem ligou para ela e onde ela pensava que ia, já que não</p><p>ia para lugar nenhum. Essas eram coisas que estalavam regularmente em sua mente, cega e</p><p>dolorosa por causa de muita cerveja e pouco sono.</p><p>Era o cigarro.</p><p>Supostamente, ela tinha jogado todos fora. Mas mentiu para ele, e a prova estava presa</p><p>entre os dentes dela agora. E como ela ainda não tinha reparado nele de pé na porta, ele se</p><p>permitiu o prazer de lembrar-se das duas noites que o asseguraram de seu controle completo</p><p>sobre ela.</p><p>Não quero mais que você fume perto de mim, disse ele para ela quando eles seguiam para</p><p>casa depois de uma festa em Lake Forest. Isso foi em outubro. Tenho que engolir essa merda</p><p>em festas e no escritório, mas não preciso engolir quando estou com você. Sabe como é?</p><p>Vou te falar a verdade; é desagradável, mas é verdade. É como ter que comer a meleca de</p><p>outra pessoa.</p><p>Ele achou que isso despertaria uma leve onda de protesto, mas ela só olhou para ele com a</p><p>expressão tímida de quem quer agradar. A voz estava baixa, dócil e obediente. Tudo bem,</p><p>Tom.</p><p>Joga fora, então.</p><p>Ela jogou. Tom ficou de bom humor o resto daquela noite.</p><p>Algumas semanas depois, ao sair do cinema, ela acendeu um cigarro no saguão sem pensar</p><p>e tragou enquanto eles andavam pelo estacionamento, em direção ao carro. Era uma noite fria</p><p>de novembro, e o vento atacava loucamente qualquer centímetro quadrado de pele exposta que</p><p>encontrasse. Tom lembrou que conseguira sentir o cheiro do lago, do jeito que às vezes dava</p><p>nas noites frias: um cheiro frio que era ao mesmo tempo de peixe e vazio. Ele a deixou fumar</p><p>o cigarro. Até abriu a porta para ela quando chegaram ao carro. Ele entrou atrás do volante,</p><p>fechou a porta e disse: Bev?</p><p>Ela tirou o cigarro da boca, se virou para ele com expressão de pergunta e ele deu uma</p><p>porrada nela, com a mão aberta e dura atingindo a bochecha com força suficiente para fazer a</p><p>palma da mão formigar, com força suficiente para empurrar a cabeça dela para trás, sobre o</p><p>apoio de cabeça. Seus olhos se arregalaram de surpresa e dor… e uma outra coisa também.</p><p>Ela levou a mão à bochecha para investigar o calor e o formigamento dormente. Ela gritou:</p><p>Aiii! Tom!</p><p>Ele a observou com olhos apertados, um sorriso casual na boca, completamente vivo,</p><p>pronto para ver o que viria depois, como ela reagiria. Seu pau estava ficando duro dentro da</p><p>calça, mas ele mal reparou. Isso era para depois. Agora, a aula tinha começado. Ele reviu o</p><p>que tinha acabado de acontecer. O rosto dela. O que tinha sido aquela terceira expressão que</p><p>surgiu por um breve instante e sumiu? Primeiro, a surpresa. Depois, a dor. Depois a</p><p>(nostalgia)</p><p>aparência de uma lembrança… de alguma lembrança. Foi apenas por um momento. Ele</p><p>achava que ela nem sabia que tinha surgido, no rosto ou na mente.</p><p>Agora: agora. Tudo estaria na primeira coisa que ela não disse. Ele sabia disso tão bem</p><p>quanto sabia o próprio nome.</p><p>Não foi Seu filho da puta!</p><p>Não foi Até mais, machão.</p><p>Não foi Acabou, Tom.</p><p>Ela só olhou para ele com olhos castanhos feridos e molhados e disse: Por que você fez</p><p>isso? Em seguida, tentou dizer outra coisa e caiu no choro.</p><p>Joga fora.</p><p>O quê? O que, Tom? A maquiagem dela estava escorrendo pelo rosto em linhas pretas. Ele</p><p>não ligava para isso. Até gostava de vê-la assim. Era uma bagunça, mas havia alguma coisa de</p><p>sexy também. De piranha. Era meio excitante.</p><p>O cigarro. Joga fora.</p><p>A percepção surgiu. E com ela, a culpa.</p><p>Eu esqueci!, gritou ela. Só isso!</p><p>Joga fora, Bev, ou você vai levar outra porrada.</p><p>Ela abriu a janela e jogou o cigarro fora. Em seguida, se virou para ele, com o rosto pálido</p><p>e assustado e de certa forma sereno.</p><p>Você não pode… você não deve me bater. É uma base ruim para um… um…</p><p>relacionamento duradouro. Ela estava tentando encontrar um tom, um ritmo adulto de fala,</p><p>mas falhou. Ele a tinha regredido. Estava no carro com uma criança. Voluptuosa e sexy para</p><p>cacete, mas uma criança.</p><p>Não posso e não vou são duas coisas diferentes, garota , disse ele. Manteve a voz calma,</p><p>mas por dentro estava fervendo. E sou eu quem vai decidir o que constitui um</p><p>relacionamento duradouro e o que não. Se você consegue viver com isso, tudo bem. Se não</p><p>consegue, pode ir embora. Não vou te impedir. Posso dar um chute na sua bunda como</p><p>presente de despedida, mas não vou te impedir. Moramos em um país livre. O que mais</p><p>posso dizer?</p><p>Talvez já tenha dito o bastante , sussurrou ela, e ele bateu nela de novo, com mais força do</p><p>que na primeira vez, porque nenhuma mulher ia falar com petulância com Tom Rogan, nunca.</p><p>Ele daria uma porrada na rainha da Inglaterra se ela bancasse a espertinha com ele.</p><p>A bochecha dela bateu no painel acolchoado. A mão tateou em busca da maçaneta, mas</p><p>parou. Ela só se encolheu no canto como um coelho, com uma das mãos sobre a boca, os olhos</p><p>grandes, molhados e assustados. Tom olhou para ela por um momento, depois saiu e andou até</p><p>o outro lado do carro. Abriu a porta. Sua respiração era fumaça no ar negro e tomado pelo</p><p>vento de novembro, e o cheiro do lago estava bastante claro.</p><p>Quer sair, Bev? Vi você esticando a mão para a maçaneta, então acho que você deve</p><p>querer sair. Tudo bem. Não tem problema. Eu te pedi pra fazer uma coisa e você disse que</p><p>faria. Mas não fez. Então você quer sair? Vamos. Saia. Que porra, né? Saia. Quer sair?</p><p>Não, sussurrou ela.</p><p>O quê? Não consigo te ouvir.</p><p>Não, não quero sair, disse ela um pouco mais alto.</p><p>O quê? Esses cigarros estão te causando um enfisema? Se você não consegue falar, vou</p><p>arrumar uma porra de megafone. É sua última chance, Beverly. Fale alto pra que eu possa</p><p>ouvir: você quer sair desse carro ou quer voltar comigo?</p><p>Quero voltar com você, disse ela, e uniu as mãos sobre a saia como uma garotinha. Não</p><p>olhou para ele. Lágrimas desciam pelas bochechas dela.</p><p>Tudo bem, disse ele. Ótimo. Mas primeiro diga isso por mim, Bev. Diga: “Esqueci sobre</p><p>fumar na sua frente, Tom.”</p><p>Agora ela olhou para ele com expressão magoada, implorando, sem conseguir falar. Você</p><p>pode me obrigar a fazer isso, diziam os olhos dela, mas, por favor, não faça. Não faça, eu te</p><p>amo, não dá pra encerrar?</p><p>Não, não dava. Porque isso não era o que ela realmente queria, e os dois sabiam.</p><p>Diga.</p><p>Esqueci sobre fumar na sua frente, Tom.</p><p>Ótimo. Agora diga: “Me desculpe.”</p><p>Me desculpe, repetiu ela.</p><p>O cigarro ficou fumegando na calçada como um pedaço cortado de estopim. As pessoas</p><p>saindo do cinema olharam para eles, para o homem de pé ao lado da porta do passageiro do</p><p>Vega do modelo mais recente de painel de madeira, para a mulher sentada dentro, com as</p><p>mãos unidas</p><p>no colo, a cabeça baixa, a luz interior contornando os cabelos dela de dourado.</p><p>Ele esmagou o cigarro. Esfregou no asfalto.</p><p>Agora diga: “Nunca mais vou fazer isso sem sua permissão.”</p><p>Nunca…</p><p>A voz dela começou a falhar.</p><p>… nunca… n-n-n…</p><p>Diga, Bev.</p><p>… nunca mais vou fazer isso. Sem sua p-permissão.</p><p>Assim, ele bateu a porta e voltou para o banco do motorista. Sentou atrás do volante e</p><p>dirigiu até o apartamento no centro. Nenhum dos dois disse nada. Metade do relacionamento</p><p>foi estabelecido no estacionamento; a outra metade, quarenta minutos depois, na cama de Tom.</p><p>Ela não queria fazer amor, disse ela. Mas ele viu uma verdade diferente nos olhos dela e no</p><p>jeito balançado de ela andar, e quando tirou a blusa dela, os mamilos estavam duros como</p><p>pedra. Ela gemeu quando ele os acariciou e gritou de leve quando chupou um e depois o outro,</p><p>massageando-os sem parar no processo. Ela segurou a mão dele e enfiou entre as pernas.</p><p>Pensei que você não quisesse, disse ele, e ela afastou o rosto… mas não soltou a mão dele,</p><p>e o movimento dos quadris dela aumentou.</p><p>Ele a empurrou para a cama… e agora foi delicado, não arrancou a calcinha dela, mas a</p><p>retirou com consideração cuidadosa quase meticulosa.</p><p>Deslizar para dentro dela foi como deslizar em óleo delicado.</p><p>Ele se moveu com ela, usando-a, mas permitindo que ela também o usasse, e ela gozou pela</p><p>primeira vez quase imediatamente, gritando e enfiando as unhas nas costas dele. Eles se</p><p>balançaram em movimentos longos e lentos, e em algum momento ele achava que ela tinha</p><p>gozado de novo. Tom chegava perto, mas pensava nas médias de rebatimentos do White Sox</p><p>ou em quem o estava tentando prejudicar na conta de Chesley no trabalho, e voltava ao</p><p>controle. Ela começou a acelerar, e o ritmo finalmente atingiu um balançar excitado. Ele olhou</p><p>para o rosto dela, para os círculos de rímel que pareciam os olhos de um guaxinim, para o</p><p>batom manchado, e se sentiu de repente disparando de forma delirante para o limite.</p><p>Ela ergueu os quadris com mais e mais força; não havia barriga de cerveja naquela época,</p><p>e as barrigas dos dois bateram uma na outra em ritmo rápido.</p><p>Perto do fim, ela gritou e mordeu o ombro dele com os dentes pequenos e regulares.</p><p>Quantas vezes você gozou?, perguntou ele depois do banho.</p><p>Ela afastou o rosto, e quando falou, sua voz estava tão baixa que ele quase não conseguiu</p><p>ouvir.</p><p>Não é uma coisa que se pergunta.</p><p>Não? Quem disse isso? Mister Rogers?</p><p>Ele tomou o rosto dela nas mãos, com o polegar afundando em uma das bochechas, os</p><p>dedos apertando a outra e a palma aninhando o queixo no meio.</p><p>Você fala com Tom, disse ele. Está me ouvindo, Bev? Fale com o papai.</p><p>Três, disse ela com relutância.</p><p>Bom, disse ele. Pode fumar um cigarro.</p><p>Ela olhou para ele sem acreditar, com o cabelo ruivo espalhado sobre os travesseiros,</p><p>usando apenas uma calcinha de cintura baixa. Apenas olhar para ela assim já fazia o motor</p><p>dele ligar de novo. Ele assentiu.</p><p>Vá em frente, disse ele. Tudo bem.</p><p>Eles tinham se casado em uma cerimônia civil três meses antes. Dois amigos dele</p><p>compareceram; a única amiga dela a comparecer foi Kay McCall, que Tom chamava de</p><p>“aquela puta feminista peituda”.</p><p>Todas as lembranças passaram pela mente de Tom em questão de segundos, como um</p><p>trecho de filme acelerado, enquanto ele ficava na porta observando-a. Ela foi até a gaveta de</p><p>baixo do que às vezes chamava de “cômoda de fim de semana” e agora estava jogando</p><p>lingerie na mala; não o tipo de coisa que ele gostava, as de cetim escorregadio e seda macia.</p><p>Ela estava pegando as de algodão, de garotinha, a maior parte desbotada e com pedaços de</p><p>elástico arrebentado na cintura. Uma camisola de algodão que parecia coisa saída de Os</p><p>pioneiros. Ela remexeu a parte de trás dessa gaveta de baixo para ver o que mais podia estar</p><p>escondido lá.</p><p>Enquanto isso, Tom Rogan se deslocou pelo tapete peludo em direção ao armário. Seus pés</p><p>estavam descalços e sua passagem foi tão silenciosa quanto um sopro de brisa. Foi o cigarro.</p><p>Foi isso o que realmente o irritou. Fazia muito tempo que ela não esquecia aquela primeira</p><p>lição. Houve outras lições a serem aprendidas desde então, muitas, e houve dias quentes em</p><p>que ela usava blusas de manga comprida e até casacos abotoados até o pescoço. Dias</p><p>cinzentos em que ela usou óculos de sol. Mas aquela primeira lição foi tão repentina e</p><p>fundamental…</p><p>Ele tinha se esquecido do telefonema que o despertou do sono profundo. Foi o cigarro. Se</p><p>ela estava fumando agora, então tinha se esquecido de Tom Rogan. Temporariamente, é claro,</p><p>apenas temporariamente, mas mesmo temporariamente era tempo demais. O que poderia ter</p><p>provocado o esquecimento não importava. Coisas assim não podiam acontecer nesta casa,</p><p>fosse qual fosse o motivo.</p><p>Havia uma tira larga de couro preto pendurada em um gancho por dentro da porta do</p><p>armário. Não havia fivela nela; ele a tinha retirado tempos atrás. Ficava dobrada na ponta em</p><p>que ficaria a fivela, e essa parte dobrada formava um buraco por onde Tom Rogan agora</p><p>enfiou a mão.</p><p>Tom, você foi mau!, sua mãe às vezes dizia. Bem, “às vezes” talvez não fosse uma palavra</p><p>tão boa; talvez “com frequência” fosse mais apropriado. Vem aqui, Tommy! Tenho que te dar</p><p>uma surra. Sua vida quando criança foi pontuada por surras. Ele acabou por fugir para a</p><p>Faculdade do Estado de Wichita, mas aparentemente não existia fuga total, porque ele</p><p>continuou a ouvir a voz nos sonhos: Vem aqui, Tommy! Tenho que te dar uma surra. Surra…</p><p>Ele era o mais velho de quatro filhos. Três meses depois que o caçula nasceu, Ralph Rogan</p><p>morreu. Bem, “morreu” talvez não fosse uma palavra tão boa; talvez “cometeu suicídio” fosse</p><p>uma maneira melhor de dizer, já que ele serviu uma quantidade generosa de soda cáustica em</p><p>uma caneca de gim e bebeu essa mistura demoníaca sentado no vaso do banheiro. A sra.</p><p>Rogan encontrou trabalho na fábrica da Ford. Tom, apesar de só ter 11 anos, se tornou o</p><p>homem da família. E se ele fizesse besteira, se o bebê cagasse na fralda depois que a babá</p><p>fosse para casa e ainda estivesse suja quando mamãe chegasse em casa… se ele se esquecesse</p><p>de encontrar Megan na esquina da rua Broad depois que o horário da creche acabasse e aquela</p><p>xereta da sra. Gant visse… se ele estivesse assistindo a American Bandstand enquanto Joey</p><p>fazia bagunça na cozinha… se alguma dessas coisas ou mil outras acontecessem… então,</p><p>depois que as crianças menores estavam na cama, a vara da surra surgiria e ela repetiria o</p><p>refrão: Vem aqui, Tommy. Tenho que te dar uma surra.</p><p>Era melhor dar a surra do que levar.</p><p>Se ele não aprendeu mais nada na grande roda da vida, aprendeu ao menos isso.</p><p>Assim, ele girou a ponta solta do cinto uma vez e apertou o aro. Em seguida, fechou a mão</p><p>sobre o cinto. A sensação era boa. Fazia com que ele se sentisse adulto. A tira de couro ficou</p><p>pendurada no punho fechado como uma cobra preta morta. Sua dor de cabeça tinha sumido.</p><p>Ela encontrou a última coisa no fundo da gaveta: um sutiã branco velho de algodão com</p><p>bojo pontudo. A ideia de que essa ligação da madrugada pudesse ter sido feita por um amante</p><p>surgiu brevemente na mente dele e desapareceu. Era ridículo. Uma mulher indo encontrar um</p><p>amante não escolhia as blusas Ship ’n Shore velhas e calcinhas de algodão compradas no K-</p><p>Mart com elástico estourado e frouxo. Além do mais, ela não ousaria.</p><p>— Beverly — disse ele baixinho, e ela se virou imediatamente, assustada, com olhos</p><p>arregalados e os longos cabelos balançando.</p><p>O cinto hesitou… baixou um pouco. Ele olhou para ela, sentindo aquele florescer de</p><p>desconforto de novo. Sim, ela ficava com essa cara antes dos grandes desfiles, e ele não a</p><p>atrapalhou nessas ocasiões por entender que ela estava tão repleta de uma mistura de medo e</p><p>agressividade competitiva que era como se sua cabeça estivesse cheia de gás: uma única</p><p>fagulha e ela explodiria. Ela via os desfiles não como uma chance para sair da Delia Fashions,</p><p>para se sustentar ou até ganhar uma fortuna por conta própria. Se isso fosse tudo, ela estaria</p><p>bem. Mas se isso fosse tudo, ela também não seria tão maravilhosamente</p><p>talentosa. Ela via</p><p>esses desfiles como uma espécie de superavaliação na qual receberia a nota de professores</p><p>rigorosos. O que ela via nessas ocasiões era uma criatura sem rosto. Não tinha rosto, mas</p><p>tinha nome: Autoridade.</p><p>Toda aquela coragem de olhos arregalados estava no rosto dela agora. Mas não só lá;</p><p>estava em torno dela toda, uma aura que parecia quase visível, uma energia de alta-tensão que</p><p>a deixou de repente mais atraente e mais perigosa do que parecera durante anos. Ele estava</p><p>com medo porque ela estava aqui, toda aqui, a ela essencial tão diferente da que Tom Rogan</p><p>queria que ela fosse, a ela que ele fez.</p><p>Beverly parecia chocada e assustada. Também parecia loucamente animada. Suas</p><p>bochechas cintilavam com cor febril, mas havia placas brancas abaixo das pálpebras que</p><p>pareciam quase um segundo par de olhos. Sua testa brilhava com ressonância cremosa.</p><p>E o cigarro ainda estava pendurado em sua boca, agora em um ângulo ligeiramente para</p><p>cima, como se pensasse que era o maldito Franklin Delano Roosevelt. O cigarro! Apenas</p><p>olhar para ele já fazia a fúria cega tomar conta dele de novo em uma onda verde. Levemente,</p><p>no fundo da mente, ele se lembrou dela dizendo uma coisa para ele uma noite do nada, falando</p><p>com voz fria e indiferente: Um dia você vai me matar, Tom. Você sabe disso? Um dia você</p><p>vai longe demais e esse vai ser o fim. Você vai surtar.</p><p>Ele respondeu: Faça as coisas do meu jeito, Bev, e esse dia nunca vai chegar.</p><p>Agora, antes de a fúria bloquear tudo, ele se perguntou se esse dia não tinha finalmente</p><p>chegado.</p><p>O cigarro. A ligação, a mala e a expressão estranha no rosto dela não importavam. Eles</p><p>resolveriam a questão do cigarro. Depois, ele a comeria. E depois, conversariam sobre o</p><p>resto. Nessa hora, talvez até fosse parecer importante.</p><p>— Tom — disse ela. — Tom, eu preciso…</p><p>— Você está fumando — disse ele. Sua voz parecia vir de longe, como se por um rádio de</p><p>boa qualidade. — Parece que você esqueceu, gata. Onde estava escondendo?</p><p>— Olha, vou apagar — disse ela, e foi para a porta do banheiro. Jogou o cigarro (mesmo</p><p>de onde estava, ele conseguia ver as marcas de dentes no filtro) no vaso sanitário. Fsssss. Ela</p><p>voltou. — Tom, era um velho amigo. Um velho velho amigo. Preciso…</p><p>— Cala a boca, é isso que você precisa fazer! — gritou ele para ela. — Só cala a boca!</p><p>Mas o medo que ele queria ver, o medo dele, não estava no rosto dela. Havia medo, mas</p><p>vinha do telefone, e o medo não devia chegar a Beverly dessa direção. Era quase como se ela</p><p>não visse o cinto, não o visse, e Tom sentiu uma pontada de desconforto. Será que ele estava</p><p>aqui? Era uma pergunta estúpida, mas será que estava?</p><p>Essa pergunta era tão terrível e tão básica que por um momento ele se sentiu em perigo de</p><p>se soltar completamente da raiz de si mesmo e sair flutuando como uma planta no vento. Mas</p><p>então ele se controlou. Estava aqui sim, e isso era “psicofalação” demais para uma noite. Ele</p><p>estava aqui, era Tom Rogan, Tom Rogan de Deus , e se essa piranha não se aprumasse nos</p><p>próximos 30 segundos mais ou menos, ia parecer que foi empurrada de um vagão em</p><p>velocidade por um fiscal de trem.</p><p>— Tenho que te dar uma surra — disse ele. — Me desculpa por isso, gata.</p><p>Ele tinha visto aquela mistura de medo e agressividade antes, tinha sim. Agora, pela</p><p>primeira vez, pareceu piscar para ele.</p><p>— Abaixa essa coisa — disse ela. — Tenho que chegar ao aeroporto O’Hare o mais</p><p>rápido que conseguir.</p><p>Você está aqui, Tom? Está?</p><p>Ele afastou o pensamento. A tira de couro que já fora um cinto se balançou lentamente na</p><p>frente dele como um pêndulo. Seus olhos tremeram e ele se concentrou no rosto dela.</p><p>— Me escuta, Tom. Aconteceu um problema na minha cidade natal. Coisa muito ruim. Eu</p><p>tinha um amigo naquela época. Acho que ele teria sido meu namorado, só que não tínhamos</p><p>idade suficiente pra isso. Ele era um garoto de 11 anos com uma gagueira bem ruim na época.</p><p>Agora, é escritor. Você até já leu um dos livros dele, eu acho… A correnteza negra?</p><p>Ela observou o rosto dele, mas o rosto dele não estava dando nenhuma pista. Só havia o</p><p>cinto pêndulo indo de um lado para o outro, de um lado para o outro. Ele estava com a cabeça</p><p>baixa e as pernas grossas ligeiramente afastadas. Ela passou a mão de forma inquieta pelo</p><p>cabelo, distraída, como se tivesse muitas coisas importantes em que pensar e não tivesse visto</p><p>o cinto, e aquela pergunta terrível e assombrosa ressurgiu na mente dele: Você está aqui? Tem</p><p>certeza?</p><p>— Aquele livro ficou rolando aqui por semanas e nunca fiz a ligação. Talvez devesse, mas</p><p>estamos todos mais velhos e não penso em Derry há muito, muito tempo. De qualquer modo,</p><p>Bill tinha um irmão, George, e George morreu antes de eu conhecer Bill. Foi assassinado, e</p><p>então, no verão seguinte…</p><p>Mas Tom tinha escutado loucuras o bastante vindas de dentro e de fora. Ele partiu para</p><p>cima dela rápido, dobrando o braço direito por cima do ombro como um homem prestes a</p><p>lançar um dardo. O cinto sibilou pelo caminho que percorreu no ar. Beverly viu e tentou se</p><p>abaixar, mas o ombro direito bateu na moldura da porta do banheiro e houve um estalo</p><p>carnudo quando o cinto bateu no antebraço dela, deixando uma marca vermelha.</p><p>— Vou te dar uma surra — repetiu Tom. Sua voz estava sã, até mesmo pesarosa, mas seus</p><p>dentes mostravam um sorriso branco e congelado. Ele queria ver aquela expressão nos olhos</p><p>dela, aquela expressão de medo e pavor e vergonha, aquela expressão que dizia Sim, você</p><p>está certo, eu mereci, aquela expressão que dizia Sim, você está aqui sim, sinto sua</p><p>presença. E então, o amor voltaria, e isso era certo e bom, porque ele a amava sim. Eles até</p><p>podiam ter uma discussão se ela quisesse, sobre quem exatamente ligou e de que isso se</p><p>tratava. Mas isso viria depois. Agora, a aula tinha começado. O velho um-dois. Primeiro a</p><p>surra, depois a foda.</p><p>— Desculpa, gata.</p><p>— Tom, não faz is…</p><p>Ele bateu com o cinto de lado e viu-o lamber o quadril dela. Houve um estalo satisfatório</p><p>quando terminou na bunda. E…</p><p>E Jesus, ela estava segurando! Ela estava segurando o cinto!</p><p>Por um momento, Tom Rogan ficou tão atônito com esse ato inesperado de insubordinação</p><p>que quase perdeu a arma, teria perdido se não fosse o círculo, que estava preso na mão</p><p>fechada com segurança.</p><p>Ele puxou para trás.</p><p>— Nunca tente tirar uma coisa de mim — disse ele com voz rouca. — Está ouvindo? Se</p><p>fizer isso de novo, vai passar um mês mijando suco de framboesa.</p><p>— Tom, para — disse ela, e o mero tom de voz o enfureceu. Ela parecia uma monitora de</p><p>parquinho falando com um garoto de 6 anos dando ataque de birra. — Eu tenho que ir. Não é</p><p>brincadeira. Pessoas estão mortas, e fiz uma promessa há muito tempo…</p><p>Tom ouviu bem pouco disso. Ele gritou e correu para cima dela com a cabeça baixa e o</p><p>cinto balançando cegamente. Ele bateu nela com o cinto, afastando-a da porta pela parede do</p><p>quarto. Dobrou o braço, bateu nela, dobrou o braço, bateu nela, dobrou o braço, bateu nela.</p><p>De manhã, ele só conseguiria levantar o braço acima do nível dos olhos depois de tomar três</p><p>comprimidos de codeína, mas agora não estava ciente de nada além do fato de que ela o</p><p>estava desafiando. Não só estava fumando, tinha tentado tirar o cinto dele e, ah, pessoal, ah,</p><p>amigos e vizinhos, ela pediu, e ele testemunharia na frente do trono de Deus Todo-Poderoso</p><p>que ela teria o que queria.</p><p>Ele a empurrou pela parede, balançando o cinto, chovendo golpes nela. As mãos dela</p><p>estavam levantadas para proteger o rosto, mas ele tinha o caminho livre para o resto do corpo</p><p>dela. O cinto fazia estalos densos de chicote no quarto silencioso. Mas ela não gritou, como às</p><p>vezes fazia, e não implorou para que ele parasse, como costumava fazer. Pior de tudo, ela não</p><p>chorou, como sempre fazia. Os únicos sons eram o cinto e a respiração deles, a dele pesada e</p><p>rouca, a dela rápida e leve.</p><p>Ela correu para a cama e a penteadeira ao lado. Seus ombros estavam vermelhos dos</p><p>golpes de cinto. O cabelo pegava fogo. Ele foi atrás, mais lento, mas grande, muito grande; ele</p><p>jogara squash até romper o tendão de aquiles dois anos antes, e desde</p><p>então seu peso tinha</p><p>saído um pouco de controle (ou talvez “muito” fosse uma melhor maneira de dizer), mas os</p><p>músculos ainda estavam lá, cordames firmes dentro da gordura. Ainda assim, ele ficou um</p><p>pouco alarmado pelo quanto estava sem fôlego.</p><p>Ela chegou à penteadeira e ele achou que ela se agacharia ali, ou talvez tentasse rastejar</p><p>para baixo. Em vez disso, ela tateou… se virou… e de repente o ar estava cheio de mísseis</p><p>voadores. Ela estava jogando cosméticos nele. Um vidro de Chantilly bateu bem entre os</p><p>mamilos dele, caiu aos seus pés e se estilhaçou. Ele foi repentinamente envolvido pelo aroma</p><p>sufocante de flores.</p><p>— Para! — rugiu ele. — Para, sua puta!</p><p>Em vez de parar, as mãos dela voaram pelo tampo de vidro lotado de objetos da</p><p>penteadeira, agarrando o que encontrava e jogando. Ele apalpou o peito onde o vidro de</p><p>Chantilly o atingiu, incapaz de acreditar que ela o acertou com alguma coisa enquanto mais</p><p>objetos voavam ao seu redor. A tampa de vidro o cortou. Não era bem um corte, era mais um</p><p>arranhão triangular, mas havia uma certa moça ruiva que ia ver o sol nascer em uma cama de</p><p>hospital? Ah, sim, havia. Uma certa moça que…</p><p>Um pote de creme bateu nele acima da sobrancelha direita com força repentina. Ele ouviu</p><p>um baque surdo aparentemente dentro da cabeça. Luz branca explodiu no campo de visão</p><p>daquele olho e ele deu um passo para trás, com o queixo caído. Agora um tubo de creme</p><p>Nívea bateu na barriga dele com um pequeno som de tapa e ela estava… Estava? Seria</p><p>possível? Sim! Ela estava gritando com ele!</p><p>— Vou pro aeroporto, seu filho da puta! Está me ouvindo? Tenho um compromisso e</p><p>estou indo! Quer sair do meu caminho, porque EU VOU!</p><p>Caiu sangue quente no olho direito dele, que o fez arder. Ele limpou com o dedo.</p><p>Ficou ali por um momento, olhando para ela como se nunca a tivesse visto antes. De certa</p><p>forma, nunca tinha. Os seios dela subiam e desciam rapidamente. O rosto, uma mistura de</p><p>rubor e palidez lívida, ardia. Os lábios estavam repuxados sobre os dentes em um rosnado.</p><p>Mas ela tinha esvaziado o tampo da penteadeira. O estoque de mísseis estava vazio. Ele ainda</p><p>conseguia ver o medo nos olhos dela… mas ainda não era medo dele.</p><p>— Guarda essas roupas de volta — disse ele, lutando para não ofegar enquanto falava. Não</p><p>soaria bem. Pareceria fraqueza. — Depois, guarda a mala e vai pra cama. E se fizer essas</p><p>coisas, pode ser que eu não bata demais em você. Pode ser que você consiga sair dessa casa</p><p>em dois dias em vez de duas semanas.</p><p>— Tom, me escuta. — Ela falou devagar. Seu olhar estava muito claro. — Se você se</p><p>aproximar de mim de novo, vou te matar. Está entendendo isso, pudim de banha? Vou te matar.</p><p>E de repente (talvez fosse pelo puro ódio no rosto dela, o desprezo, talvez por ela o ter</p><p>chamado de pudim de banha, ou talvez só por causa da maneira rebelde como os seios dela</p><p>subiam e desciam), o medo começou a sufocá-lo. Não era um botão nem uma flor, mas uma</p><p>porra de jardim inteiro, o medo, o medo horrível de ele não estar aqui.</p><p>Tom Rogan partiu para cima da esposa, sem gritar desta vez. Ele foi tão silenciosamente</p><p>quanto um torpedo cortando a água. Sua intenção agora provavelmente não era apenas bater e</p><p>subjugar, mas fazer com ela o que ela tão precipitadamente disse que faria com ele.</p><p>Ele achou que ela correria. Talvez para o banheiro. Talvez para a escada. Em vez disso,</p><p>ela manteve a posição. O quadril bateu na parede quando ela jogou o peso na penteadeira,</p><p>levantando-a na direção dele, quebrando duas unhas no sabugo quando o suor nas palmas das</p><p>mãos fez as mãos escorregarem.</p><p>Por um momento, a mesa balançou inclinada, e então ela se projetou para a frente de novo.</p><p>A penteadeira dançou sobre uma perna, o espelho refletiu a luz como uma breve sombra de</p><p>aquário no teto e caiu para a frente. A ponta da frente bateu nas coxas de Tom e o derrubou.</p><p>Houve um tilintar musical quando os vidros viraram e quebraram lá dentro. Ele viu o espelho</p><p>bater no chão à sua esquerda e levantou um braço para proteger os olhos, perdendo o cinto no</p><p>processo. Cacos voaram pelo chão, prateados na parte de trás. Ele sentiu alguns arranhando,</p><p>tirando sangue.</p><p>Agora ela estava chorando, com a respiração em soluços altos e agudos. Vez após outra ela</p><p>se viu deixando-o, deixando a tirania de Tom como deixou a do pai, fugindo à noite, com as</p><p>malas empilhadas no porta-malas do Cutlass. Ela não era uma mulher burra, não burra o</p><p>bastante até mesmo agora, de pé em meio a essa incrível confusão, para acreditar que não</p><p>amara Tom e que de certa forma ainda o amava. Mas isso não eliminava seu medo dele… o</p><p>ódio por ele… e o desprezo por si mesma por escolhê-lo por motivos indistintos enterrados</p><p>em tempos que deviam ter terminado. Seu coração não estava partido; parecia mais ardendo</p><p>no peito, derretendo. Ela tinha medo de que o calor do coração logo fosse começar a destruir</p><p>a sanidade dela com fogo.</p><p>Mas, acima disso tudo, gritando regularmente no fundo da mente dela, ela conseguia ouvir a</p><p>voz seca e firme de Mike Hanlon: Voltou, Beverly… voltou… e você prometeu…</p><p>A penteadeira subiu e desceu. Uma vez. Duas. Uma terceira vez. Parecia estar respirando.</p><p>Movendo-se com agilidade cuidadosa, com a boca caída nos cantos e tremendo como se no</p><p>prelúdio de alguma espécie de convulsão, ela desviou da penteadeira, passou na ponta dos pés</p><p>pelo vidro quebrado e pegou o cinto na hora em que Tom ergueu a penteadeira e empurrou</p><p>para o lado. Ela recuou e enfiou a mão pelo buraco. Tirou o cabelo dos olhos e olhou para ver</p><p>o que ele faria.</p><p>Tom se levantou. Alguns cacos do espelho tinham cortado uma das bochechas dele. Um</p><p>corte diagonal cruzava uma das sobrancelhas em uma linha fina. Ele apertou os olhos para ela</p><p>quando se levantou lentamente, e ela viu gotas de sangue na cueca boxer.</p><p>— Me dá esse cinto — disse ele.</p><p>Em vez de fazer isso, ela enrolou duas vezes ao redor da mão e olhou para ele com</p><p>expressão desafiadora.</p><p>— Para, Bev. Agora.</p><p>— Se você vier pra cima de mim, vou arrancar seu couro. — As palavras saíam de sua</p><p>boca, mas ela não conseguia acreditar que as estava dizendo. E quem era esse homem das</p><p>cavernas de cueca sangrenta mesmo? Seu marido? Seu pai? O amante que ela arrumou na</p><p>faculdade que quebrou seu nariz uma noite, aparentemente do nada? Oh, Deus, me ajude,</p><p>pensou ela. Que Deus me ajude agora. Mas sua boca prosseguiu. — E sou capaz de fazer</p><p>isso. Você é gordo e lento, Tom. Vou embora, e acho que talvez não volte. Acho que talvez</p><p>tenha acabado.</p><p>— Quem é esse cara Denbrough?</p><p>— Esquece. Eu era…</p><p>Ela se deu conta quase tarde demais de que a pergunta dele foi uma distração. Ele estava</p><p>partindo para cima dela antes de a última palavra ter saído da boca. Ela lançou o cinto pelo ar</p><p>em um arco, e o som que ele fez quando bateu na boca dele foi o som de uma rolha teimosa</p><p>saindo de uma garrafa.</p><p>Ele deu um grito e levou as mãos à boca, com olhos enormes, magoados e chocados.</p><p>Sangue começou a cair entre os dedos dele e pela parte de trás das mãos.</p><p>— Você quebrou minha boca, sua puta! — gritou ele com voz abafada. — Ah, Deus, você</p><p>quebrou minha boca!</p><p>Ele partiu para cima dela de novo, com as mãos esticadas, a boca uma mancha vermelha e</p><p>molhada. Os lábios pareciam estourados em dois lugares. A coroa tinha sido arrancada de um</p><p>dos dentes da frente. Enquanto ela observava, ele cuspiu para o lado. Parte dela estava</p><p>recuando dessa cena, enjoada e gemendo, querendo fechar os olhos. Mas aquela outra Beverly</p><p>sentia a exultação de um convicto do corredor da morte libertado em um terremoto inesperado.</p><p>Aquela Beverly gostava disso tudo, e muito. Eu queria que você tivesse engolido!, foi o que</p><p>ela pensou. Queria que tivesse morrido engasgado com a coroa!</p><p>Foi essa Beverly que girou o cinto pela última vez, o cinto que ele usara nas nádegas, nas</p><p>pernas e nos seios dela. O cinto que usara nela vezes sem conta nos últimos quatro anos. A</p><p>quantidade de golpes que você recebia dependia do tamanho da merda que tinha feito. Tom</p><p>chega em casa e o jantar está frio? Duas cintadas. Bev está trabalhando até mais tarde no</p><p>estúdio e se esquece</p><p>de ligar para casa? Três cintadas. Ah, olha essa: Beverly recebeu outra</p><p>multa de estacionamento. Uma cintada… nos seios. Ele era bom. Raramente deixava</p><p>hematomas. Nem doía tanto assim. Exceto pela humilhação. Isso doía. E o que doía ainda mais</p><p>era saber que parte dela desejava a dor. Desejava a humilhação.</p><p>A última vez paga por todas, pensou ela, e bateu.</p><p>Ela bateu com o cinto baixo, de lado, e atingiu as bolas dele com um som brusco, porém</p><p>pesado, o som de uma mulher batendo em um tapete para limpá-lo. Foi tudo que precisava.</p><p>Toda disposição de briga desapareceu de Tom Rogan.</p><p>Ele deu um berro agudo e sem força e caiu de joelhos como se para rezar. As mãos estavam</p><p>entre as pernas. A cabeça estava lançada para trás. Músculos saltavam em seu pescoço. Sua</p><p>boca era uma careta de tragédia de dor. O joelho esquerdo caiu direto em cima de um caco</p><p>pontudo de vidro de perfume e ele rolou silenciosamente para o lado como uma baleia. Uma</p><p>das mãos saiu das bolas para apertar o joelho que sangrava.</p><p>O sangue, pensou ela. Meu bom Deus, ele está sangrando por todos os lados.</p><p>Ele vai sobreviver, respondeu friamente essa nova Beverly, a Beverly que pareceu surgir</p><p>com o telefonema de Mike Hanlon. Caras como ele sempre sobrevivem. Apenas saia daqui</p><p>antes que ele decida que quer dançar mais um pouco. Ou antes que ele decida ir pro porão</p><p>buscar o Winchester.</p><p>Ela recuou e sentiu dor no pé ao pisar em um caco do espelho da penteadeira quebrada. Ela</p><p>se inclinou para pegar a alça da mala. Não tirou os olhos dele em momento nenhum. Recuou</p><p>pela porta e pelo corredor. Estava segurando a mala à frente do corpo com as duas mãos, e ela</p><p>bateu em suas canelas conforme ela recuava. O pé cortado fazia marcas de calcanhar</p><p>sangrento. Quando ela chegou à escada, se virou e desceu rapidamente, sem se permitir</p><p>pensar. Desconfiava que não tinha mais pensamentos coerentes, pelo menos por enquanto.</p><p>Sentiu um toque de leve na perna e gritou.</p><p>Olhou para baixo e viu que era a ponta do cinto. Ainda estava enrolado em sua mão. Na luz</p><p>fraca, parecia mais uma cobra morta do que nunca. Ela o jogou por cima do corrimão, com</p><p>uma careta de nojo no rosto, e viu-o cair em S no tapete do corredor de baixo.</p><p>No pé da escada, ela segurou a barra da camisola branca de renda e puxou pela cabeça.</p><p>Estava manchada de sangue, e ela não a usaria por nem mais um segundo. Jogou-a de lado, e</p><p>ela caiu na planta ao lado da porta que levava à sala como um paraquedas de renda. Ela se</p><p>inclinou nua para a mala. Seus mamilos estavam gelados, duro como balas.</p><p>— BEVERLY, VENHA JÁ AQUI PRA CIMA!</p><p>Ela sufocou um grito, deu um pulo e voltou a se inclinar para dentro da mala. Se ele tinha</p><p>força o suficiente para gritar alto assim, ela tinha bem menos tempo do que pensava. Abriu a</p><p>mala e pegou uma calcinha, uma blusa e uma calça Levi’s velha. Vestiu as peças de roupa de</p><p>pé ao lado da porta, sem tirar os olhos da escada. Mas Tom não apareceu no alto. Ele gritou o</p><p>nome dela mais duas vezes, e cada vez ela se encolheu para longe do som, com os olhos</p><p>assustados, os lábios repuxados sobre os dentes em um esgar inconsciente.</p><p>Ela enfiou os botões da blusa pelos buracos o mais rápido que conseguiu. Os dois botões</p><p>de cima tinham caído (era irônico o quanto ela nunca costurava as próprias roupas), e ela</p><p>achava que parecia um pouco uma prostituta de meio período procurando uma última</p><p>rapidinha antes de encerrar o turno, mas teria que ser essa mesma.</p><p>— VOU TE MATAR, SUA PUTA! SUA PUTA DE MERDA!</p><p>Ela fechou e trancou a mala. O braço de uma blusa ficou para fora como uma língua. Ela</p><p>olhou ao redor uma vez, rapidamente, desconfiando que jamais voltaria a ver esta casa.</p><p>Encontrou apenas alívio na ideia, e, assim, abriu a porta e saiu.</p><p>Estava a três quadras de casa, andando sem noção nenhuma de para onde estava indo,</p><p>quando percebeu que os pés ainda estavam descalços. O que ela tinha cortado, o esquerdo,</p><p>latejava cegamente. Tinha que colocar alguma coisa nos pés, e eram quase duas horas da</p><p>madrugada. A carteira e os cartões de crédito estavam em casa. Ela tateou os bolsos da calça</p><p>jeans e só encontrou fiapos. Não tinha um tostão; nem uma moedinha de um centavo. Olhou ao</p><p>redor, para o bairro residencial em que estava: casas bonitas, gramados e jardins bem-</p><p>cuidados, janelas escuras.</p><p>De repente, ela começou a gargalhar.</p><p>Beverly Rogan se sentou em um muro baixo de pedra, com a mala entre os pés sujos, e</p><p>gargalhou. As estrelas brilhavam, e como estavam intensas! Ela inclinou a cabeça para trás e</p><p>riu para elas, com aquela euforia selvagem tomando conta dela de novo como um maremoto</p><p>que erguia, carregava e limpava, uma força tão poderosa que qualquer pensamento consciente</p><p>se perdeu; só seu sangue pensava e sua voz poderosa falava com ela em uma forma</p><p>inarticulada de desejo, embora o que desejava ela não soubesse nem se importasse em saber.</p><p>Era suficiente sentir aquele calor preenchendo-a com sua insistência. Desejo, pensou ela, e</p><p>dentro dela aquele maremoto de euforia pareceu ganhar velocidade, empurrando-a para a</p><p>frente, na direção de algum acidente inevitável.</p><p>Ela riu para as estrelas, assustada, mas livre, com o terror intenso como uma dor e doce</p><p>como uma maçã madura de outubro, e quando uma luz se acendeu em um quarto do andar de</p><p>cima da casa onde ficava esse muro de pedra, ela pegou a alça da mala e saiu para a noite,</p><p>ainda rindo.</p><p>6</p><p>Bill Denbrough tira folga</p><p>— Ir embora? — repetiu Audra. Ela olhou para ele,</p><p>intrigada, um pouco assustada, e colocou os pés</p><p>descalços debaixo do corpo. O chão estava frio. O</p><p>chalé todo estava frio, na verdade. O sul da</p><p>Inglaterra estava vivenciando uma primavera</p><p>excepcionalmente úmida, e mais de uma vez em</p><p>suas caminhadas regulares matinais e noturnas, Bill</p><p>Denbrough se viu pensando no Maine… pensando</p><p>de uma forma surpresa e vaga em Derry.</p><p>O chalé devia ter aquecimento central (o anúncio dizia que tinha, e havia uma fornalha lá</p><p>embaixo, no porão arrumado, em um canto que já fora um depósito de carvão), mas ele e</p><p>Audra descobriram logo no começo que a ideia britânica de aquecimento central não era a</p><p>mesma da americana. Parecia que os britânicos acreditavam que você tinha aquecimento</p><p>central desde que não precisasse mijar em uma pedra de gelo dentro da privada quando</p><p>acordava de manhã. Era manhã agora, 8h15. Bill desligou o telefone cinco minutos antes.</p><p>— Bill, você não pode ir embora. Você sabe disso.</p><p>— Preciso ir — disse ele. Havia um bar no canto da sala. Ele foi até lá, pegou uma garrafa</p><p>de Glenfiddich na prateleira do alto e se serviu. Caiu um pouco pelo lado do copo. — Porra</p><p>— murmurou ele.</p><p>— Quem era no telefone? De que você está com medo, Bill?</p><p>— Não estou com medo.</p><p>— Ah? Suas mãos sempre tremem assim? Você sempre toma seu primeiro drinque antes do</p><p>café?</p><p>Ele voltou para a cadeira, com o roupão balançando ao redor dos tornozelos, e se sentou.</p><p>Tentou sorrir, mas foi um esforço ruim e ele desistiu.</p><p>Na televisão, o apresentador da BBC estava concluindo a série de notícias ruins antes de</p><p>passar para os resultados do futebol na noite anterior. Quando eles chegaram ao pequeno</p><p>vilarejo suburbano de Fleet um mês antes da data marcada para a filmagem começar, os dois</p><p>ficaram maravilhados com a qualidade técnica da televisão britânica; em um bom aparelho</p><p>colorido Pye, parecia mesmo que dava para entrar na imagem. Mais linhas, eu acho, dissera</p><p>Bill. Não sei o que é, mas é ótimo, respondera Audra. Isso foi antes de eles descobrirem que</p><p>a maior parte da programação consistia em programas americanos como Dallas e infindáveis</p><p>eventos esportivos britânicos, desde os estranhos e chatos (campeonatos de lançamento de</p><p>dardos em que todos os participantes pareciam lutadores de sumô hipertensos) aos</p><p>simplesmente chatos (o futebol britânico era ruim; críquete era ainda pior).</p><p>— Ando pensando muito na minha cidade — disse Bill, e tomou um gole da bebida.</p><p>— Cidade? — disse ela, e pareceu tão sinceramente perplexa que ele riu.</p><p>— Pobre Audra! Casada há quase 11 anos com o sujeito e não sabe nada sobre ele. O que</p><p>você sabe sobre isso? — Ele riu de novo</p><p>e engoliu o resto da bebida. A gargalhada estava</p><p>com um tom do qual ela gostou tanto quanto vê-lo com um copo de uísque na mão a essa hora</p><p>da manhã. A gargalhada parecia como uma coisa que queria ser um grito de dor. — Eu me</p><p>pergunto se algum dos outros tem maridos e esposas que estão descobrindo agora o quanto</p><p>sabem pouco. Acho que sim.</p><p>— Billy, eu sei que te amo — disse ela. — Por 11 anos, isso tem sido o bastante.</p><p>— Eu sei. — Ele sorriu para ela. O sorriso foi doce, cansado e assustado.</p><p>— Por favor. Por favor, me conte do que isso se trata.</p><p>Ela olhou para ele com os adoráveis olhos cinza, sentada na cadeira barata da casa alugada</p><p>com os pés encolhidos debaixo da barra da camisola, uma mulher que ele amou, com quem se</p><p>casou e que ainda amava. Tentou ver pelos olhos dela, ver o que ela sabia. Tentou ver como</p><p>uma história. Ele conseguia, mas sabia que jamais venderia.</p><p>Eis um garoto pobre do estado do Maine que vai pra faculdade com bolsa de estudos.</p><p>Durante toda a vida ele quis ser escritor, mas quando se matricula nos cursos de escrita, se vê</p><p>perdido sem bússola em uma terra estranha e apavorante. Tem um cara que quer ser Updike.</p><p>Tem outro que quer ser a versão de Faulkner da Nova Inglaterra, só que quer escrever</p><p>romances sobre as vidas cruéis dos pobres em versos livres. Tem uma garota que admira</p><p>Joyce Carol Oates, mas acha que como Oates foi criada em uma sociedade machista, ela é</p><p>“radioativa no sentido literário”. Oates não consegue ser limpa, diz essa garota. Ela vai ser</p><p>mais limpa. Tem um aluno baixo e gordo que não consegue ou não quer falar além de um</p><p>murmúrio. Esse cara escreveu uma peça em que há nove personagens. Cada um só diz uma</p><p>palavra. Pouco a pouco, os espectadores percebem que quando você une as palavras, chega a</p><p>isso: “A guerra é ferramenta de mercadores machistas da morte.” A peça desse sujeito recebe</p><p>um A do homem que ensina Eh-141 (Seminário em Homenagem à Escrita Criativa). Esse</p><p>professor publicou quatro livros de poesia e a tese de mestrado, tudo pela editora da</p><p>universidade. Ele fuma maconha e usa um medalhão da paz. A peça do murmurador gordo é</p><p>produzida por uma companhia de teatro subversiva durante a greve para o fim da guerra, que</p><p>fecha o campus em maio de 1970. O professor faz um dos personagens.</p><p>Enquanto isso, Bill Denbrough escreveu um conto de mistério que se passa em um cômodo</p><p>fechado, três histórias de ficção científica e várias histórias de terror que devem muito a</p><p>Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Richard Matheson. Anos depois, ele dirá que essas</p><p>histórias se pareciam com um rabecão dos anos 1800 equipado com compressor e pintado de</p><p>vermelho fluorescente.</p><p>Uma das histórias de ficção científica lhe rende um B.</p><p>“Isto é melhor”, escreve o professor na página de capa. “No contra-ataque alienígena,</p><p>vemos o círculo vicioso em que a violência gera violência; gostei da nave espacial com</p><p>‘ponta de agulha’ como símbolo da incursão sociossexual. Embora isso permaneça um</p><p>tanto nas entrelinhas ao longo da história, é interessante.”</p><p>Todos os outros não conseguem mais do que C.</p><p>Ele acaba por se levantar no meio da aula um dia, depois que a discussão sobre a cena de</p><p>uma jovem pálida relatando o exame que uma vaca faz em um motor jogado em um campo</p><p>deserto (que pode ou não ser depois de uma guerra nuclear) se arrastou por mais de 70</p><p>minutos. A garota pálida, que fuma um Winston depois do outro e futuca de vez em quando as</p><p>espinhas amontoadas nas têmporas afundadas, insiste que a cena é uma declaração</p><p>sociopolítica no estilo de Orwell em começo de carreira. A maior parte da turma e o</p><p>professor concordam, mas a discussão continua a se arrastar.</p><p>Quando Bill fica de pé, a turma olha para ele. Ele é alto e tem uma certa presença.</p><p>Falando com cuidado, sem gaguejar (ele não gagueja há mais de cinco anos), ele diz:</p><p>— Não entendo isso. Não entendo nada disso. Por que uma história tem que ser</p><p>socioalguma coisa? Política… cultura… história… esses não são ingredientes naturais em</p><p>qualquer história se for contada bem? Quero dizer… — Ele olha ao redor, vê olhos hostis e se</p><p>dá conta levemente de que eles veem isso como uma espécie de ataque. Talvez até seja. Ele se</p><p>dá conta de que estão pensando que talvez haja um mercador da morte machista entre eles. —</p><p>Quero dizer… vocês não podem simplesmente deixar uma história ser uma história?</p><p>Ninguém responde. O silêncio se arrasta. Ele fica ali de pé, olhando de um par de olhos</p><p>frios para outro. A garota pálida exala fumaça e aperta o cigarro em um cinzeiro que ela levou</p><p>na mochila.</p><p>Por fim, o professor diz delicadamente, como se falando com uma criança dando um ataque</p><p>de birra inexplicável:</p><p>— Você acredita que William Faulkner estava apenas contando histórias? Acredita que</p><p>Shakespeare estava apenas interessado em ganhar uma grana? Vamos lá, Bill. Conta pra gente</p><p>o que você acha.</p><p>— Acho que é bem por aí — diz Bill depois de um longo momento no qual realmente</p><p>reflete sobre a pergunta, e nos olhos deles, ele lê uma espécie de condenação.</p><p>— Eu sugiro — diz o professor, brincando com a caneta e sorrindo para Bill com olhos</p><p>entreabertos — que você tem muito a aprender.</p><p>O aplauso começa em algum lugar no fundo da sala.</p><p>Bill sai… mas volta na semana seguinte, determinado a seguir em frente. Antes da volta,</p><p>ele escreveu uma história chamada “O Escuro”, um conto sobre um garoto pequeno que</p><p>descobre um monstro no porão de casa. O garotinho o enfrenta, luta com ele e acaba por matá-</p><p>lo. Ele sente uma espécie de euforia sagrada quando está no processo de escrever a história;</p><p>até sente que não está tanto contando a história, e sim permitindo que ela flua através dele.</p><p>Em determinado ponto, ele larga a caneta e leva a mão quente e dolorida para um frio de -</p><p>10°C de dezembro, onde ela quase solta fumaça pela mudança de temperatura. Ele dá uma</p><p>volta, com as botas verdes de cano baixo gemendo na neve como pequenas dobradiças que</p><p>precisam de lubrificante, e sua cabeça parece inchar com a história; é meio assustadora a</p><p>forma como ela precisa sair. Ele sente que, se ela não conseguir escapar pela mão ágil dele,</p><p>vai estourar seus olhos no desespero de fugir e ser concreta.</p><p>—Vou botar essa porra toda pra fora — diz ele para o vento que sopra no inverno escuro,</p><p>e ri um pouco, com uma gargalhada trêmula. Ele está ciente de que finalmente descobriu como</p><p>fazer isso; depois de dez anos tentando, ele finalmente encontrou o botão para ligar a enorme</p><p>escavadeira que ocupa tanto espaço em sua cabeça. Ela está ligada. Está gemendo, gemendo.</p><p>Não é nada bonita, essa grande máquina. Não foi feita para levar garotas bonitas a bailes. Não</p><p>é um símbolo de status. Ela quer trabalhar. Pode derrubar coisas. Se ele não tomar cuidado,</p><p>vai derrubá-lo.</p><p>Ele entra correndo e termina “O Escuro” em frenesi. Escreve até as quatro horas da manhã</p><p>e adormece em cima do fichário. Se alguém tivesse sugerido que ele estava escrevendo sobre</p><p>o irmão, George, ele teria ficado surpreso. Ele não pensa em George há anos, ou é o que ele</p><p>realmente acredita.</p><p>O professor devolve a história com um F na página de capa. Duas palavras estão escritas</p><p>embaixo em letras garrafais. POPULAR, grita uma. LIXO, grita a outra.</p><p>Bill leva o manuscrito de 15 páginas até o fogão e abre a porta do forno. Está a um</p><p>centímetro de jogar lá dentro quando o absurdo do que ele está fazendo o atinge. Ele se senta</p><p>na cadeira de balanço, olha para um pôster do Grateful Dead e começa a rir. Popular? Ótimo!</p><p>Que seja popular! O mundo está cheio de coisas populares!</p><p>— Que o mundo exploda de tanta coisa popular! — exclama Bill, e ri até lágrimas saltarem</p><p>de seus olhos e rolarem pelo rosto.</p><p>Ele redigita a página de capa, a que tinha a avaliação do professor, e manda para uma</p><p>revista masculina chamada White Tie (embora, pelo que Bill pode ver, devia se chamar</p><p>Garotas Nuas que Parecem Usuárias de Drogas ). Mas seu exemplar surrado do livro</p><p>Writer’s Market diz que eles compram histórias de terror, e as duas edições que ele comprou</p><p>no mercadinho do bairro realmente tinham quatro histórias de terror intercaladas com garotas</p><p>nuas, anúncios de filmes pornô e pílulas para melhorar a potência. Uma delas, escrita por um</p><p>homem chamado Dennis Etchison, é muito boa.</p><p>Ele manda “O Escuro” sem muita esperança (pois já mandou muitas histórias para revistas</p><p>antes e só obteve cartas de rejeição em resposta), e fica estupefato e eufórico quando o editor</p><p>de ficção da White Ties compra por 200 dólares, com pagamento na data da publicação. O</p><p>assistente editorial acrescenta um bilhete curto que a chama de “melhor história de terror</p><p>desde ‘A Jarra’, de Ray Bradbury”. E acrescenta: “Pena que só umas setenta pessoas de costa</p><p>a costa vão ler”, mas Bill Denbrough não se importa. Duzentos dólares!</p><p>Ele procura seu orientador com um pedido de trancamento de matrícula de Eh-141. O</p><p>orientador assina. Bill Denbrough grampeia o protocolo de trancamento ao bilhete de</p><p>parabéns do assistente editorial e prende os dois no quadro de aviso na porta do professor de</p><p>escrita criativa. No canto do quadro de avisos, ele vê uma tirinha de quadrinhos antiguerra. E</p><p>de repente, como se deslocando-se por vida própria, seus dedos tiram a caneta do bolso da</p><p>camisa e escrevem em cima da tirinha: Se a ficção e a política algum dia se tornarem</p><p>intercambiáveis, vou me matar, porque não vou saber o que fazer. Sabe, a política sempre</p><p>muda. As histórias nunca mudam. Ele faz uma pausa, e então, sentindo-se um pouco pequeno</p><p>(mas incapaz de parar), ele acrescenta: Sugiro que você tem muito a aprender.</p><p>O protocolo de trancamento é devolvido pela correspondência do campus três dias depois.</p><p>O professor assinou. No espaço marcado NOTA NO MOMENTO DO TRANCAMENTO , o professor não</p><p>escreveu incompleto nem o C ao qual as notas tiradas dariam direito; em vez disso, há outro F</p><p>rabiscado furiosamente na linha da nota. Abaixo, o professor escreveu: Você acha que o</p><p>dinheiro prova alguma coisa, Denbrough?</p><p>— Bem, na verdade, sim — diz Bill Denbrough para seu apartamento vazio, e mais uma</p><p>vez começa a rir loucamente.</p><p>No último ano de faculdade, ele ousa escrever um romance, porque não tem ideia do que</p><p>está fazendo. Ele conclui a experiência arranhado e amedrontado… mas vivo, e com um</p><p>manuscrito de quase 500 páginas. Ele o envia para a The Viking Press, sabendo que vai ser a</p><p>primeira de muitas paradas do seu livro, que é sobre fantasmas… mas ele gosta do logotipo de</p><p>navio da Viking, e isso a torna um lugar tão bom para começar como qualquer outro. Na</p><p>verdade, a primeira parada acaba sendo a última parada. A Viking compra o livro… e para</p><p>Bill Denbrough, o conto de fadas começa. O homem que já foi conhecido como Bill Gago se</p><p>torna um sucesso aos 23 anos de idade. Três anos depois e a 5 mil quilômetros da Nova</p><p>Inglaterra, ele se torna uma espécie estranha de celebridade ao se casar com uma mulher que é</p><p>estrela de cinema e cinco anos mais velha do que ele em Hollywood’s Church em the Pines.</p><p>Os colunistas de fofoca dão sete meses. A única aposta, dizem eles, é se o fim vai ser por</p><p>divórcio ou anulação. Amigos (e inimigos) dos dois lados do casal sentem a mesma coisa.</p><p>Fora a diferença de idade, as disparidades são assustadoras. Ele é alto, já está ficando calvo,</p><p>já está com uma tendência a ficar gordo. Fala devagar em grupo e às vezes parece quase</p><p>inarticulado. Audra, por outro lado, tem cabelo castanho-avermelhado, é monumental e linda.</p><p>Parece mais uma criatura de uma super-raça semidivina do que uma mulher normal.</p><p>Ele foi contratado para fazer o roteiro de seu segundo livro, A correnteza negra (em parte</p><p>porque o direito de escrever pelo menos o primeiro rascunho do roteiro era uma condição</p><p>irrevogável da venda, apesar dos gemidos da agente dizendo que ele estava louco), e seu texto</p><p>acabou sendo muito bom. Ele foi convidado para ir à Universal City para novas versões e</p><p>reuniões de produção.</p><p>Sua agente é uma mulher pequena chamada Susan Browne. Ela tem exatamente um metro e</p><p>meio. É enérgica de uma maneira violenta, e enfática de maneira mais violenta ainda.</p><p>— Não faça isso, Billy — diz ela. — Deixa pra lá. Eles têm muito dinheiro envolvido</p><p>nisso e vão arrumar alguém bom pra escrever o roteiro. Talvez até Goldman.</p><p>— Quem?</p><p>— William Goldman. O único bom escritor que já fez as duas coisas.</p><p>— De que você está falando, Suze?</p><p>— Ele ficou nessa área, e com sucesso — disse ela. — As chances das duas coisas são</p><p>como as chances de se curar de câncer de pulmão: é possível, mas quem quer tentar? Você vai</p><p>se acabar em sexo e bebidas. Ou em alguma das drogas modernas. — Os olhos castanhos</p><p>fascinantes de Susan brilham para ele com veemência. — E se acabar sendo um cretino a</p><p>pegar o trabalho em vez de Goldman, e daí? O livro está nas prateleiras. Eles não podem</p><p>mudar nem uma palavra.</p><p>— Susan…</p><p>— Me escuta, Billy! Pega o dinheiro e sai correndo. Você é jovem e forte. É disso que eles</p><p>gostam. Se você for até lá, vão primeiro te separar do seu respeito próprio e depois da sua</p><p>capacidade de escrever uma linha reta do ponto A até o ponto B. Por fim, mas não menos</p><p>importante, vão arrancar suas bolas. Você escreve como adulto, mas é apenas uma criança</p><p>com uma testa bem larga.</p><p>— Tenho que ir.</p><p>— Alguém acabou de peidar aqui? — responde ela. — Deve ter, porque tem alguma coisa</p><p>fedendo.</p><p>— Mas eu tenho. Eu preciso.</p><p>— Jesus!</p><p>— Tenho que ir pra longe da Nova Inglaterra. — Ele está com medo de dizer o que vem</p><p>depois, é como expressar uma maldição, mas deve isso a ela. — Tenho que me afastar do</p><p>Maine.</p><p>— Por que, pelo amor de Deus?</p><p>— Não sei. Mas preciso.</p><p>— Você está me dizendo alguma coisa real, Billy, ou só falando como escritor?</p><p>— É real.</p><p>Eles estão juntos na cama durante essa conversa. Os seios dela são pequenos como</p><p>pêssegos, doces como pêssegos. Ele a ama muito, mas não do jeito que os dois sabem que</p><p>seria um bom jeito de amar. Ela se senta com um mar de lençóis no colo e acende um cigarro.</p><p>Está chorando, mas ele duvida que ela saiba que ele sabe. É só um brilho nos olhos dela.</p><p>Seria diplomático não mencionar, então ele não diz nada. Ele não a ama daquele jeito</p><p>realmente bom, mas gosta muito dela.</p><p>— Então vai — diz ela com uma voz seca e profissional enquanto se vira de novo para ele.</p><p>— Me liga quando estiver pronto e se ainda tiver força. Vou catar os cacos. Se sobrar algum.</p><p>A versão em filme de A correnteza negra se chama Toca do demônio negro , e Audra</p><p>Phillips é escalada para o papel principal. O título é horrível, mas o filme acaba sendo bom</p><p>de verdade. E a única parte que ele perde em Hollywood é o coração.</p><p>— Bill — diz Audra de novo, arrancando-o das lembranças. Ele viu que ela havia</p><p>desligado a TV. Olhou pela janela e viu uma névoa roçando o vidro.</p><p>— Vou explicar o máximo que puder — disse ele. — Você merece. Mas primeiro, faça</p><p>duas coisas pra mim.</p><p>— Tudo bem.</p><p>— Faça outra xícara de chá pra você e me conte o que sabe sobre mim. Ou o que pensa que</p><p>sabe.</p><p>Ela olhou para ele intrigada e foi até a cômoda.</p><p>— Sei que você é do Maine — disse ela, fazendo um chá para si tirado da bandeja de café</p><p>da manhã. Ela não era britânica, mas um leve toque de sotaque britânico surgira na voz dela,</p><p>uma relíquia do papel que ela fez em Sótão, o filme que foram filmar lá onde estavam. Era o</p><p>primeiro roteiro original de Bill. Também lhe ofereceram a posição de diretor. Graças a</p><p>Deus, ele recusou; sua partida agora completaria a confusão. Ele sabia o que as pessoas</p><p>diriam, toda a equipe. Billy Denbrough finalmente mostra as caras. Só mais uma merda de</p><p>escritor, mais louco do que um rato enjaulado.</p><p>Deus sabia que ele se sentia louco nesse momento.</p><p>— Sei que você teve um irmão e que o amava muito e que ele morreu — prosseguiu Audra.</p><p>— Sei que você cresceu em uma cidade chamada Derry, se mudou pra Bangor cerca de dois</p><p>anos depois de seu irmão morrer e se mudou pra Portland aos 14 anos. Sei que seu pai morreu</p><p>de câncer de pulmão quando você tinha 17. E que você escreveu um best-seller quando ainda</p><p>estava na faculdade, que se formou com bolsa de estudos e o que ganhava em um emprego de</p><p>meio período em uma indústria têxtil. Deve ter sido muito estranho pra você… a mudança de</p><p>renda. De possibilidades.</p><p>Ela voltou para</p><p>perto dele, e ele viu no rosto dela naquele momento: a percepção dos</p><p>espaços escondidos entre eles.</p><p>— Sei que você escreveu A correnteza negra um ano depois e foi pra Hollywood. E na</p><p>semana antes do começo das filmagens, você conheceu uma mulher muito confusa chamada</p><p>Audra Phillips, que sabia um pouco o que você devia ter passado, a descompressão louca,</p><p>porque ela era simplesmente Audrey Philpott cinco anos antes. E essa mulher estava se</p><p>afogando…</p><p>— Audra, não.</p><p>Os olhos dela estavam firmes e sustentaram o olhar dele.</p><p>— Ah, por que não? Vamos falar a verdade e envergonhar o diabo. Eu estava me afogando.</p><p>Tinha descoberto o lança-perfume dois anos antes de conhecer você e um ano depois descobri</p><p>a cocaína, e as coisas ficaram ainda melhores. Era lança-perfume de manhã, coca à tarde,</p><p>vinho à noite e um Valium na hora de dormir. As vitaminas de Audra. Havia entrevistas</p><p>importantes demais também, papéis bons demais. Eu parecia tanto uma personagem em um</p><p>romance de Jacqueline Susann que era hilário. Sabe como penso sobre aquela época agora,</p><p>Bill?</p><p>— Não.</p><p>Ela tomou um gole de chá sem tirar os olhos dos dele e sorriu.</p><p>— Era como correr na esteira do aeroporto internacional de Los Angeles. Entende?</p><p>— Não exatamente.</p><p>— É uma esteira rolante — disse ela. — Com cerca de 400 metros de comprimento.</p><p>— Eu sei como é — disse ele —, mas não entendo o que…</p><p>— Você fica lá de pé e ela te leva até a área de coleta de bagagem. Mas, se você quiser,</p><p>não precisa ficar ali de pé. Você pode andar na esteira. Pode correr. E parece que você está</p><p>fazendo sua caminhada normal, corrida normal ou corrida disparada normal, qualquer uma</p><p>delas, porque seu corpo esquece que o que você está mesmo fazendo é superar a velocidade</p><p>que a esteira já está alcançando. É por isso que há placas dizendo DEVAGAR, ESTEIRA EM MOVIMENTO</p><p>perto do final. Quando conheci você, senti como se tivesse saído correndo no final daquela</p><p>coisa para um piso que não se movimenta mais. Ali estava eu, com o corpo 15 quilômetros à</p><p>frente dos pés. Não dá pra manter o equilíbrio. Mais cedo ou mais tarde, você cai de cara.</p><p>Mas eu não caí. Porque você me segurou.</p><p>Ela colocou o chá de lado e acendeu um cigarro, sem tirar os olhos dele. Ele só conseguiu</p><p>ver que as mãos dela estavam tremendo no balançar da chama do isqueiro, que se desviou</p><p>primeiro para a direita do cigarro e depois para a esquerda antes de acertar o alvo.</p><p>Ela tragou profundamente e soprou um jato de fumaça.</p><p>— O que sei sobre você? Sei que parecia ter tudo sob controle. Sei disso. Você nunca</p><p>parecia estar com pressa pra chegar ao próximo drinque nem pra próxima reunião nem pra</p><p>próxima festa. Parecia confiante de que todas essas coisas estariam lá… se você quisesse.</p><p>Você falava devagar. Em parte era o sotaque do Maine, eu acho, mas a maior parte era de</p><p>você mesmo. Você foi o primeiro homem que conheci lá que ousava falar devagar. Eu tinha</p><p>que desacelerar para ouvir. Olhei pra você, Bill, e vi alguém que nunca corria na esteira,</p><p>porque sabia que ela o levaria até o fim. Você parecia intocado pela fama e pela histeria. Não</p><p>alugava um Rolls Royce só pra poder dirigir pela Rodeo Drive no sábado à tarde com as</p><p>placas com seu nome em um carro cintilante de locadora. Não tinha assessor de imprensa pra</p><p>plantar notícias na Vanity e nem no The Hollywood Reporter. Você nunca tinha ido ao</p><p>programa do Carson.</p><p>— Escritores não podem ir a não ser que façam truques com cartas ou entortem colheres —</p><p>disse ele, sorrindo. — É tipo uma lei nacional.</p><p>Ele pensou que ela sorriria, mas ela não sorriu.</p><p>— Sei que você estava do meu lado quando precisei de você. Quando saí voando no final</p><p>da esteira como O. J. Simpson naquela antiga propaganda da Hertz. Talvez você tenha me</p><p>salvado de tomar o comprimido errado com bebida demais. Ou talvez eu tivesse conseguido</p><p>chegar do outro lado sozinha e tudo isso seja uma grande dramatização da minha parte. Mas…</p><p>não é o que parece. Não por dentro, onde estou.</p><p>Ela apagou o cigarro depois de apenas duas tragadas.</p><p>— Sei que você está ao meu lado desde então. E estou do seu lado. Nos damos bem na</p><p>cama. Isso parecia muito importante pra mim. Mas também nos damos bem fora dela, e agora</p><p>isso parece ainda mais importante. Sinto que poderia envelhecer com você e ainda ser</p><p>corajosa. Sei que você toma cerveja demais e não se exercita o bastante; sei que algumas</p><p>noites você tem pesadelos horríveis…</p><p>Ele levou um susto. Um grande susto. Quase ficou com medo.</p><p>— Eu nunca sonho.</p><p>Ela sorriu.</p><p>— É o que você diz pros entrevistadores quando eles perguntam de onde você tira suas</p><p>ideias. Mas não é verdade. A não ser que seja indigestão quando você começa a gemer à</p><p>noite. E eu não acredito nisso, Billy.</p><p>— Eu falo? — perguntou ele com cautela. Não conseguia se lembrar de sonho nenhum.</p><p>Nenhum som, bom ou ruim.</p><p>Audra assentiu.</p><p>— Às vezes. Mas nunca entendo o que você diz. E, em duas ocasiões, você chorou.</p><p>Ele olhou para ela sem expressão no rosto. Havia um gosto ruim em sua boca, que descia</p><p>pela língua e pela garganta como gosto de aspirina derretida. Então agora você sabe como é o</p><p>gosto do medo, pensou ele. Já era hora de descobrir, considerando tudo que você escreveu</p><p>sobre o assunto. Ele achava que era um gosto com o qual se acostumaria. Se vivesse tempo o</p><p>suficiente.</p><p>De repente, havia lembranças tentando voltar. Era como se um saco preto em sua mente</p><p>estivesse latejando, ameaçando expelir</p><p>(sonhos)</p><p>imagens nocivas de seu subconsciente para o campo mental de visão comandado pela</p><p>mente racional e desperta, e se isso acontecesse de uma vez, o levaria à loucura. Ele tentou</p><p>afastar as imagens e conseguiu, mas não antes de ouvir uma voz. Era como se alguém</p><p>enterrado vivo estivesse gritando de dentro do chão. Era a voz de Eddie Kaspbrak.</p><p>Você salvou minha vida, Bill. Aqueles garotos grandes, eles pegam no meu pé. Às vezes</p><p>acho que eles querem mesmo me matar…</p><p>— Seus braços — disse Audra.</p><p>Bill olhou para eles. A pele estava toda arrepiada. Não apenas arrepiada, mas parecendo</p><p>coberta de bulbos brancos como ovos de insetos. Os dois olharam sem dizer nada, como se</p><p>olhando para uma exposição interessante de museu. O arrepio lentamente desapareceu.</p><p>No silêncio que se seguiu, Audra disse:</p><p>— E sei uma outra coisa. Alguém te ligou hoje de manhã dos Estados Unidos e disse que</p><p>você tem que me deixar.</p><p>Ele se levantou, olhou rapidamente para as garrafas de bebida, entrou na cozinha e voltou</p><p>com um copo de suco de laranja. Ele disse:</p><p>— Você sabe que tive um irmão e sabe que ele morreu, mas não sabe que ele foi</p><p>assassinado.</p><p>Audra inspirou rapidamente.</p><p>— Assassinado! Ah, Bill, porque você nunca…</p><p>— Te contei? — Ele riu, fazendo aquele som que parecia um latido de novo. — Não sei.</p><p>— O que aconteceu?</p><p>— Morávamos em Derry na época. Houve uma enchente, mas estava no final, e George</p><p>estava entediado. Eu estava de cama por causa de uma gripe. Ele queria que eu fizesse um</p><p>barco de papel de jornal. Aprendi no acampamento do ano anterior. Ele disse que ia colocar</p><p>para velejar pelas valas da rua Witcham e da rua Jackson, porque elas ainda estavam cheias</p><p>de água. Assim, fiz o barco, ele me agradeceu e saiu, e foi a última vez que vi meu irmão</p><p>George vivo. Se eu não estivesse gripado, quem sabe pudesse ter salvado ele.</p><p>Ele fez uma pausa e esfregou a bochecha esquerda com a palma da mão direita como se</p><p>verificando se estava com barba por fazer. Seus olhos, ampliados pelas lentes dos óculos,</p><p>pareciam pensativos… mas ele não estava olhando para ela.</p><p>— Aconteceu bem na rua Witcham, não muito longe do cruzamento com a Jackson. Quem</p><p>matou ele arrancou o braço esquerdo da mesma maneira que um aluno de 2º ano arrancaria a</p><p>asa de uma mosca. O legista disse que ele morreu de choque ou perda de sangue. Mas, na</p><p>minha opinião, não fazia a menor diferença qual das duas coisas.</p><p>— Meu Deus, Bill!</p><p>— Imagino que você deve se perguntar por que nunca contei. A verdade é que eu também</p><p>me pergunto. Estamos casados há 11 anos e até hoje você nunca soube o que aconteceu com</p><p>Georgie. Sei sobre toda a sua família, até seus tios e tias. Sei que</p><p>seu avô morreu na garagem</p><p>dele em Iowa City quando estava mexendo na serra elétrica bêbado. Sei essas coisas porque</p><p>pessoas casadas, independente do quanto sejam ocupadas, acabam sabendo quase tudo depois</p><p>de um tempo. E se elas ficam muito entediadas e param de escutar, acabam absorvendo de</p><p>qualquer jeito, por osmose. Ou você acha que estou errado?</p><p>— Não — disse ela baixinho. — Você não está errado, Bill.</p><p>— E sempre pudemos falar um com o outro, né? Quero dizer, nenhum de nós ficou</p><p>entediado o bastante pra precisar ser por osmose, certo?</p><p>— Bem — disse ela —, até hoje, sempre pensei assim.</p><p>— Pare com isso, Audra. Você sabe tudo que aconteceu comigo nos últimos 11 anos da</p><p>minha vida. Cada negócio, cada ideia, cada resfriado, cada amigo, cada sujeito que me</p><p>prejudicou ou tentou. Você sabe que dormi com Susan Browne. Sabe que às vezes fico</p><p>sentimental quando bebo e boto discos alto demais.</p><p>— Principalmente do Grateful Dead — disse ela, e ele riu. Desta vez, ela sorriu em</p><p>resposta.</p><p>— Você sabe as coisas mais importantes, as que desejo para o futuro.</p><p>— É. Acho que sim. Mas isso… — Ela fez uma pausa, balançou a cabeça, pensou por um</p><p>momento. — O quanto essa ligação tem a ver com seu irmão, Bill?</p><p>— Me deixa chegar nisso do meu jeito. Não tenta me apressar pra chegar ao núcleo, senão</p><p>vou ficar comprometido. É tão grande… e tão… estranhamente terrível… que estou tentando</p><p>meio que me aproximar de surpresa. Sabe… nunca me ocorreu contar a você sobre Georgie.</p><p>Ela olhou para ele, franziu a testa, balançou a cabeça de leve, como se dizendo Não</p><p>entendo.</p><p>— O que estou tentando te dizer, Audra, é que nem pensei em George durante vinte anos ou</p><p>mais.</p><p>— Mas você me contou que tinha um irmão chamado…</p><p>— Eu repeti um fato — disse ele. — Só isso. O nome dele era uma palavra. Não projetava</p><p>sombra nenhuma na minha mente.</p><p>— Mas acho que projetava sombra nos seus sonhos — disse Audra. Sua voz estava muito</p><p>baixa.</p><p>— O gemido? O choro?</p><p>Ela assentiu.</p><p>— Acho que você pode estar certa — disse ele. — Na verdade, é quase certo que esteja.</p><p>Mas sonhos que você não lembra não contam de verdade, né?</p><p>— Você está mesmo me dizendo que nunca pensava nele?</p><p>— Sim. Estou.</p><p>Ela balançou a cabeça, não acreditando de verdade.</p><p>— Nem mesmo na maneira horrível como ele morreu?</p><p>— Não até hoje, Audra.</p><p>Ela olhou para ele e balançou a cabeça de novo.</p><p>— Você me perguntou antes de casarmos se eu tinha irmãos ou irmãs, e eu disse que tive</p><p>um irmão que morreu quando eu era criança. Você sabia que meus pais tinham morrido, e tem</p><p>tanta gente na família que ocupava todo seu campo de atenção. Mas isso não é tudo.</p><p>— O que você quer dizer?</p><p>— Não é só George que está naquele buraco negro. Não penso na própria Derry há vinte</p><p>anos. Não nas pessoas com quem eu andava, Eddie Kaspbrak e Richie, o Boca, Stan Uris, Bev</p><p>Marsh… — Ele passou as mãos pelo cabelo e deu uma risada trêmula. — É como ter um caso</p><p>de amnésia tão severo que você não sabe que tem. E quando Mike Hanlon ligou…</p><p>— Quem é Mike Hanlon?</p><p>— Outro garoto com quem a gente andava, com quem eu andava depois que Georgie</p><p>morreu. É claro que ele não é mais garoto. Nenhum de nós é. Aquele era Mike ao telefone, em</p><p>ligação intercontinental. Ele disse “Alô, estou falando com a residência da família</p><p>Denbrough?”, e eu disse sim, e ele disse “Bill? É você?”, e eu disse sim, e ele disse “Aqui é</p><p>Mike Hanlon”. Não significou nada pra mim, Audra. Ele podia muito bem estar vendendo</p><p>enciclopédias ou discos de Burl Ives. E depois ele disse “De Derry”. E quando ele disse isso,</p><p>foi como se uma porta se abrisse dentro de mim e uma luz horrível brilhasse, e me lembrei de</p><p>quem ele era. Me lembrei de Georgie. Me lembrei de todos os outros. Tudo isso aconteceu…</p><p>Bill estalou os dedos.</p><p>— Assim. E eu sabia que ele ia me pedir pra ir.</p><p>— Pra voltar pra Derry.</p><p>— É. — Ele tirou os óculos, esfregou os olhos, olhou para ela. Nunca na vida ela tinha</p><p>visto um homem parecendo estar com tanto medo. — Pra voltar pra Derry. Porque</p><p>prometemos, disse ele, e prometemos mesmo. Nós prometemos. Todos nós. Todas as</p><p>crianças. Ficamos de pé no riacho que cortava o Barrens, demos as mãos em um círculo e</p><p>cortamos as palmas com um pedaço de vidro, então éramos como um bando de crianças</p><p>brincando de irmãos de sangue, só que foi real.</p><p>Ele mostrou as palmas para ela, e no centro ela conseguia ver uma série de linhas brancas</p><p>como uma escada que poderiam ser cicatrizes. Ela tinha segurado a mão dele, as duas mãos</p><p>dele, incontáveis vezes, mas nunca tinha reparado nessas cicatrizes nas palmas antes. Eram</p><p>leves, sim, mas ela teria acreditado…</p><p>E a festa! Aquela festa!</p><p>Não a festa onde eles se conheceram, apesar de essa segunda formar um perfeito final de</p><p>livro para a primeira, porque foi a festa de encerramento das filmagens de Toca do demônio</p><p>negro. Foi agitada e regada a álcool, no estilo das festas típicas de Topanga Canyon. Talvez</p><p>um pouco menos maliciosa do que outras festas de L. A. às quais ela tinha ido, porque a</p><p>filmagem tinha sido melhor do que eles tinham o direito de esperar, e todos sabiam. Para</p><p>Audra Phillips foi ainda melhor, porque ela se apaixonou por William Denbrough.</p><p>Qual era o nome da quiromante autoproclamada? Ela não conseguia lembrar agora, só que</p><p>era uma das duas assistentes do maquiador. Ela se lembrava da garota tirando a blusa em</p><p>algum momento da festa (deixando à mostra um sutiã muito transparente por baixo) e</p><p>amarrando na cabeça como um turbante de cigana. Alta pela maconha e pelo vinho, ela leu</p><p>palmas de mãos pelo resto da noite… ou pelo menos até apagar.</p><p>Audra agora não conseguia lembrar se as leituras da garota foram boas ou ruins,</p><p>inteligentes ou idiotas: ela mesma estava muito alta aquela noite. O que ela lembrava era que,</p><p>em determinado ponto, a garota pegou a mão de Bill e a dela e os declarou uma combinação</p><p>perfeita. Eles eram almas gêmeas, falou. Ela conseguia se lembrar de observar, com mais do</p><p>que um pouco de ciúmes, enquanto a garota passava uma unha muito bem pintada pelas linhas</p><p>na palma da mão dele; o quanto idiota era isso, na estranha subcultura de filmes de L. A., onde</p><p>homens batiam nos traseiros de mulheres tão habitualmente quanto os homens de Nova York</p><p>davam beijos nas bochechas! Mas havia algo de íntimo e duradouro naquele movimento de</p><p>unha.</p><p>Não havia pequenas cicatrizes brancas nas palmas de Bill naquele dia.</p><p>Ela estava observando a interação com olhar de amante ciumenta e tinha certeza da</p><p>lembrança. Certeza do fato.</p><p>Ela disse isso para Bill agora.</p><p>Ele assentiu.</p><p>— Você está certa. Elas não estavam lá naquela época. E apesar de eu não poder jurar com</p><p>certeza, acho que não estavam aqui ontem à noite, no Plow and Barrow. Ralph e eu estávamos</p><p>fazendo queda de braço de novo pra ver quem pagava a cerveja, e acho que eu teria reparado.</p><p>Ele sorriu para ela. O sorriso foi seco, sem humor e apavorante.</p><p>— Acho que voltaram quando Mike Hanlon ligou. É o que eu acho.</p><p>— Bill, isso não é possível. — Mas ela esticou a mão para pegar os cigarros.</p><p>Bill estava olhando para as mãos.</p><p>— Foi Stan que fez — disse ele. — Cortou as palmas das nossas mãos com um caco de</p><p>garrafa de Coca. Consigo lembrar tão claramente agora. — Ele ergueu o olhar para Audra, e</p><p>por trás dos óculos, seus olhos estavam magoados e intrigados. — Lembro como aquele</p><p>pedaço de vidro brilhava sob o sol. Era um das garrafas novas e transparentes. Antes disso, as</p><p>garrafas de Coca eram verdes, lembra? — Ela balançou a cabeça, mas ele não a viu. Ainda</p><p>estava observando as palmas das mãos. — Eu me lembro de Stan fazendo nas mãos dele por</p><p>último, fingindo que ia cortar os pulsos em vez de apenas fazer um cortezinho nas palmas das</p><p>mãos. Acho que era uma espécie de brincadeira, mas quase fui pra cima dele… pra fazer ele</p><p>parar. Porque por um segundo ou dois, pareceu que era para valer.</p><p>— Bill, não — disse ela com voz baixa. Desta vez, ela teve que firmar o isqueiro apoiando</p><p>na mão esquerda, como um policial segurando uma arma para atirar. — Cicatrizes não voltam.</p><p>Elas existem ou não existem.</p><p>— Você viu elas antes, então? É isso que está me dizendo?</p><p>— Elas são bem suaves — disse Audra, mais rispidamente do que pretendia.</p><p>— Todos nós sangramos — disse ele. — Ficamos de pé na água, não muito longe de onde</p><p>Eddie Kaspbrak, Ben Hanscom e eu construímos a represa naquela vez…</p><p>— Você não está falando do arquiteto, está?</p><p>— Tem algum com esse nome?</p><p>— Meu Deus, Bill, ele construiu o novo centro de comunicações da BBC! Ainda estão</p><p>discutindo se é um sonho ou um aborto!</p><p>— Bem, não sei se é o mesmo cara ou não. Não parece provável, mas acho que pode ser. O</p><p>Ben que conheci era fera em construir coisas. Todos ficamos ali de pé, e eu estava segurando</p><p>a mão esquerda de Bev Marsh com a minha direita e a mão direita de Richie Tozier com a</p><p>minha esquerda. Ficamos de pé na água como algo saído da Convenção Batista do Sul depois</p><p>de uma reunião em uma barraca, e lembro que conseguia ver a Torre de Água de Derry no</p><p>horizonte. Estava tão branca quanto se imagina que as túnicas dos arcanjos sejam, e</p><p>prometemos, juramos que, se não estivesse acabado, que se as coisas voltassem a acontecer…</p><p>nós voltaríamos. E faríamos de novo. E impediríamos. Pra sempre.</p><p>— Impedir o quê? — gritou ela, de repente furiosa com ele. — Impedir o quê? De que</p><p>porra você está falando?</p><p>— Eu queria que você não p-p-perguntasse… — começou Bill, e então parou. Ela viu uma</p><p>expressão de horror confuso se espalhar no rosto dele como uma mancha. — Me dá um</p><p>cigarro.</p><p>Ela passou o maço para ele. Ele acendeu um. Ela nunca o tinha visto fumar um cigarro.</p><p>— Eu era gago.</p><p>— Você era gago?</p><p>— Era. Nessa época. Você disse que eu era o único homem em L. A. que você conhecia</p><p>que ousava falar devagar. A verdade é que eu não ousava falar rápido. Não era reflexão. Era</p><p>deliberado. Não era sabedoria. Todos os ex-gagos falam muito devagar. É um dos truques que</p><p>aprendemos, como pensar em seu nome do meio antes de se apresentar, porque gagos têm mais</p><p>problemas com substantivos do que qualquer outra palavra, e a palavra dentre todas no mundo</p><p>que provoca maiores dificuldades é o primeiro nome deles.</p><p>— Gago. — Ela deu um pequeno sorriso, como se ele tivesse contado uma piada e ela não</p><p>tivesse entendido.</p><p>— Até Georgie morrer, eu gaguejava moderadamente — disse Bill, e já tinha começado a</p><p>ouvir as palavras dobradas na mente, como se estivessem infinitesimalmente separadas no</p><p>tempo; as palavras saíam suavemente, em sua forma lenta e cadenciada de sempre, mas em sua</p><p>mente ele ouvia palavras como Georgie e moderadamente se sobreporem e se tornarem Juh-</p><p>Juh-Georgie e m-moderadamente. — Quero dizer, eu tinha momentos realmente ruins, em</p><p>geral quando era chamado na aula, e principalmente se eu sabia a resposta e quisesse dar, mas</p><p>em geral eu me virava. Depois que Georgie morreu, piorou muito. Depois, por volta de 14 ou</p><p>15 anos, as coisas começaram a melhorar de novo. Eu estudava na escola Chevrus High em</p><p>Portland, e havia uma fonoaudióloga lá, a sra. Thomas, que era mesmo ótima. Ela me ensinou</p><p>uns bons truques. Como pensar no meu nome do meio antes de dizer “Oi, sou Bill Denbrough”</p><p>em voz alta. Eu estava tendo aula de francês básico e ela me ensinou a mudar pra francês se</p><p>ficasse entalado em uma palavra. Então, se eu estivesse me sentindo o maior babaca do</p><p>mundo, dizendo “ess-ess-esse li-li li-li” sem parar como um disco quebrado, era só trocar pra</p><p>francês e “ce livre” saía fluindo pela boca. Sempre funcionava. E assim que eu dizia em</p><p>francês, dava pra voltar e dizer “esse livro” sem nenhum problema. Se eu ficava entalado em</p><p>uma palavra com s, como sapo, skate ou slogan, era só cecear, pronunciar o S com a língua</p><p>apoiada nos dentes. Eu não gaguejava.</p><p>“Tudo isso ajudava, mas o principal era que eu estava esquecendo Derry e tudo que</p><p>aconteceu lá. Porque foi quando comecei a esquecer pra valer. Quando estávamos morando</p><p>em Portland e eu estudava na Chevrus. Não me esqueci de tudo de uma vez, mas ao olhar pra</p><p>trás agora, tenho que dizer que aconteceu em um período incrivelmente curto de tempo. Talvez</p><p>menos de quatro meses. Minha gagueira e minhas lembranças desapareceram juntas. Alguém</p><p>lavou o quadro, e todas as velhas equações sumiram.”</p><p>Ele tomou o que ainda restava de suco.</p><p>— Quando eu gaguejei em “perguntasse” alguns segundos atrás, foi a primeira vez em</p><p>talvez 21 anos.</p><p>Ele olhou para ela.</p><p>— Primeiro, as cicatrizes, depois a gaa-gueira. Está o-ouvindo?</p><p>— Você está fazendo de propósito! — disse ela, bastante assustada.</p><p>— Não. Acho que não tem jeito de convencer alguém disso, mas é verdade. Gaguejar é</p><p>estranho, Audra. Assustador. Em certo nível, você nem percebe que está acontecendo. Mas…</p><p>também é uma coisa que você consegue ouvir com a mente. É como se parte da sua cabeça</p><p>estivesse funcionando à frente do resto. Ou um daqueles sistemas de som que os jovens</p><p>colocavam nos calhambeques nos anos 1950, em que o som do alto-falante de trás saía uma</p><p>fração de segundo depois que o do da fr-frente.</p><p>Ele se levantou e andou com impaciência pela sala. Parecia cansado, e ela pensou com</p><p>certo incômodo no quanto ele tinha trabalhado duro nos últimos 13 anos, como se fosse</p><p>possível justificar o talento moderado com trabalho frenético, quase sem parar. Ela se viu</p><p>tendo um pensamento ruim e tentou afastá-lo, mas ele não sumiu. E se a ligação de Bill tivesse</p><p>sido mesmo de Ralph Foster, convidando-o para ir ao Plow and Barrow para uma hora de</p><p>queda de braço ou gamão, ou talvez de Freddie Firestone, o produtor de Sótão, por causa de</p><p>algum problema? Talvez até “uma série de coisas erradas”, como a esposa britânica do</p><p>médico que morava na rua dizia?</p><p>A que esses pensamentos levavam?</p><p>Ora, à ideia de que toda essa coisa de Derry e Mike Hanlon não passava de alucinação.</p><p>Uma alucinação despertada por um colapso nervoso em fase inicial.</p><p>Mas as cicatrizes, Audra. Como você explica as cicatrizes? Ele está certo. Não estavam</p><p>lá… e agora, estão. Essa é a verdade e você sabe.</p><p>— Me conta o resto — disse ela. — Quem matou seu irmão George? O que você e essas</p><p>outras crianças fizeram? O que vocês prometeram?</p><p>Ele foi até ela, se ajoelhou como um homem antiquado prestes a pedi-la em casamento e</p><p>segurou as mãos dela.</p><p>— Acho que eu poderia te contar — disse ele baixinho. — Acho que, se eu realmente</p><p>quisesse, poderia. Não me lembro da maior parte mesmo agora, mas depois que começasse a</p><p>falar, tudo viria. Consigo sentir algumas dessas lembranças… esperando pra nascer. São</p><p>como nuvens cheias de chuva. Só que seria uma chuva muito suja. As plantas que crescessem</p><p>depois de uma chuva assim seriam monstros. Talvez eu possa encarar isso com os outros…</p><p>— Eles sabem?</p><p>— Mike disse que ligou pra todos. Acha que todos vão… menos Stan, talvez. Ele disse que</p><p>Stan parecia estranho.</p><p>— Tudo me parece estranho. Você está me assustando muito, Bill.</p><p>— Sinto muito — disse ele, e beijou-a. Foi como receber um beijo de um estranho. Ela se</p><p>viu odiando esse tal de Mike Hanlon. — Achei que devia explicar o máximo que podia; achei</p><p>que fosse melhor do que sair escondido à noite. Acho que alguns talvez façam isso. Mas</p><p>preciso ir. E acho que Stan também vai estar lá, por mais estranho que estivesse. Ou talvez só</p><p>não consiga me imaginar não indo.</p><p>— Por causa do seu irmão?</p><p>Bill balançou a cabeça devagar.</p><p>— Eu poderia dizer isso, mas seria mentira. Eu o amava. Sei o quanto isso pode parecer</p><p>estranho depois de eu contar que não pensava nele havia uns vinte anos, mas eu amava aquele</p><p>moleque demais. — Ele sorriu um pouco. — Ele era um manezão, mas eu o amava. Entende?</p><p>Audra, que tinha uma irmã mais nova, assentiu.</p><p>— Entendo.</p><p>— Mas não é por George. Não consigo explicar o que é. Eu…</p><p>Ele olhou pela janela para a névoa matinal.</p><p>— Sinto como um pássaro deve se sentir quando chega o outono e ele sabe… apenas sabe</p><p>que precisa voar pra casa. É instinto, querida… e acho que acredito que o instinto é o</p><p>esqueleto de ferro sob todas as nossas ideias e livre-arbítrio. A não ser que você esteja</p><p>disposto a tirar a própria vida, acabar com seu futuro, comprar bilhete só de ida pro inferno,</p><p>tem coisas pras quais não dá pra dizer não. Você não pode recusar sua opção porque não há</p><p>opção. Não pode</p><p>seu</p><p>barco.</p><p>— Ah, merda, merdinha — gritou ele consternado.</p><p>Ele aumentou a velocidade, e por um momento achou que conseguiria pegar o barco. Mas</p><p>um de seus pés escorregou e ele caiu, arranhou um joelho e gritou de dor. Da nova perspectiva</p><p>do nível da calçada, ele viu o barco balançar duas vezes, momentaneamente preso em outro</p><p>rodamoinho, e desaparecer.</p><p>— Merda, merdinha! — gritou ele de novo, e bateu com o punho no chão. Isso também</p><p>doeu, e ele começou a chorar um pouco. Que maneira idiota de perder o barco!</p><p>Ele se levantou e andou até o bueiro. Ficou de joelhos e espiou lá dentro. A água fazia um</p><p>som oco e úmido ao cair na escuridão. Era um som apavorante. Lembrava-o de…</p><p>— Hã! — O som foi arrancado dele como se puxado por uma corda, e ele se encolheu.</p><p>Havia olhos amarelos lá dentro, o tipo de olhos que ele sempre imaginou, mas nunca</p><p>realmente viu no porão. É um animal, pensou ele com incoerência, só isso, um animal, deve</p><p>ser um gato que ficou preso lá embaixo…</p><p>Ainda assim, ele estava pronto para correr, iria correr em um segundo ou dois, quando seu</p><p>painel de controle mental tivesse lidado com o choque provocado pelos dois olhos amarelos</p><p>brilhantes. Ele sentiu a superfície áspera do macadame sob os dedos e a fina camada de água</p><p>fria fluindo ao redor. Viu-se se levantando e se afastando, e foi quando uma voz, perfeitamente</p><p>lógica e um tanto agradável, falou com ele de dentro do bueiro.</p><p>— Oi, Georgie — disse a voz.</p><p>George piscou e olhou de novo. Ele mal conseguia acreditar no que via; era como algo</p><p>saído de uma história inventada, ou um filme em que você sabe que os animais vão falar e</p><p>dançar. Se ele fosse dez anos mais velho, não teria acreditado no que estava vendo, mas não</p><p>tinha 16 anos. Tinha seis.</p><p>Havia um palhaço no bueiro. A luz lá dentro não era nada boa, mas era boa o bastante para</p><p>George Denbrough ter certeza do que estava vendo. Era um palhaço, como no circo ou na TV.</p><p>Na verdade, ele parecia um cruzamento entre o Bozo e Clarabell, que falava apertando a</p><p>buzina no programa Howdy Doody dos sábados de manhã. Buffalo Bob era o único que</p><p>conseguia entender Clarabell, e isso sempre fazia George morrer de rir. O rosto do palhaço no</p><p>bueiro era branco, havia tufos engraçados de cabelo vermelho de cada lado da cabeça careca</p><p>e havia um grande sorriso de palhaço pintado sobre a boca. Se George estivesse vivo um ano</p><p>depois, ele certamente pensaria em Ronald McDonald antes de Bozo ou Clarabell.</p><p>O palhaço segurava vários balões de todas as cores, como lindas frutas maduras, em uma</p><p>das mãos.</p><p>Na outra, segurava o barco de papel de George.</p><p>— Quer seu barco, Georgie? — O palhaço sorriu.</p><p>George sorriu também. Não conseguiu evitar; era o tipo de sorriso que você tinha que</p><p>retribuir.</p><p>— Claro que quero — disse ele.</p><p>O palhaço sorriu.</p><p>— “Claro que quero.” Isso é ótimo! Isso é muito bom! E que tal um balão?</p><p>— Bem… claro! — Ele esticou a mão… mas puxou de volta com relutância. — Não devo</p><p>aceitar coisas de estranhos. Meu pai falou.</p><p>— Seu pai é muito sábio — disse o palhaço no bueiro, sorrindo. Como, perguntou-se</p><p>George, eu pude pensar que os olhos dele eram amarelos? Eram de um azul intenso e</p><p>saltitante, a cor dos olhos da mãe dele, e de Bill. — Muito sábio mesmo. Portanto, vou me</p><p>apresentar. Eu, Georgie, sou o sr. Bob Gray, também conhecido como Pennywise, o Palhaço</p><p>Dançarino. Pennywise, este é George Denbrough. George, este é Pennywise. E agora, nos</p><p>conhecemos. Não sou um estranho pra você, e você não é um estranho pra mim. Certim?</p><p>George riu.</p><p>— Acho que sim. — Ele esticou a mão de novo… e recolheu a mão de novo. — Como</p><p>você chegou aí embaixo?</p><p>— A tempestade me jogoooou longe — disse Pennywise, o Palhaço Dançarino. — Jogou</p><p>todo o circo bem longe. Você consegue sentir o cheiro do circo, Georgie?</p><p>George se inclinou para a frente. De repente, sentiu cheiro de amendoim! Amendoim quente</p><p>torrado! E vinagre! Do tipo branco que se coloca na batata frita por um buraco na tampa!</p><p>Sentiu cheiro de algodão-doce e bolinhos doces fritos e o odor leve e intenso de bosta de</p><p>animal selvagem. Sentiu o aroma alegre de serragem. Ainda assim…</p><p>Ainda assim, debaixo de tudo havia o cheiro de inundação e folhas em decomposição e</p><p>sombras escuras de bueiro. Esse cheiro era úmido e podre. O cheiro do porão.</p><p>Mas os outros cheiros estavam mais fortes.</p><p>— Pode apostar que consigo sentir — disse ele.</p><p>— Quer seu barco, Georgie? — perguntou Pennywise. — Só estou repetindo porque você</p><p>não parece tão ansioso. — Ele o ergueu e sorriu. Estava usando uma roupa de seda larga com</p><p>grandes botões laranja. Uma gravata berrante, azul-elétrica, caía pela frente do peito, e havia</p><p>grandes luvas brancas em suas mãos, do tipo que Mickey Mouse e o Pato Donald sempre</p><p>usavam.</p><p>— Sim, claro — disse George, olhando para dentro do bueiro.</p><p>— E um balão? Tenho vermelho e verde e amarelo e azul…</p><p>— Eles flutuam?</p><p>— Flutuam? — O sorriso do palhaço se alargou. — Ah, sim, claro que sim. Flutuam! E tem</p><p>algodão-doce…</p><p>George esticou a mão.</p><p>O palhaço agarrou seu braço.</p><p>E George viu o rosto do palhaço mudar.</p><p>O que ele viu então era terrível o bastante para fazer suas piores fantasias da coisa no</p><p>porão parecerem doces sonhos; o que ele viu destruiu sua sanidade em um golpe de uma garra.</p><p>— Eles flutuam — repetiu a coisa no bueiro com uma voz rouca e rindo. Ela segurou o</p><p>braço de George em um abraço grosso e serpenteante, puxou George para aquela escuridão</p><p>terrível onde a água corria e rugia e gritava ao levar a carga de destroços da tempestade em</p><p>direção ao mar. George virou o pescoço para longe daquela escuridão e começou a gritar na</p><p>chuva, a gritar loucamente para o céu branco de outono curvado sobre Derry naquele dia de</p><p>1957. Seus gritos eram agudos e cortantes, e em toda rua Witcham as pessoas foram até as</p><p>janelas ou saíram correndo para as varandas.</p><p>— Eles flutuam — rosnou a coisa —, eles flutuam, Georgie, e quando você estiver aqui</p><p>embaixo comigo, também vai flutuar…</p><p>O ombro de George bateu no cimento do meio-fio, e Dave Gardener, que ficou em casa em</p><p>vez de ir trabalhar no The Shoeboat naquele dia por causa da enchente, viu apenas um</p><p>garotinho de capa de chuva amarela, um garotinho que gritava e se contorcia na vala com água</p><p>lamacenta passando sobre o rosto que fazia os gritos parecerem borbulhar.</p><p>— Tudo aqui embaixo flutua — sussurrou a voz podre que ria, e de repente houve um som</p><p>de rasgo e uma onda flamejante de dor, e George Denbrough se foi.</p><p>Dave Gardener foi o primeiro a chegar, e apesar de só ter chegado 45 segundos depois do</p><p>primeiro grito, George Denbrough já estava morto. Gardener o segurou pelas costas da capa</p><p>de chuva, puxou-o para a rua… e começou a gritar quando o corpo de George foi virado em</p><p>suas mãos. O lado esquerdo da capa de George estava vermelho-vivo. Sangue fluía para o</p><p>bueiro pelo buraco esfarrapado onde ficava o braço esquerdo. Um pedaço de osso,</p><p>horrivelmente branco, aparecia no tecido rasgado.</p><p>Os olhos do garoto estavam direcionados para o céu branco, e quando Dave cambaleou</p><p>para trás, na direção dos outros que já corriam em desespero pela rua, começaram a se encher</p><p>de chuva.</p><p>4</p><p>Em algum lugar abaixo, no bueiro que já estava</p><p>cheio até a capacidade total com água de</p><p>escoamento (não poderia haver ninguém lá</p><p>embaixo, exclamaria depois o xerife do condado</p><p>para um repórter do Derry News com uma fúria</p><p>frustrada tão grande que era quase dor; o próprio</p><p>Hercules teria sido levado naquela corrente</p><p>fortíssima), o barco de George seguiu pelas</p><p>câmaras escuras e longos corredores de concreto</p><p>que rugiam e gritavam de tanta água. Por um</p><p>tempo, seguiu ao lado de uma galinha morta que</p><p>flutuava com as garras amarelas e reptilianas</p><p>apontadas para o teto molhado; depois, em algum</p><p>cruzamento a leste da cidade, a galinha foi levada</p><p>para a esquerda enquanto o barco de George</p><p>seguiu em frente.</p><p>Uma hora depois, quando a mãe de George estava sendo sedada na emergência do Derry</p><p>Home Hospital e quando Bill Gago estava sentado estupefato e silencioso na cama, ouvindo o</p><p>pai chorar roucamente na sala de estar onde a mãe tocava Für Elise</p><p>impedir que aconteça tanto quanto não dá pra ficar parado na primeira base</p><p>com o taco na mão esperando a bola de beisebol te acertar. Tenho que ir. Aquela promessa…</p><p>está na minha mente como um an-anzol.</p><p>Ela ficou de pé e andou até ele; sentia-se muito frágil, como se pudesse se partir. Colocou a</p><p>mão no ombro dele e o virou para si.</p><p>— Me leva com você então.</p><p>A expressão de horror que surgiu no rosto dele nesse momento, não horror a ela, mas por</p><p>ela, foi tão nua que ela recuou, sentindo medo de verdade pela primeira vez.</p><p>— Não — disse ele. — Nem pense nisso, Audra. Nunca pense nisso. Você não vai chegar</p><p>nem a 5 mil quilômetros de Derry. Acho que Derry vai ser um lugar bem ruim para se estar</p><p>durante as próximas duas semanas. Você vai ficar aqui, seguir em frente e dar todas as</p><p>desculpas por mim que precisar. Agora me prometa isso!</p><p>— Devo prometer? — perguntou ela, sem tirar os olhos dos dele. — Devo, Bill?</p><p>— Audra…</p><p>— Devo? Você fez uma promessa, e veja em que ela te meteu. E eu também, já que sou sua</p><p>esposa e amo você.</p><p>As mãos grandes dele apertaram dolorosamente os ombros dela.</p><p>— Me prometa! Prometa! P-pro-pro-pro-o…</p><p>E ela não conseguiu suportar aquilo, aquela palavra partida presa na boca como um peixe</p><p>capturado por um arpão e se contorcendo.</p><p>— Eu prometo, tá? Prometo! — Ela começou a chorar. — Está feliz agora? Jesus! Você é</p><p>maluco, a coisa toda é maluca, mas eu prometo!</p><p>Ele passou um braço em torno dela e a levou até o sofá. Levou conhaque para ela. Ela</p><p>bebericou e foi readquirindo o controle um pouco de cada vez.</p><p>— Quando você vai então?</p><p>— Hoje — disse ele. — De concorde. Consigo chegar se for de carro até Heathrow em vez</p><p>de pegar o trem. Freddie queria me ver no set depois do almoço. Você vai na frente às nove e</p><p>não sabe de nada, certo?</p><p>Ela assentiu com relutância.</p><p>— Vou estar em Nova York antes de qualquer coisa parecer estranha. E em Derry antes do</p><p>pôr do sol se pegar as co-c-conexões certas.</p><p>— E quando te vejo de novo? — perguntou ela baixinho.</p><p>Ele passou o braço ao redor dela e a abraçou com força, mas nunca respondeu a pergunta</p><p>dela.</p><p>DERRY:</p><p>PRIMEIRO INTERLÚDIO</p><p>“Quantos olhos humanos…</p><p>tiveram vislumbres das</p><p>anatomias secretas deles</p><p>ao longo da passagem dos anos?”</p><p>—CLIVE BARKER, Livros de Sangue</p><p>O segmento abaixo e todos os outros segmentos de Interlúdio são tirados de Derry:</p><p>uma história não autorizada da cidade, escrito por Michael Hanlon. É uma coletânea</p><p>inédita de anotações e fragmentos de manuscrito (escritos quase como trechos de</p><p>diário) encontrados no cofre da Biblioteca Pública de Derry. O título dado é o que</p><p>está escrito na capa do fichário no qual as anotações eram guardadas antes de</p><p>aparecerem aqui. No entanto, o autor se refere ao trabalho várias vezes ao longo das</p><p>próprias notas como Derry: uma olhada pela porta dos fundos do inferno.</p><p>Algumas pessoas acreditam que a ideia de uma publicação popular mais do que</p><p>passou pela mente do sr. Hanlon.</p><p>2 de janeiro de 1985</p><p>Uma cidade inteira pode ser assombrada?</p><p>Assombrada como algumas casas em teoria são?</p><p>Não uma única construção nessa cidade, nem a esquina de uma única rua, nem uma única</p><p>quadra de basquete em um único parque, com a cesta sem rede se destacando ao pôr do sol</p><p>como um instrumento obscuro e sangrento de tortura, não só uma área… mas tudo. A cidade</p><p>toda.</p><p>Isso é possível?</p><p>Escute:</p><p>Assombrada: “Visitada com frequência por fantasmas e espíritos.” Funk and Wagnalls.</p><p>Assombrador: “Recorrente à mente com persistência; difícil de esquecer.” Idem Funk e</p><p>Amigo.</p><p>Assombrar: “Aparecer ou retornar com frequência, principalmente como fantasma.” Mas,</p><p>escute! “Um lugar visitado com frequência: local de visitas, sala de estar, ponto de</p><p>encontro…” O itálico é meu, é claro.</p><p>E mais uma. Esta, como a última, é uma definição de assombro como substantivo, e é a que</p><p>realmente me apavora: “Um local de alimentação para animais.”</p><p>Como os animais que surraram Adrian Mellon e o jogaram da ponte?</p><p>Como o animal que estava esperando debaixo da ponte?</p><p>Um local de alimentação para animais.</p><p>O que está se alimentando em Derry? O que está se alimentando de Derry?</p><p>Sabe, é um tanto interessante. Eu não sabia que era possível um homem ficar tão apavorado</p><p>quanto fiquei desde a história de Adrian Mellon e continuar a viver, e mais ainda de forma</p><p>eficiente. É como se eu tivesse caído em uma história, e todo mundo sabe que você não deve</p><p>sentir tanto medo antes do final da história, quando o assombrador do escuro finalmente sai do</p><p>esconderijo para se alimentar… de você, é claro.</p><p>De você.</p><p>Mas se isso é uma história, não é uma das clássicas apavorantes de Lovecraft, Bradbury ou</p><p>Poe. Eu sei, entende. Não tudo, mas muita coisa. Não comecei simplesmente quando abri o</p><p>Derry News um dia em setembro, li a transcrição da audiência preliminar do jovem Unwin e</p><p>me dei conta de que o palhaço que matou George Denbrough podia muito bem ter voltado.</p><p>Comecei por volta de 1980. Acho que é quando uma parte de mim que estava adormecida</p><p>despertou… sabendo que a hora da Coisa podia estar voltando.</p><p>Que parte? A parte sentinela, eu acho.</p><p>Ou talvez fosse a voz da Tartaruga. Sim… acho mesmo que foi isso. Sei que seria nisso que</p><p>Bill Denbrough acreditaria.</p><p>Descobri notícias de velhos horrores em livros velhos; li informações de velhas</p><p>atrocidades em periódicos velhos; sempre no fundo da minha mente, cada dia um pouco mais</p><p>alto, ouvi o murmurar repetitivo de uma força crescente e coalescente; pareci sentir o aroma</p><p>amargo de relâmpagos futuros. Comecei a tomar notas para um livro que quase certamente não</p><p>viverei para escrever. E, ao mesmo tempo, prossegui com a vida. Em um nível da mente, eu</p><p>estava e estou vivendo com os horrores mais grotescos e apavorantes; em outro, continuei a</p><p>viver a vida mundana de bibliotecário de cidade pequena. Coloco livros em prateleiras; faço</p><p>carteiras de biblioteca para novos associados; desligo os leitores de microfilmes que usuários</p><p>descuidados às vezes deixam ligados; brinco com Carole Danner sobre o quanto gostaria de ir</p><p>para a cama com ela, e ela responde brincando sobre o quanto gostaria de ir para a cama</p><p>comigo, e nós dois sabemos que ela está brincando e eu não, assim como nós dois sabemos</p><p>que ela não vai ficar em um lugarzinho como Derry por muito tempo e eu vou ficar aqui até</p><p>morrer, colando páginas arrancadas da Business Week , sentado nas reuniões mensais de</p><p>aquisições com meu cachimbo em uma das mãos e uma pilha de periódicos na outra… e</p><p>acordando no meio da noite com o punho enfiado na boca para conter os gritos.</p><p>As convenções góticas estão todas erradas. Meu cabelo não ficou branco. Não sou</p><p>sonâmbulo. Não comecei a fazer comentários enigmáticos nem a carregar uma prancheta no</p><p>bolso do casaco esporte. Acho que gargalho um pouco mais, só isso, e às vezes deve parecer</p><p>agudo e estranho, porque às vezes as pessoas me olham de um jeito esquisito quando gargalho.</p><p>Parte de mim, a parte que Bill chamaria de voz da Tartaruga, diz que devo ligar pra todos</p><p>esta noite. Mas será que eu tenho certeza absoluta, mesmo agora? Será que quero ter certeza</p><p>absoluta? Não, é claro que não. Mas Deus, o que aconteceu com Adrian Mellon é tão parecido</p><p>com o que aconteceu com George, o irmão do Bill Gago, no outono de 1957.</p><p>Se realmente recomeçou, eu vou ligar para eles. Vou ter que ligar. Mas ainda não. Está</p><p>cedo demais. Da última vez, começou devagar e só pegou ritmo no final de 1958. Então… eu</p><p>espero. E preencho a espera com palavras neste caderno e longos momentos olhando no</p><p>espelho para ver o estranho que o garoto se tornou.</p><p>O rosto do garoto era estudioso e tímido; o rosto do homem é o de um caixa de banco em</p><p>um filme de faroeste, o sujeito que nunca tem falas, o que só levanta as mãos e faz cara de</p><p>medo quando os ladrões entram. E se o roteiro pede que alguém leve um tiro dos bandidos, é</p><p>ele.</p><p>O mesmo velho Mike. Com os olhos um pouco vidrados, talvez, e com olheiras por sono</p><p>interrompido, mas não tanto que se repararia sem olhar de perto… perto como quem vai dar</p><p>um beijo, e não chego perto assim de ninguém há muito tempo. Se</p><p>você desse uma olhada</p><p>casual em mim, poderia pensar Ele anda lendo livros demais, mas só isso. Duvido que</p><p>imaginaria o quanto o homem com rosto comum de caixa de banco está lutando para seguir em</p><p>frente, para manter a mente sã…</p><p>Se eu precisar fazer as ligações, isso pode acabar matando alguns deles. É uma das coisas</p><p>que tenho que encarar nas longas noites em que o sono não vem, noites em que fico deitado na</p><p>cama com meu pijama azul conservador, com meus óculos cuidadosamente fechados na mesa</p><p>de cabeceira ao lado do copo de água que sempre deixo ali para o caso de acordar com sede à</p><p>noite. Fico deitado no escuro e tomo pequenos goles de água e me pergunto o quanto (ou quão</p><p>pouco) eles lembram. Estou um tanto convencido de que não se lembram de nada, porque não</p><p>precisam lembrar. Sou o único que escuta a voz da Tartaruga, o único que lembra, porque sou</p><p>o único que ficou aqui em Derry. E como eles estão espalhados aos quatro ventos, não têm</p><p>como saber os padrões idênticos que as vidas deles assumiram. Trazê-los de volta, mostrar a</p><p>eles esses padrões… sim, pode matar alguns deles. Pode matar todos eles.</p><p>Assim, passo e repasso na mente; penso neles, procuro recriá-los como eram e como</p><p>podem estar agora, tentando decidir qual deles é o mais vulnerável. Richie “Boca de Lixo”</p><p>Tozier, às vezes eu penso; era ele que Criss, Huggins e Bowers pareciam pegar com mais</p><p>frequência, apesar de Ben ser tão gordo. Era de Bowers que Richie tinha mais medo, de quem</p><p>todos tinham mais medo, mas os outros costumavam deixá-lo morrendo de medo também. Se</p><p>eu ligar para ele na Califórnia, será que ele veria como um horrível Retorno dos Grandes</p><p>Valentões, dois saídos do túmulo e um de um manicômio em Juniper Hill, onde delira até os</p><p>dias de hoje? Às vezes acho que Eddie era o mais fraco, Eddie com sua mãe tanque de guerra</p><p>dominadora e o terrível caso de asma. Beverly? Ela sempre tentava botar banca de durona,</p><p>mas tinha tanto medo quanto todos nós. Bill Gago, cara a cara com um horror que não some</p><p>quando ele coloca a capa da máquina de escrever? Stan Uris?</p><p>Há uma lâmina de guilhotina pendurada acima das vidas deles, afiadíssima, mas quanto</p><p>mais eu penso, mais acho que eles não sabem que a lâmina está lá. Sou eu quem está com a</p><p>mão na alavanca. Posso puxá-la apenas abrindo o caderno de telefones e ligando para eles, um</p><p>após o outro.</p><p>Talvez eu não precise fazer isso. Eu me prendo à esperança efêmera de que confundi os</p><p>gritos da minha mente tímida com a voz mais profunda e verdadeira da Tartaruga. Afinal, o</p><p>que tenho? Mellon em julho. Uma criança encontrada morta na rua Neibolt em outubro, outra</p><p>encontrada no Parque Memorial no começo de dezembro, pouco antes de começar a nevar.</p><p>Talvez fosse um mendigo, como os jornais diziam. Ou um louco que já foi embora de Derry ou</p><p>se matou por remorso e nojo de si mesmo, como alguns dos livros dizem que o verdadeiro</p><p>Jack o Estripador deve ter feito.</p><p>Talvez.</p><p>Mas a garota Albrecht foi encontrada na calçada do outro lado da rua da maldita casa velha</p><p>na rua Neibolt… e foi morta no mesmo dia que George Denbrough, 27 anos antes. E o garoto</p><p>Johnson, encontrado no Parque Memorial sem uma das pernas do joelho para baixo. O Parque</p><p>Memorial é o lar da Torre de Água de Derry, e o garoto foi encontrado quase na base dela. A</p><p>Torre de Água fica a um grito do Barrens; a Torre de Água também é onde Stan Uris viu</p><p>aqueles garotos.</p><p>Aqueles garotos mortos.</p><p>Ainda assim, podia não passar de fumaça e miragens. Podia ser. Ou coincidência. Ou</p><p>talvez algum meio-termo entre os dois, um tipo de eco maléfico. Seria possível? Eu sinto que</p><p>sim. Aqui em Derry, qualquer coisa seria possível.</p><p>Acho que o que esteve aqui antes ainda está, a coisa que estava aqui em 1957 e 1958; a</p><p>coisa que estava aqui em 1929 e 1930 quando o Black Spot foi incendiado pela Legião de</p><p>Decência Branca do Maine; a coisa que estava aqui em 1904 e 1905 e no começo de 1906,</p><p>pelo menos até a Siderúrgica Kitchener explodir; a coisa que estava aqui em 1876 e 1877, a</p><p>coisa que aparece a cada 27 anos, mais ou menos. Às vezes, aparece um pouco antes, às</p><p>vezes, um pouco depois… mas sempre vem. Quanto mais no passado, mais difícil é de</p><p>encontrar os eventos, porque há menos registros e os buracos na história narrativa da área</p><p>ficam maiores. Mas saber para onde olhar (e quando olhar) ajuda muito a resolver o</p><p>problema. Ela sempre volta, sabe.</p><p>A Coisa.</p><p>Então, sim. Acho que vou ter que fazer aquelas ligações. Acho que era para sermos nós. De</p><p>alguma forma, por algum motivo, somos os eleitos para acabar com isso para sempre. Destino</p><p>cego? Sorte cega? Ou é aquela maldita Tartaruga de novo? Será que ela também dá ordens</p><p>além de falar? Não sei. E duvido que importe. Todos esses anos atrás, Bill disse A Tartaruga</p><p>não pode nos ajudar, e se era verdade na época, deve ser verdade agora.</p><p>Penso em nós de pé na água, com as mãos dadas, fazendo aquela promessa de voltar se</p><p>tudo recomeçasse; de pé quase como druidas em um círculo, com as mãos sangrando uma</p><p>promessa própria, palma com palma. Um ritual que talvez seja tão velho quanto a própria</p><p>humanidade, uma torneira inconsciente presa à árvore de todo poder, a que cresce no limite</p><p>entre a terra que conhecemos e aquela da qual todos desconfiamos.</p><p>Porque as similaridades…</p><p>Mas estou bancando o Bill Denbrough aqui, gaguejando sobre a mesma coisa sem parar,</p><p>recitando poucos fatos e muitas suposições desagradáveis (e um tanto fugidias), ficando mais</p><p>e mais obsessivo a cada parágrafo. Não é bom. É inútil. Perigoso, até. Mas é tão difícil</p><p>acompanhar os eventos.</p><p>Este caderno é para ser um esforço para superar essa obsessão com a ampliação do foco da</p><p>minha atenção. Afinal, há mais nesta história do que seis garotos e uma garota, nenhum deles</p><p>feliz, nenhum deles aceito pelos colegas, que tropeçaram em um pesadelo durante um verão</p><p>quente quando Eisenhower ainda era presidente. É uma tentativa de afastar um pouco a</p><p>câmera, para ver a cidade inteira, um lugar onde quase 35 mil pessoas trabalham e comem e</p><p>dormem e copulam e compram e dirigem e andam e vão para a escola e vão para a cadeia e às</p><p>vezes desaparecem no escuro.</p><p>Para saber o que um lugar é, realmente acredito que é preciso saber o que ele foi. E se eu</p><p>tivesse que citar um dia em que tudo isso recomeçou para mim, seria o dia no começo da</p><p>primavera de 1980 quando fui ver Albert Carson, que morreu no verão passado. Aos 91 anos,</p><p>ele teve uma vida longa e honrada. Foi o bibliotecário chefe daqui de 1914 a 1960, um</p><p>período incrível (mas ele era um homem incrível), e eu achava que se alguém saberia por qual</p><p>história desta área era melhor começar, seria Albert Carson. Fiz minha pergunta quando</p><p>estávamos sentados na varanda dele, e ele me deu minha resposta, falando em um grasnado,</p><p>pois já estava lutando contra o câncer de garganta que acabaria por matá-lo.</p><p>— Nenhuma vale porra nenhuma. Como você sabe muito bem.</p><p>— Então onde devo começar?</p><p>— Começar o que, por Deus?</p><p>— A pesquisar a história da área. Do município de Derry.</p><p>— Ah. Bem. Comece com o Fricke e o Michaud. Em teoria, são os melhores.</p><p>— E depois de eu ler esses…</p><p>— Ler? Deus, não! Jogue os dois no lixo! Esse é seu primeiro passo. Depois, leia</p><p>Buddinger. Branson Buddinger era um pesquisador descuidado e sofria de ereção terminal, se</p><p>metade do que ouvi quando criança for verdade, mas quando se tratava de Derry, suas</p><p>intenções eram as melhores. Ele errou na maior parte dos fatos, mas errou com sentimento,</p><p>Hanlon.</p><p>Eu ri um pouco, e Carson sorriu com lábios grossos, com uma expressão de bom humor que</p><p>era na verdade meio apavorante. Naquele instante, ele pareceu um abutre vigiando</p><p>alegremente um animal recém-morto, esperando que chegasse ao estágio certo de</p><p>decomposição antes de começar a jantar.</p><p>— Quando você terminar Buddinger, leia Ives. Tome nota sobre todas as pessoas com</p><p>quem ele conversou. Sandy Ives ainda está na Universidade do Maine. É folclorista. Depois</p><p>que ler o livro dele, vá vê-lo. Pague um jantar. Eu o levaria ao Orinoka, porque o jantar no</p><p>Orinoka parece não terminar nunca. Extraia informações. Encha</p><p>um caderno com nomes e</p><p>endereços. Fale com o pessoal antigo com quem ele conversou, os que ainda estão vivos.</p><p>Ainda tem alguns de nós, ah-hah-hah-hah! E consiga mais alguns nomes com eles. Aí você terá</p><p>tudo de que precisa se tiver metade da inteligência que eu acho que você tem. Se você for</p><p>atrás de pessoas o suficiente, vai descobrir algumas coisas que não estão nos livros de</p><p>história. E pode descobrir que elas vão perturbar seu sono.</p><p>— Derry…</p><p>— O que tem?</p><p>— Derry não é normal, é?</p><p>— Normal? — perguntou ele naquele sussurro rouco. — O que é normal? O que essa</p><p>palavra significa? É “normal” belas fotos do Kenduskeag ao pôr do sol, com o filme tal da</p><p>Kodachrome, com determinada abertura relativa? Se for, então Derry é normal, porque há</p><p>belas fotos dela às pencas. É normal um comitê maldito de velhas virgens salvar a Mansão do</p><p>Governador ou colocar uma placa comemorativa na frente da Torre de Água? Se isso for</p><p>normal, então Derry é tão normal quanto a chuva, porque temos mais do que nossa cota de</p><p>xeretas tomando conta das coisas dos outros. É normal aquela estátua feia de plástico de Paul</p><p>Bunyan na frente do City Center? Ah, se eu tivesse um caminhão de napalm e meu velho</p><p>isqueiro Zippo, eu cuidaria daquela merda, eu te garanto… mas se a estética de alguém for</p><p>ampla o bastante pra incluir estátuas de plástico, então Derry é normal. A pergunta é: o que</p><p>normal significa pra você, Hanlon? Hein? Mais diretamente, o que normal não significa?</p><p>Eu só conseguia balançar a cabeça. Ele sabia ou não sabia. Contaria ou não contaria.</p><p>— Você está falando das histórias desagradáveis que pode ouvir ou das que já sabe?</p><p>Sempre há histórias desagradáveis. A história de uma cidade é como uma mansão velha e</p><p>irregular cheia de aposentos e buracos e passagens de roupa suja e sótãos e todo tipo de</p><p>pequenos esconderijos excêntricos… sem mencionar uma ocasional passagem secreta ou duas.</p><p>Se você for explorar a Mansão Derry, vai encontrar todo tipo de coisas. Sim. Pode se</p><p>lamentar mais tarde, mas vai encontrar, e quando uma coisa é encontrada, não pode mais ser</p><p>desencontrada, pode? Alguns dos aposentos estão trancados, mas há chaves… Há chaves.</p><p>Os olhos dele cintilaram para mim com astúcia de homem idoso.</p><p>— Você pode acabar pensando que tropeçou nos piores segredos de Derry… mas sempre</p><p>tem mais um. E mais um. E mais um.</p><p>— Você…?</p><p>— Acho que vou ter que pedir licença agora. Minha garganta está péssima hoje. Está na</p><p>hora dos meus remédios e da minha soneca.</p><p>Em outras palavras, aqui estão a faca e o garfo, amigo; vá ver o que consegue cortar com</p><p>eles.</p><p>Comecei com a história de Fricke e a história de Michaud. Segui o conselho de Carson e</p><p>joguei os dois no lixo, mas li primeiro. Eram tão ruins quanto ele sugeriu. Li o Buddinger,</p><p>copiei as notas de pé de página e fui atrás delas. Isso foi mais do que satisfatório, mas notas</p><p>de pé de página são coisas peculiares, sabe, como trilhas por um lugar selvagem e anárquico.</p><p>Elas se abrem e se abrem de novo; em determinado ponto você pode pegar uma saída errada,</p><p>que vai te levar a um beco sem saída ou a um pântano de areia movediça. “Se você encontrar</p><p>uma nota de pé de página”, disse um professor de biblioteconomia para uma turma da qual eu</p><p>fazia parte, “pise na cabeça dela e mate antes que se reproduza”.</p><p>Elas se reproduzem sim, e às vezes essa reprodução é uma coisa boa, mas acho que o mais</p><p>comum é não ser. As presentes no livro rigidamente escrito de Buddinger, Uma história da</p><p>velha Derry (Orono: University of Maine Press, 1950), abordam cem anos de livros</p><p>esquecidos e dissertações de mestrado poeirentas nos campos de história e folclore, passando</p><p>por artigos em revistas que não existem mais e pilhas de relatórios municipais e livros de</p><p>registro de entorpecer o cérebro.</p><p>Minhas conversas com Sandy Ives foram mais interessantes. As fontes dele se cruzavam</p><p>com as de Buddinger de tempos em tempos, mas era mesmo apenas um cruzamento. Ives</p><p>passou boa parte da vida transcrevendo histórias orais, ou seja, contos, quase ao pé da letra,</p><p>uma prática que Branson Buddinger certamente veria como o pior caminho.</p><p>Ives escreveu um ciclo de artigos sobre Derry entre os anos de 1963 e 1966. A maior parte</p><p>dos cidadãos antigos com quem ele conversou na época estava morta quando comecei minhas</p><p>investigações, mas eles tinham filhos, filhas, sobrinhos, primos. E, é claro, um dos grandes</p><p>fatos verdadeiros do mundo é este: para cada cidadão antigo que morre, há um novo cidadão</p><p>antigo que toma seu lugar. E uma boa história nunca morre; é sempre passada adiante. Sentei-</p><p>me em muitas varandas e degraus de fundos de casas, bebi muito chá, cerveja Black Label,</p><p>cerveja caseira, root beer caseira, água da torneira, água mineral. Ouvi bastante, e as</p><p>engrenagens do meu gravador giraram.</p><p>Tanto Buddinger quanto Ives concordavam completamente em um ponto: o grupo original</p><p>de colonizadores brancos chegava a cerca de trezentas pessoas. Eram ingleses. Tinham</p><p>autorização e eram formalmente conhecidos como a Companhia Derrie. A terra dada a eles</p><p>cobria o que é Derry hoje, a maior parte de Newport e pequenas partes das cidades ao redor.</p><p>E no ano de 1741, todo mundo do município de Derry simplesmente desapareceu. As pessoas</p><p>estavam lá em junho daquele ano, uma comunidade que naquela época chegava a 340 almas,</p><p>mas em outubro, tinham sumido. O pequeno vilarejo de casas de madeira estava</p><p>completamente deserto. Uma delas, que ficava aproximadamente no local onde as ruas</p><p>Witcham e Jackson se cruzam hoje, estava totalmente queimada. O livro de história de</p><p>Michaud afirma com veemência que todos os habitantes foram mortos por índios, mas não há</p><p>base (fora aquela única casa queimada) para essa ideia. É mais provável que o fogão tenha</p><p>ficado quente demais e a casa pegou fogo.</p><p>Massacre índio? Duvidoso. Não havia ossos, não havia corpos. Inundação? Não naquele</p><p>ano. Doença? Não há notícia sobre isso nas cidades ao redor.</p><p>Eles simplesmente desapareceram. Todo mundo. Todas as 340 pessoas. Sem deixar</p><p>rastros.</p><p>Até onde sei, o único caso remotamente parecido na história americana é o</p><p>desaparecimento dos colonizadores em Roanoke Island, Virginia. Todos os estudantes do país</p><p>conhecem essa, mas quem sabe sobre o desaparecimento em Derry? Nem mesmo as pessoas</p><p>que moram aqui, aparentemente. Perguntei a vários estudantes de segundo segmento do ensino</p><p>fundamental que estão fazendo o curso exigido de história do Maine e nenhum sabia sobre</p><p>isso. Então, verifiquei o livro, O Maine antes e agora. Há mais de quarenta ocorrências sobre</p><p>Derry, a maior parte sobre os anos prósperos da indústria madeireira. Nada sobre o</p><p>desaparecimento dos colonizadores originais… Mas esse… Como devo chamar? Esse</p><p>silêncio também se encaixa no padrão.</p><p>Existe uma espécie de cortina de silêncio que cobre a maior parte do que aconteceu aqui…</p><p>mas as pessoas falam. Acho que nada pode impedir as pessoas de falarem. Mas você precisa</p><p>ouvir com atenção, e essa é uma capacidade rara. Tenho orgulho de ter desenvolvido isso nos</p><p>últimos quatro anos. Se não tivesse, minha aptidão para o serviço seria mesmo muito ruim,</p><p>porque tive prática suficiente. Um homem idoso me contou que a esposa ouvia vozes que</p><p>falavam com ela pelo ralo da pia da cozinha nas três semanas antes de a filha deles morrer,</p><p>isso no início do inverno de 1957-1958. A garota sobre quem ele falou estava entre as</p><p>primeiras vítimas da série de assassinatos que começou com George Denbrough e só terminou</p><p>no verão seguinte.</p><p>— Um monte de vozes, todas elas falando ao mesmo tempo — ele me disse. Ele era dono</p><p>de um posto Gulf na rua Kansas e falava entre idas lentas e claudicantes até as bombas, onde</p><p>enchia tanques de gasolina,verificava níveis de óleo e limpava para-brisas. — Ela disse que</p><p>respondeu uma vez, apesar de estar com medo. Se inclinou por cima do ralo, pode acreditar, e</p><p>gritou direto pra ele. “Quem diabos é você?”, grita ela. “Qual é seu nome?” E todas essas</p><p>vozes responderam, disse ela, gemidos e falatórios e gritos e gritinhos, gargalhadas e berros,</p><p>sabe. E ela disse que estavam dizendo o que o homem possuído</p><p>disse pra Jesus: “Nosso nome</p><p>é Legião”, elas disseram. Ela não chegou perto daquela pia durante dois anos. Durante esses</p><p>dois anos, eu passei 12 horas aqui me arrebentando e depois tinha que voltar pra casa e lavar</p><p>toda a porcaria de louça.</p><p>Ele estava tomando uma lata de Pepsi saída de uma máquina do lado de fora do escritório,</p><p>um homem de 72 ou 73 anos com macacão surrado de trabalho e rios de rugas saindo dos</p><p>cantos dos olhos e boca.</p><p>— A essa altura, você deve pensar que sou doido de pedra — disse ele —, mas vou te</p><p>contar outra coisa se você desligar esse seu troço aí.</p><p>Desliguei o gravador e sorri para ele.</p><p>— Considerando algumas das coisas que ouvi nos últimos dois anos, você teria que ir bem</p><p>mais longe pra me convencer que é doido — eu disse.</p><p>Ele sorriu em resposta, mas não havia humor naquele sorriso.</p><p>— Eu estava lavando a louça uma noite, como sempre. Isso foi no outono de 1958, depois</p><p>que as coisas tinham se ajeitado. Minha esposa estava dormindo no andar de cima. Betty foi a</p><p>única filha que Deus nos deu, e depois que foi morta, minha esposa passava muito do tempo</p><p>dela dormindo. De qualquer modo, puxei o tampão, e a água começou a escorrer da pia. Sabe</p><p>o som que água cheia de sabão faz quando desce pelo ralo? Meio que um som de sugar. Estava</p><p>fazendo esse barulho, mas eu não estava pensando nisso, só em sair pra cortar lenha no</p><p>galpão, e quando aquele som começou a sumir, ouvi minha filha lá embaixo. Ouvi Betty em</p><p>algum lugar daqueles malditos canos. Rindo. Ela estava em algum lugar lá embaixo no escuro,</p><p>rindo. Só que parecia mais que ela estava gritando se você prestasse atenção. Ou as duas</p><p>coisas. Gritando e rindo lá embaixo nos canos. Foi a única vez que ouvi uma coisa assim.</p><p>Talvez eu tenha imaginado. Mas… acho que não.</p><p>Ele olhou para mim, e eu olhei para ele. A luz entrando pelas janelas sujas e batendo no</p><p>rosto dele aumentou seu número de anos, o fez parecer tão velho quanto Matusalém. Eu me</p><p>lembro do quanto senti frio naquele momento; muito frio.</p><p>— Você acha que estou inventando pra você? — o homem idoso me perguntou, o homem</p><p>idoso que teria 45 anos em 1957, o homem idoso a quem Deus deu uma única filha, Betty</p><p>Ripsom por batismo. Betty foi encontrada na rua Outer Jackson depois do Natal daquele ano,</p><p>congelada, com o corpo aberto.</p><p>— Não — eu disse. — Não acho que você esteja inventando pra mim, sr. Ripsom.</p><p>— E você também está falando a verdade — disse ele com uma espécie de assombro. —</p><p>Consigo ver no seu rosto.</p><p>Acho que ele pretendia me contar mais alguma coisa, mas o sino atrás de nós tocou quando</p><p>um carro passou por cima da mangueira e encostou ao lado das bombas. Quando o sino tocou,</p><p>nós dois pulamos e demos um gritinho. Ripsom ficou de pé e mancou até o carro, limpando as</p><p>mãos em um pedaço de estopa. Quando voltou, olhou para mim como se eu fosse um estranho</p><p>desagradável que tinha acabado de chegar da rua. Eu me despedi e fui embora.</p><p>Buddinger e Ives concordam em outra coisa: as coisas não são muito normais aqui em</p><p>Derry; as coisas em Derry nunca foram normais.</p><p>Vi Albert Carson pela última vez um mês antes de ele morrer. Sua garganta tinha piorado</p><p>muito; ele só conseguiu sibilar um pequeno sussurro:</p><p>— Ainda está pensando em escrever uma história de Derry, Hanlon?</p><p>— Ainda estou brincando com a ideia — eu disse, mas é claro que nunca planejei escrever</p><p>nenhuma história do município, não exatamente, e eu acho que ele sabia.</p><p>— Você demoraria vinte anos — sussurrou ele — e ninguém leria. Ninguém iria querer</p><p>ler. Deixa pra lá, Hanlon.</p><p>Ele fez uma pausa e acrescentou:</p><p>— Buddinger cometeu suicídio, sabe?</p><p>É claro que eu sabia disso, mas só porque as pessoas sempre falam e eu aprendi a ouvir. O</p><p>artigo no News chamou de queda por acidente, e era verdade que Branson Buddinger tinha tido</p><p>uma queda. O que o News deixou de mencionar foi que ele caiu de um banco no armário e</p><p>estava com uma corda ao redor do pescoço.</p><p>— Você sabe sobre o ciclo?</p><p>Olhei para ele assustado.</p><p>— Ah, sim — sussurrou Carson. — Eu sei. A cada 26 ou 27 anos. Buddinger também</p><p>sabia. Muitos dos cidadãos mais antigos sabem, apesar de ser uma coisa sobre a qual eles não</p><p>falem, mesmo se você os encher de bebida. Deixa pra lá, Hanlon.</p><p>Ele esticou a mão que mais parecia uma garra de pássaro. Fechou ao redor do meu pulso, e</p><p>consegui sentir o câncer quente que estava solto e devorando o corpo dele, consumindo</p><p>qualquer coisa e tudo que ainda havia para consumir. Não que houvesse muito na época; a</p><p>despensa de Albert Carson estava quase vazia.</p><p>— Michael, não é o tipo de coisa com que você quer se meter. Tem coisas aqui em Derry</p><p>que mordem. Deixa pra lá. Deixa pra lá.</p><p>— Não posso.</p><p>— Então tome cuidado — disse ele. De repente, os olhos enormes e apavorados de uma</p><p>criança estavam olhando pelo rosto de homem moribundo. — Cuidado.</p><p>Derry.</p><p>Minha cidade natal. Batizada em homenagem ao condado com o mesmo nome na Irlanda.</p><p>Derry.</p><p>Eu nasci aqui, no Derry Home Hospital; estudei na Escola Derry; fiz o segundo segmento</p><p>do fundamental na Ninth Street Middle School; fiz o ensino médio na Derry High. Estudei na</p><p>Universidade do Maine; “não é Derry, mas fica ali na esquina”, dizem os antigos, e depois</p><p>voltei para cá. Para a Biblioteca Pública de Derry. Sou um homem de cidade pequena vivendo</p><p>uma vida de cidade pequena, uma dentre milhões.</p><p>Mas.</p><p>Mas:</p><p>Em 1879, uma equipe de lenhadores encontrou os restos de outra equipe que tinha passado</p><p>o inverno presa no acampamento no Upper Kenduskeag, na ponta do que as crianças ainda</p><p>chamam de Barrens. Havia nove deles, todos partidos em pedacinhos. Cabeças rolaram… sem</p><p>mencionar braços… um pé ou dois… e o pênis de um homem tinha sido pregado em uma das</p><p>paredes da casa.</p><p>Mas:</p><p>Em 1851, John Markson matou toda a família com veneno e depois, sentado no meio do</p><p>círculo que fez com os corpos, engoliu um cogumelo venenoso inteiro. Suas dores ao morrer</p><p>devem ter sido intensas. O policial municipal que o encontrou escreveu no relatório que a</p><p>princípio achou que o corpo estivesse sorrindo para ele; ele escreveu sobre “o terrível sorriso</p><p>branco de Markson”. O sorriso branco era uma porção inteira do cogumelo venenoso;</p><p>Markson continuou a comer mesmo quando as câimbras e os espasmos musculares</p><p>excruciantes já deviam ter começado a massacrar seu corpo em vias de morrer.</p><p>Mas:</p><p>No domingo de Páscoa de 1906, os donos da Siderúrgica Kitchener, que ficava onde agora</p><p>é o novíssimo Derry Mall, fizeram uma caçada a ovos de Páscoa para “todas as boas crianças</p><p>de Derry”. A caçada aconteceu no enorme prédio da siderúrgica. Áreas perigosas foram</p><p>fechadas e os funcionários se ofereceram para montar guarda e garantir que nenhum menino ou</p><p>menina aventureiro tentasse passar por baixo das barreiras e explorar. Quinhentos ovos de</p><p>Páscoa de chocolate embrulhados com laços coloridos foram escondidos no resto do prédio.</p><p>De acordo com Buddinger, havia pelo menos uma criança presente para cada um desses ovos.</p><p>Elas corriam rindo e saltitando e gritando pela siderúrgica silenciosa de domingo,</p><p>encontrando ovos debaixo de enormes tonéis, dentro de gavetas da escrivaninha do</p><p>supervisor, equilibrados entre dentes enferrujados de rodas dentadas, dentro de formas no</p><p>terceiro andar (nas fotos velhas, essas formas pareciam formas de cupcake da cozinha de</p><p>algum gigante). Três gerações da família Kitchener estavam lá para ver a confusão alegre e</p><p>para dar prêmios no final da busca, que ia acontecer às 16h, independentemente de todos os</p><p>ovos terem sido encontrados. O final acabou acontecendo 45 minutos antes, às 15h15. Foi</p><p>nessa hora que a siderúrgica explodiu. Setenta e duas pessoas foram retiradas mortas dos</p><p>escombros antes de o sol se pôr. A contagem final foi de 102. Oitenta e oito dos mortos eram</p><p>crianças. Na quarta-feira seguinte, enquanto a cidade ainda estava em contemplação perplexa</p><p>da tragédia, uma mulher encontrou a cabeça de Robert Dohay, de 9 anos, presa nos galhos da</p><p>macieira que tinha no quintal. Havia chocolate nos dentes de Dohay e sangue no cabelo. Ele</p><p>foi o último dos mortos encontrados. Oito crianças e um adulto nunca</p><p>foram encontrados. Foi a</p><p>pior tragédia na história de Derry, pior até do que o incêndio no Black Spot em 1930, e nunca</p><p>foi explicada. Todas as quatro caldeiras da siderúrgica estavam fechadas. Não só desligadas,</p><p>mas fechadas.</p><p>Mas:</p><p>A taxa de assassinatos em Derry é seis vezes a de qualquer outra cidade de tamanho</p><p>comparável na Nova Inglaterra. Tive tanta dificuldade em acreditar nas conclusões</p><p>experimentais a que cheguei sobre esse assunto que passei meus números para um dos hackers</p><p>do ensino médio, que passa o resto do tempo, quando não está em frente ao Commodore, aqui</p><p>na biblioteca. Ele deu vários passos a mais (basta cutucar um hacker para encontrar um</p><p>desempenho além das expectativas) ao acrescentar mais uma dezena de pequenas cidades ao</p><p>que ele chamou de “conjunção estatística” e me mostrar um gráfico de barras gerado por</p><p>computador em que Derry se destaca como uma maçã podre. “As pessoas devem estourar à</p><p>toa aqui, sr. Hanlon” foi seu único comentário. Eu não respondi. Se tivesse respondido, talvez</p><p>tivesse dito a ele que alguma coisa em Derry estourava à toa, de qualquer modo.</p><p>Aqui em Derry, crianças desaparecem sem explicação e sem serem encontradas em uma</p><p>taxa de quarenta a sessenta por ano. A maior parte é de adolescentes. As pessoas supõem que</p><p>eles fugiram. Acho que alguns até fogem mesmo.</p><p>E durante o que Albert Carson sem dúvida teria chamado de época do ciclo, a taxa de</p><p>desaparecimento sobe a quase se perder de vista. Em 1930, por exemplo, o ano do incêndio</p><p>do Black Spot, houve mais de 170 desaparecimentos de crianças em Derry. E você precisa</p><p>lembrar que esses são apenas os desaparecimentos relatados à polícia e, por isso,</p><p>documentados. Não há nada de surpreendente nisso, me contou o atual chefe de Polícia</p><p>quando mostrei a estatística a ele. Foi a Depressão. A maior parte deve ter se cansado de</p><p>comer sopa de batata ou passar fome em casa e decidiu sair por aí em busca de coisa</p><p>melhor.</p><p>Em 1958, 127 crianças entre as idades de 3 a 19 anos foram registradas como</p><p>desaparecidas em Derry. Houve uma Depressão em 1958?, eu perguntei ao chefe</p><p>Rademacher. Não, disse ele. Mas as pessoas se mudam muito, Hanlon. Crianças em</p><p>particular ficam com pés inquietos. Brigam com os pais por terem chegado tarde depois de</p><p>um encontro e bum, vão embora.</p><p>Mostrei ao chefe Rademacher a foto de Chad Lowe que apareceu no Derry News em abril</p><p>de 1958. Você acha que esse fugiu depois de uma briga com os pais por ter chegado tarde,</p><p>chefe Rademacher? Ele tinha 3 anos e meio quando sumiu de vista.</p><p>Rademacher me lançou um olhar azedo e me disse que tinha sido ótimo conversar comigo,</p><p>mas se não havia mais nada, ele estava ocupado. Fui embora.</p><p>Assombrada, assombrosa, assombrar.</p><p>Visitada com frequência por fantasmas ou espíritos, como nos canos debaixo da pia;</p><p>aparecer ou ressurgir com frequência, como a cada 25, 26 ou 27 anos; um local de</p><p>alimentação para animais, como nos casos de George Denbrough, Adrian Mellon, Betty</p><p>Ripsom, a garota Albrecht, o garoto Johnson.</p><p>Um local de alimentação para animais. Sim, é essa que me assombra.</p><p>Se alguma outra coisa acontecer, qualquer coisa, vou fazer as ligações. Vou ter que fazer.</p><p>Enquanto isso, tenho minhas suposições, minhas inquietações e minhas lembranças, minhas</p><p>malditas lembranças. Ah, e mais uma coisa: eu tenho este caderno, não é? O muro onde faço</p><p>minhas lamentações. E aqui estou sentado, com a mão tremendo tanto que mal consigo usar</p><p>para escrever, aqui estou sentado na biblioteca deserta depois do fechamento, ouvindo sons</p><p>leves nas áreas escuras, observando sombras criadas pelas lâmpadas amarelas e fracas para</p><p>ter certeza de que não se movem… não mudam.</p><p>Aqui estou sentado ao lado do telefone.</p><p>Coloco a mão livre sobre ele… deixo deslizar… toco nos buracos no disco que poderiam</p><p>me botar em contato com todos eles, meus velhos amigos.</p><p>Fomos fundo juntos.</p><p>Fomos até as trevas juntos.</p><p>Será que sairíamos das trevas se fôssemos uma segunda vez?</p><p>Acho que não.</p><p>Por favor, Deus, que eu não precise ligar para eles.</p><p>Por favor, Deus.</p><p>PARTE 2</p><p>JUNHO DE 1958</p><p>“Minha superfície sou eu.</p><p>Sob a qual</p><p>testemunhar, a juventude</p><p>está enterrada. Raízes?</p><p>Todo mundo tem raízes.”</p><p>—WILLIAM CARLOS WILLIAMS,</p><p>Paterson</p><p>“Às vezes eu me pergunto o que</p><p>vou fazer, não há cura para</p><p>a tristeza de verão.”</p><p>—EDDIE COCHRAN</p><p>Capítulo 4</p><p>Ben Hanscom sofre uma queda</p><p>1</p><p>Por volta das 23h45, uma das comissárias servindo</p><p>a primeira classe do voo de Omaha até Chicago, o</p><p>voo 41 da United Airlines, leva um enorme susto.</p><p>Ela pensa por poucos momentos que o homem na</p><p>poltrona 1-A morreu.</p><p>Quando ele entrou no avião em Omaha, ela pensou: “Ah, lá vem problema. Ele está</p><p>bêbado como um gambá.” O fedor de uísque ao redor da cabeça dele lembrou-a por um</p><p>momento da nuvem de poeira que sempre envolve o garotinho sujo da tira do Snoopy. Pig</p><p>Pen era o nome dele. Ela ficou nervosa com o primeiro serviço, que era de bebidas. Tinha</p><p>certeza de que ele pediria um drinque, provavelmente duplo. Ela teria então que decidir se</p><p>iria servi-lo ou não. Além do mais, para acrescentar à diversão, há tempestades por toda a</p><p>rota daquela noite, e ela tem certeza de que em algum ponto o homem, um cara magro</p><p>vestido de jeans e camisa de cambraia, começaria a vomitar.</p><p>Mas quando chegou o primeiro serviço, o homem alto não pediu nada além de água com</p><p>gás, da forma mais educada que se poderia querer. Sua luz de serviço não foi acesa, e logo</p><p>a comissária se esquece dele, porque o voo é bem movimentado. Na verdade, o voo é do tipo</p><p>que você quer esquecer assim que acaba, um daqueles durante os quais você poderia, se</p><p>tivesse tempo, questionar a possibilidade da sua própria sobrevivência.</p><p>O voo 41 da United ziguezagueia entre as terríveis bolsas de trovões e relâmpagos como</p><p>um bom esquiador descendo a pista. O ar está muito agitado. Os passageiros exclamam e</p><p>fazem piadas desconfortáveis sobre os relâmpagos que conseguem ver piscando nos grossos</p><p>pilares de nuvens ao redor do avião.</p><p>— Mamãe, Deus está tirando fotos dos anjos? — pergunta um garotinho, e a mãe, que</p><p>está um tanto verde, dá uma risada trêmula. O primeiro serviço acaba sendo o único</p><p>serviço no voo 41 daquela noite. O sinal de apertar os cintos é aceso 20 minutos depois da</p><p>decolagem e permanece aceso. Mesmo assim, as comissárias ficam nos corredores,</p><p>atendendo luzes de chamada que se acendem como fileiras de fogos de artifício da alta</p><p>sociedade.</p><p>— O Raul está ocupado hoje — diz a chefe de cabine para ela ao se encontrarem no</p><p>corredor; a chefe de cabine está voltando para um turista com um suprimento novo de</p><p>sacos de vômito. É meio código e meio piada. O Raul sempre está ocupado em voos</p><p>turbulentos. O avião despenca um pouco, alguém grita baixinho, a comissária se vira um</p><p>pouco, apoia a mão para se equilibrar e olha diretamente para os olhos vidrados e cegos</p><p>do homem na poltrona 1-A.</p><p>Ah meu bom Deus, ele está morto, pensa ela. O álcool antes de ele embarcar… depois, a</p><p>turbulência… o coração… morreu de medo.</p><p>Os olhos do homem magro estão nela, mas não a estão vendo. Não se movem. Estão</p><p>perfeitamente vidrados. São os olhos de um homem morto.</p><p>A comissária se afasta daquele olhar terrível com o coração batendo na garganta em</p><p>disparada, perguntando-se o que fazer, como proceder e agradecendo a Deus por pelo</p><p>menos não haver ninguém sentado ao lado do homem para talvez gritar e iniciar uma onda</p><p>de pânico. Ela decide que vai ter que notificar primeiro a chefe de cabine e depois a</p><p>tripulação masculina na frente. Talvez possam enrolar um cobertor nele e fechar os olhos.</p><p>O piloto vai manter as luzes de apertar cintos acesas mesmo que o ar fique estável para que</p><p>ninguém vá até a frente usar o banheiro, e quando os outros passageiros desembarcarem,</p><p>vão pensar que ele está apenas dormindo…</p><p>Esses pensamentos passam pela mente dela rapidamente, e ela se vira para dar uma</p><p>olhada de confirmação. Os olhos mortos e sem visão se fixam nos dela… e então o cadáver</p><p>pega o copo de água com gás e toma um gole.</p><p>Naquele momento, o avião treme de novo, se inclina, e o gritinho de surpresa da</p><p>comissária</p><p>se perde entre outros gritos de medo mais intensos. Os olhos do homem se</p><p>movem; não muito, mas o bastante para ela entender que ele está vivo e a vê. E ela pensa:</p><p>Nossa, quando ele entrou, eu pensei que ele tinha 50 e poucos anos, mas ele não chega nem</p><p>perto dessa idade, apesar do cabelo grisalho.</p><p>Ela vai até ele, apesar de conseguir ouvir o apito impaciente das campainhas atrás (o</p><p>Raul está mesmo ocupado esta noite; depois do pouso perfeitamente seguro no aeroporto</p><p>O’Hare trinta minutos depois, as comissárias vão jogar fora setenta sacos de vômito).</p><p>— Tudo bem, senhor? — pergunta ela, sorrindo. O sorriso parece falso, irreal.</p><p>— Tudo está ótimo e tranquilo — diz o homem magro. Ela olha para o pedaço do cartão</p><p>de embarque da primeira classe preso no espaço nas costas do assento dele e vê que o nome</p><p>é Hanscom. — Ótimo e tranquilo. Mas está meio turbulento hoje, não está? Você está muito</p><p>ocupada, eu acho. Não se preocupe comigo. Eu… — Ele dá um sorriso fraco, um sorriso</p><p>que a faz pensar em espantalhos se balançando ao vento em campos mortos de novembro.</p><p>— Estou ótimo e tranquilo.</p><p>— Você parecia</p><p>(morto)</p><p>um pouco indisposto.</p><p>— Eu estava pensando em antigamente — diz ele. — Só percebi no começo desta noite</p><p>que havia coisas como antigamente, pelo menos no que diz respeito a mim mesmo.</p><p>Mais campainhas tocam.</p><p>— Com licença, comissária? — chama alguém com voz nervosa.</p><p>— Se você tem certeza de que está bem…</p><p>— Eu estava pensando sobre uma represa que construí com alguns amigos — diz Ben</p><p>Hanscom. — Os primeiros amigos que tive, eu acho. Eles estavam construindo a represa</p><p>quando eu… — Ele para, parece assustado e ri. É uma risada honesta, quase a risada</p><p>despreocupada de um garoto, e soa muito estranha neste avião sacolejante e trêmulo. —</p><p>Quando esbarrei neles. E isso é quase literalmente o que fiz. De qualquer modo, eles</p><p>estavam fazendo a maior confusão com a represa. Eu me lembro disso.</p><p>— Comissária?</p><p>— Com licença, senhor… Preciso continuar a atender os chamados.</p><p>— É claro.</p><p>Ela se afasta rapidamente, feliz por se livrar daquele olhar, daquele olhar morto e quase</p><p>hipnótico.</p><p>Ben Hanscom vira a cabeça para a janela e olha para fora. Relâmpagos piscam dentro</p><p>de enormes nuvens escuras a 15 quilômetros da asa de estibordo. Nos brilhos de luz, as</p><p>nuvens parecem enormes cérebros transparentes cheios de pensamentos ruins.</p><p>Ele tateia o bolso do colete, mas os dólares de prata não estão mais lá. Saíram de seu</p><p>bolso e foram para o de Ricky Lee. De repente, ele deseja ter guardado pelo menos um.</p><p>Poderia ser útil. É claro que era possível ir a qualquer banco, pelo menos quando você não</p><p>estava sacolejando a 8 mil metros de altura, e conseguir um punhado de dólares de prata,</p><p>mas não se podia fazer nada com as terríveis rodelas de cobre que o governo tentava fazer</p><p>passar por moedas de verdade atualmente. E para lobisomens e vampiros e todas as coisas</p><p>que se contorcem à luz das estrelas, era prata que você queria; prata de verdade. Era</p><p>preciso prata para deter um monstro. Era preciso…</p><p>Ele fechou os olhos. O ar ao redor estava cheio de campainhas. O avião balançava e</p><p>tremia e o ar estava cheio de campainhas. Campainhas?</p><p>Não… sinos.</p><p>Eram sinos, era o sino, o sino de todos os sinos, o que você esperava o ano todo quando</p><p>a novidade da volta às aulas passava, e isso sempre acontecia no final da primeira semana.</p><p>O sino, o que sinalizava a liberdade de novo, a apoteose de todos os sinos de escola.</p><p>Ben Hanscom está sentado no assento de primeira classe, suspenso entre trovões a 8 mil</p><p>metros de altura, com o rosto virado para a janela, e sente a parede do tempo ficar fina de</p><p>repente; algum peristaltismo terrível/maravilhoso começou a acontecer. Ele pensa: Meu</p><p>Deus, estou sendo digerido pelo meu próprio passado.</p><p>Os relâmpagos brilham irregularmente pelo rosto dele, e apesar de ele não saber, o dia</p><p>acabou de virar. O dia 28 de maio de 1985 se tornou o dia 29 de maio sobre a paisagem</p><p>escura e tempestuosa que é o oeste de Illinois esta noite; fazendeiros com dores nas costas</p><p>do trabalho de plantio dormem como cadáveres abaixo e sonham seus sonhos inquietos, e</p><p>quem sabe o que pode estar se movendo nos celeiros, porões e campos enquanto os</p><p>relâmpagos caminham e os trovões falam? Ninguém sabe essas coisas; as pessoas só sabem</p><p>que há poder solto na noite, e o ar está louco com os muitos volts da tempestade.</p><p>Mas são sinos a 8 mil metros quando o avião entra em área limpa de novo, quando o</p><p>movimento se firma de novo; são sinos; é o sino enquanto Ben Hanscom dorme; e enquanto</p><p>ele dorme, o muro entre o passado e o presente desaparece completamente e ele cai para</p><p>trás pelos anos como um homem caindo em um poço fundo; o Viajante do Tempo de Wells,</p><p>talvez, caindo com um degrau quebrado de ferro em uma das mãos na terra dos Morlocks,</p><p>onde máquinas funcionam sem parar nos túneis da noite. É 1981, 1977, 1969; e de repente</p><p>aqui está ele, aqui em junho de 1958; a luz intensa do verão está em todos os lados e atrás</p><p>de pálpebras adormecidas, as pupilas de Ben Hanscom se contraem sob o comando do</p><p>cérebro adormecido, que não vê a escuridão que domina o oeste do Illinois, mas a luz</p><p>intensa do sol de um dia de junho em Derry, Maine, 27 anos atrás.</p><p>Sinos.</p><p>O sino.</p><p>Escola.</p><p>A escola.</p><p>A escola</p><p>2</p><p>acabou!</p><p>O som do sino se espalhou pelos corredores da Escola Derry, um grande prédio de tijolos</p><p>na rua Jackson, e ao som dele as crianças da turma de quinto ano de Ben Hanscom deram um</p><p>grito espontâneo, e a sra. Douglas, normalmente a professora das mais rígidas, não fez esforço</p><p>nenhum para calá-las. Talvez soubesse que seria impossível.</p><p>— Crianças! — gritou ela quando a comemoração morreu. — Posso ter sua atenção por um</p><p>momento final?</p><p>Agora uma barulheira de falas excitadas, misturada com alguns gemidos, surgiu na sala de</p><p>aula. A sra. Douglas estava com os boletins de todos na mão.</p><p>— Espero que eu passe! — disse Sally Mueller em um trinado para Bev Marsh, que se</p><p>sentava na fileira ao lado. Sally era inteligente, bonita, vivaz. Bev também era bonita, mas não</p><p>havia nada de vivaz nela naquela tarde, sendo ou não o último dia de aula. Ela estava sentada</p><p>olhando com mau humor para os mocassins. Havia um hematoma amarelo em uma das</p><p>bochechas dela.</p><p>— Não ligo merda nenhuma se passei ou não — disse Bev.</p><p>Sally torceu o nariz. Damas não usam essa linguagem, dizia o gesto. Ela então se virou para</p><p>Greta Bowie. Devia ser apenas a empolgação do sino que sinalizava o fim de outro ano letivo</p><p>que fez Sally escorregar e falar com Beverly, pensou Ben. Sally Mueller e Greta Bowie</p><p>vinham de famílias ricas com casas na West Broadway, enquanto Bev vinha de um dos</p><p>prédios pobres na rua Lower Main. A rua Lower Main e a West Broadway eram separadas</p><p>por apenas 2,5 quilômetros, mas até uma criança como Ben sabia que a verdadeira distância</p><p>era como a distância entre a Terra e Plutão. Tudo que você precisava fazer era olhar para o</p><p>suéter barato de Beverly Marsh, para a saia grande demais que provavelmente veio da caixa</p><p>de doações do Exército da Salvação e para os mocassins surrados para saber o quanto uma</p><p>estava distante da outra. Mas Ben ainda gostava mais de Beverly, muito mais. Sally e Greta</p><p>tinham roupas bonitas, e ele achava que elas deviam fazer permanente ou ondulações no</p><p>cabelo ou alguma coisa assim todos os meses, mas achava que isso não mudava os fatos</p><p>básicos em nada. Elas podiam fazer permanente no cabelo todos os dias e ainda seriam duas</p><p>arrogantes convencidas.</p><p>Ele achava Beverly mais legal… e muito mais bonita, apesar de jamais em um milhão de</p><p>anos ousar dizer uma coisa dessas para ela. Mas às vezes, no coração do inverno, quando a</p><p>luz lá fora ficava amarelada e sonolenta como um gato encolhido em um sofá, quando a sra.</p><p>Douglas estava falando tediosamente sobre matemática (como fazer divisões mais longas ou</p><p>como encontrar o denominador comum de duas frações para poder adicioná-las) ou lendo as</p><p>perguntas do livro Shining Bridges ou falando sobre depósitos de metais no Paraguai,</p><p>naqueles dias em que parecia que a escola não ia terminar nunca e não importava</p><p>se terminaria</p><p>porque o mundo todo lá fora era lama pura… nesses dias, Ben às vezes olhava de lado para</p><p>Beverly, observava furtivamente o rosto dela, e seu coração doía desesperadamente e de</p><p>alguma forma brilhava com mais intensidade ao mesmo tempo. Ele achava que gostava dela,</p><p>ou estava apaixonado por ela, e por isso ele sempre pensava em Beverly quando os Penguins</p><p>cantavam no rádio “Earth Angel”: “minha querida amada/amo você o tempo todo…” Sim, era</p><p>idiotice mesmo, melado como um lenço de papel usado, mas também não tinha problema,</p><p>porque ele nunca ia falar nada. Ele achava que garotos gordos só podiam amar garotas bonitas</p><p>por dentro. Se contasse para alguém o que sentia (não que ele tivesse para quem contar), essa</p><p>pessoa provavelmente riria até ter um ataque cardíaco. E se ele algum dia contasse para</p><p>Beverly, ela riria (ruim) ou faria sons de ânsia de vômito (pior).</p><p>— Agora levante-se assim que eu chamar seu nome. Paul Anderson… Carla Bordeaux…</p><p>Greta Bowie… Calvin Clark… Cissy Clark…</p><p>Enquanto ela chamava os nomes, os alunos da turma de quinto ano da sra. Douglas foram</p><p>para a frente um a um (exceto os gêmeos Clark, que foram juntos como sempre, de mãos</p><p>dadas, indistinguíveis se não fosse pelo fato de ela usar vestido e ele usar calça jeans),</p><p>pegaram os boletins amarelos com a bandeira americana e o Juramento de Lealdade na frente</p><p>e o Pai Nosso atrás, saíram andando serenamente da sala de aula… e saíram correndo pelo</p><p>corredor para onde as grandes portas da frente tinham sido abertas. E então eles simplesmente</p><p>saíram correndo para o verão e sumiram: alguns de bicicleta, alguns saltitando, alguns</p><p>cavalgando em cavalos invisíveis e batendo as mãos nas coxas para imitar o som dos cascos,</p><p>alguns abraçando colegas e cantando “Meus olhos viram a glória do incêndio da escola” na</p><p>melodia de “The Battle Hymn of the Republic”.</p><p>— Marcia Fadden… Frank Frick… Ben Hanscom…</p><p>Ele se levantou, lançou um último olhar a Beverly Marsh antes do verão (ou era o que ele</p><p>pensava) e foi até a mesa da sra. Douglas, um garoto de 11 anos com um traseiro do tamanho</p><p>do Novo México, traseiro esse aprisionado em uma calça jeans azul nova com rebites de</p><p>cobre que reluziam e fazia whssht-whssht-whssht enquanto suas coxas grandes se roçavam.</p><p>Seus quadris tinham um balanço feminino. A barriga deslizava de um lado para o outro. Ele</p><p>estava usando um moletom largo apesar de o dia estar quente. Quase sempre usava moletons</p><p>largos porque morria de vergonha do peito desde o primeiro dia de aula depois das férias de</p><p>Natal, quando ele usou uma das novas camisas da Liga Universitária que sua mãe lhe deu e</p><p>Arroto Huggins, que era do sexto ano, gritou: “Ei, pessoal! Olha o que Papai Noel trouxe pra</p><p>Ben Hanscom de Natal! Um par grande de peitinhos!” Arroto quase caiu no chão de tanto rir</p><p>da própria piada. Outros também riram, e algumas eram garotas. Se um buraco levando ao</p><p>mundo subterrâneo se abrisse na frente dele naquele momento, Ben teria pulado sem nem</p><p>emitir nenhum som… ou talvez o mais leve murmúrio de gratidão.</p><p>Desde aquele dia, ele usava moletons. Tinha quatro: o marrom largo, o verde largo e dois</p><p>azuis largos. Era uma das poucas coisas que ele conseguiu impor à mãe, um dos poucos</p><p>limites que sentiu necessidade ao longo da infância complacente de desenhar na areia. Se ele</p><p>tivesse visto Beverly Marsh rindo com o resto naquele dia, ele achava que teria morrido.</p><p>— Foi um prazer ter você como aluno este ano, Benjamin — disse a sra. Douglas ao</p><p>entregar o boletim a ele.</p><p>— Obrigado, sra. Douglas.</p><p>Um falsete debochado surgiu de algum lugar no fundo da sala:</p><p>— Brigadu, sinhora Dôglis.</p><p>Era Henry Bowers, é claro. Henry estava na turma de quinto ano de Ben em vez de no sexto</p><p>ano com os amigos Arroto Huggins e Victor Criss porque repetiu o ano anterior. Ben achava</p><p>que Bowers ia repetir mais uma vez. O nome dele não foi chamado quando a sra. Douglas</p><p>entregou os boletins, e isso significava problema. Ben estava incomodado com isso, porque se</p><p>Henry repetisse de novo, o próprio Ben seria parcialmente responsável… e Henry sabia.</p><p>Nas provas finais do ano letivo na semana anterior, a sra. Douglas os colocou sentados de</p><p>maneira aleatória ao tirar os nomes de um chapéu sobre a mesa. Ben acabou sentado ao lado</p><p>de Henry Bowers na última fileira. Como sempre, Ben curvou o braço ao redor da folha de</p><p>papel e se inclinou para bem perto dela, sentindo a pressão um tanto reconfortante da barriga</p><p>na mesa, lambendo o lápis de tempos em tempos em busca de inspiração.</p><p>Na metade da prova de terça-feira, que por acaso era de matemática, um sussurro chegou a</p><p>Ben pelo corredor divisório. Era baixo, discreto e eficiente como o sussurro de um golpista</p><p>veterano passando uma mensagem no pátio de exercícios de uma prisão:</p><p>— Me deixa copiar.</p><p>Ben olhou para a esquerda, diretamente para os olhos pretos e furiosos de Henry Bowers.</p><p>Henry era um garoto grande mesmo aos 12 anos. Seus braços e pernas eram grossos de</p><p>músculos desenvolvidos no trabalho na fazenda. O pai dele, que tinha fama de louco, possuía</p><p>um lote no final da rua Kansas, perto da fronteira municipal com Newport, e Henry trabalhava</p><p>pelo menos trinta horas por semana capinando, arrancando ervas daninhas, plantando,</p><p>retirando pedras da terra, cortando madeira e colhendo se houvesse alguma coisa para colher.</p><p>O cabelo de Henry era cortado com uma área achatada em cima e tão curto que o branco do</p><p>couro cabeludo aparecia. Passava cera Butch na frente com um tubo que sempre carregava no</p><p>bolso da frente da calça jeans, e como resultado, o cabelo acima da testa parecia os dentes de</p><p>um cortador de grama. Um odor de suor e chiclete Juicy Fruit sempre o envolvia. Ele usava</p><p>uma jaqueta rosa de motoqueiro com uma águia nas costas para ir à escola. Uma vez, um aluno</p><p>do quarto ano foi tolo o bastante para rir daquela jaqueta. Henry partiu para cima do moleque</p><p>com a flexibilidade de uma doninha e a rapidez de uma cobra, e socou o moleque com o punho</p><p>sujo pelo trabalho. O garoto perdeu três dentes da frente. Henry ganhou duas semanas de</p><p>suspensão da escola. Ben esperava, com a esperança não direcionada, mas ardente dos</p><p>oprimidos e aterrorizados, que Henry fosse expulso em vez de suspenso. Mas a sorte não</p><p>estava do lado dele. O pão sempre cai com o lado da manteiga virado para baixo. Quando a</p><p>suspensão acabou, Henry voltou com seu andar gingado para o pátio da escola, resplandecente</p><p>e irado com sua jaqueta rosa, com o cabelo com tanta cera que parecia gritar no crânio dele.</p><p>Os dois olhos estavam inchados e com traços de cor da surra que o pai doido deu nele por</p><p>“brigar no pátio”. As marcas da surra acabaram sumindo; para os garotos que coexistiam com</p><p>Henry em Derry, a lição não foi esquecida. Até onde Ben sabia, ninguém disse nada sobre a</p><p>jaqueta rosa com a águia nas costas depois disso.</p><p>Quando ele sussurrou com irritação para Ben deixá-lo copiar, três pensamentos dispararam</p><p>pela mente de Ben, que era tão ágil e rápida quanto seu corpo era obeso, em um espaço de</p><p>segundos. O primeiro foi que se a sra. Douglas pegasse Henry colando as respostas da prova</p><p>dele, os dois tirariam zero. O segundo foi que se ele não deixasse Henry copiar, Henry</p><p>certamente o pegaria depois da aula e daria a famosa surra nele, provavelmente com Huggins</p><p>segurando um de seus braços e Criss segurando o outro.</p><p>Esses foram pensamentos de uma criança, e não havia nada de surpreendente nisso, porque</p><p>ele era uma criança. Mas o terceiro e último pensamento foi mais sofisticado, quase adulto.</p><p>Ele pode mesmo me pegar. Mas talvez eu consiga ficar longe do caminho dele na última</p><p>semana de aula. Tenho quase certeza de que consigo se tentar de verdade. E ele vai</p><p>esquecer durante o verão, eu acho. É. Ele é bem burro. Se ele não passar nessa prova, vai</p><p>repetir de ano de novo. E se ele repetir, vou passar na frente dele. Não vou mais ficar na</p><p>mesma sala que ele… Vou chegar no segundo segmento do fundamental antes dele. Eu… eu</p><p>talvez fique livre.</p><p>— Me deixa copiar — sussurrou Henry de novo. Seus olhos pretos agora estavam</p><p>brilhando, exigentes.</p><p>Ben balançou a</p><p>cabeça e curvou o braço ainda mais ao redor da prova.</p><p>— Vou te pegar, gordo — sussurrou Henry um pouco mais alto agora. A prova dele até o</p><p>momento estava completamente em branco exceto pelo nome. Ele estava desesperado. Se não</p><p>passasse nas provas e repetisse de ano, o pai daria uma surra nele. — Me deixa copiar senão</p><p>te pego de porrada.</p><p>Ben balançou a cabeça de novo, e a papada tremeu. Ele estava com medo, mas também</p><p>estava determinado. Deu-se conta de que, pela primeira vez na vida, tinha conscientemente se</p><p>comprometido a uma linha de ação, e isso também deu medo nele, apesar de ele não saber</p><p>exatamente por quê. Anos se passariam até ele perceber que foi o sangue-frio de seus</p><p>cálculos, a contagem cuidadosa e pragmática do custo, com suas intimações de uma</p><p>maturidade repentina, que o assustou mais ainda do que Henry. De Henry ele poderia</p><p>conseguir fugir. A idade adulta, onde ele provavelmente pensaria assim quase o tempo todo,</p><p>acabaria por pegá-lo no final.</p><p>— Alguém está falando aí atrás? — disse a sra. Douglas claramente. — Se sim, quero que</p><p>pare agora mesmo.</p><p>O silêncio prevaleceu pelos dez minutos seguintes; jovens cabeças permaneceram</p><p>abaixadas e concentradas em provas com cheiro de tinta roxa de mimeógrafo, mas logo o</p><p>sussurro de Henry cruzou o corredor de novo, suave, quase inaudível, apavorante na calma</p><p>certeza da promessa:</p><p>— Você está morto, gordo.</p><p>3</p><p>Ben pegou o boletim e fugiu, grato a quaisquer</p><p>deuses que existam para garotos gordos de 11</p><p>anos por Henry não ter, devido à ordem alfabética,</p><p>tido permissão de fugir da sala primeiro para poder</p><p>esperar por Ben lá fora.</p><p>Ele não correu pelo corredor como as outras crianças. Era capaz de correr, e bem rápido</p><p>para um garoto do tamanho dele, mas estava muito ciente do quanto ficava engraçado quando</p><p>corria. Mas ele andou rápido e saiu do corredor frio com cheiro de livros no sol intenso de</p><p>junho. Ficou com o rosto virado para o sol por um momento, grato pelo calor e pela liberdade.</p><p>Setembro estava a milhões de anos. O calendário podia dizer uma coisa diferente, mas o que o</p><p>calendário dizia era mentira. O verão seria bem mais longo do que a soma dos seus dias, e</p><p>pertencia a ele. Ele se sentia tão alto quanto a Torre de Água e tão amplo quanto a cidade</p><p>toda.</p><p>Alguém esbarrou nele, e esbarrou com força. Pensamentos agradáveis do verão à frente</p><p>foram arrancados da mente de Ben enquanto ele cambaleava loucamente em busca de</p><p>equilíbrio na beirada da escada de pedra. Ele segurou o corrimão de ferro bem na hora de se</p><p>salvar de uma queda horrível.</p><p>— Sai do meu caminho, pudim de banha. — Era Victor Criss, com o cabelo penteado para</p><p>trás em uma imitação de Elvis que cintilava de tanta brilhantina. Ele desceu os degraus e</p><p>seguiu o muro até o portão da frente com as mãos nos bolsos da calça jeans, colarinho da</p><p>camisa levantado e a placa de metal nas solas das botas arrastadas e fazendo barulho.</p><p>Ben, ainda com o coração batendo rapidamente do susto, viu que Arroto Huggins estava do</p><p>outro lado da rua fumando uma guimba de cigarro. Ele levantou uma das mãos e passou o</p><p>cigarro para Victor quando ele chegou. Victor tragou, devolveu para Arroto e apontou para</p><p>onde Ben estava, agora na metade da escada. Ele disse alguma coisa e os dois se separaram.</p><p>O rosto de Ben ficou quente. Eles sempre pegam você. Era coisa do destino.</p><p>— Você gosta tanto daqui que vai ficar aqui o dia todo? — disse uma voz atrás do cotovelo</p><p>dele.</p><p>Ben se virou e seu rosto ficou ainda mais quente. Era Beverly Marsh, com o cabelo ruivo</p><p>como uma nuvem deslumbrante ao redor da cabeça e sobre os ombros, os olhos de um</p><p>adorável verde-acinzentado. O suéter dela, puxado até os cotovelos, estava puído no pescoço</p><p>e era quase tão largo quanto o moletom de Ben. Grande demais para dar para perceber se os</p><p>peitos estavam despontando, mas Ben não se importava; quando o amor chega antes da</p><p>puberdade, ele pode vir em ondas tão claras e poderosas que ninguém consegue ir contra seu</p><p>simples imperativo, e Ben não fez esforço nenhum para isso agora. Ele apenas cedeu. Sentiu-</p><p>se tolo e exaltado ao mesmo tempo, e mais constrangido do que em qualquer momento da</p><p>vida… mas indubitavelmente abençoado. Essas emoções desesperadoras se misturaram de</p><p>forma tão estonteante que ele ficou se sentindo enjoado e eufórico ao mesmo tempo.</p><p>— Não — disse ele com voz rouca. — Não mesmo. — Um sorriso largo se espalhou em</p><p>seu rosto. Ele sabia o quanto devia parecer idiota, mas não conseguia fazê-lo sumir.</p><p>— Ah, que bom. Porque estamos de férias, sabe. Graças a Deus.</p><p>— Boas… — A voz saiu rouca de novo. Ele precisou limpar a garganta, e ficou ainda mais</p><p>vermelho. — Boas férias, Beverly.</p><p>— Pra você também, Ben. Te vejo ano que vem.</p><p>Ela desceu a escada rapidamente, e Ben viu tudo com seu olhar apaixonado: o xadrez</p><p>intenso da saia, o balanço do cabelo ruivo nas costas do suéter, a pele clara, um pequeno corte</p><p>cicatrizado atrás de uma das panturrilhas e (por algum motivo essa última coisa fez outra onda</p><p>de sentimento tomar conta dele com tanta força que ele precisou se segurar no corrimão de</p><p>novo; o sentimento foi enorme, inarticulado, felizmente breve; talvez um pré-sinal sexual, sem</p><p>significado para o corpo dele, onde as glândulas endócrinas ainda estavam adormecidas quase</p><p>sem sonhar, mas ao mesmo tempo intensas como relâmpagos de verão) uma tornozeleira</p><p>dourada cintilante que ela usava acima do mocassim direito, que brilhava no sol em pequenos</p><p>flashes.</p><p>Um som, algum tipo de som, saiu da garganta dele. Ele desceu a escada como um homem</p><p>idoso e febril e ficou parado embaixo, observando até ela virar à esquerda e desaparecer atrás</p><p>da cerca viva alta que separava o pátio da escola da calçada.</p><p>4</p><p>Ele só ficou ali por um momento e então, enquanto</p><p>as crianças ainda saíam em grupos gritando e</p><p>correndo, lembrou-se de Henry Bowers e</p><p>contornou correndo o prédio. Atravessou o</p><p>parquinho das crianças pequenas, passando os</p><p>dedos pelas correntes dos balanços para fazê-los</p><p>tilintar e pisando nas tábuas das gangorras. Saiu</p><p>por um portão bem menor que levava à rua Charter</p><p>e seguiu para a esquerda sem nunca olhar para</p><p>trás, para a pilha de pedras em que tinha passado</p><p>a maior parte dos dias de semana nos últimos nove</p><p>meses. Enfiou o boletim no bolso de trás e</p><p>começou a assobiar. Estava usando um par de</p><p>tênis Keds, mas até onde ele percebeu, as solas</p><p>não tocaram a calçada por umas oito quadras.</p><p>A aula terminou pouco depois de meio-dia; sua mãe só chegaria em casa às seis, pelo</p><p>menos, porque às sextas ela ia direto para o Shop ’n Save depois do trabalho. O resto do dia</p><p>era dele.</p><p>Ele foi até o Parque McCarron por um tempo e se sentou debaixo de uma árvore, sem fazer</p><p>nada além de ocasionalmente sussurrar “Eu amo Beverly Marsh” bem baixinho, sentindo-se</p><p>mais tonto e romântico a cada vez que falava. Em determinado ponto, quando um grupo de</p><p>garotos chegou ao parque e começou a escolher times para um jogo de beisebol, ele sussurrou</p><p>as palavras “Beverly Hanscom” duas vezes, e então teve que encostar o rosto na grama até</p><p>esfriar as bochechas quentes.</p><p>Pouco depois disso, ele se levantou e seguiu pelo parque até a avenida Costello. Uma</p><p>caminhada de mais cinco quadras o levaria à Biblioteca Pública, que ele achava que era seu</p><p>destino o tempo todo. Estava quase fora do parque quando um aluno do sexto ano chamado</p><p>Peter Gordon o viu e gritou:</p><p>— Ei, peitinhos! Quer jogar? Precisamos de alguém pra defesa.</p><p>Houve uma explosão de gargalhadas. Ben fugiu o mais rápido que conseguiu, encolhendo a</p><p>cabeça para dentro da gola como uma tartaruga se escondendo no casco.</p><p>Ainda assim, ele se considerou com sorte, no final; em outro dia, os garotos poderiam ter</p><p>ido atrás dele, talvez só para assustá-lo, talvez para fazê-lo rolar na terra e ver se ele</p><p>choraria. Hoje eles estavam absortos demais em jogar e decidir as regras. Ben os deixou</p><p>decidindo o que valia no primeiro jogo do verão com alegria e seguiu seu caminho.</p><p>Depois de percorrer três quadras da avenida Costello, ele viu uma coisa interessante,</p><p>talvez até lucrativa, debaixo da cerca da frente de uma casa.</p><p>O vidro cintilava pelo lado</p><p>rasgado de um velho saco de papel. Ben empurrou o saco na calçada com o pé. Parecia que</p><p>ele realmente estava com sorte. Havia quatro garrafas de cerveja e quatro garrafas grandes de</p><p>refrigerante lá dentro. As grandes valiam dez centavos cada, as de cerveja valiam dois</p><p>centavos. Eram 28 centavos debaixo da cerca de uma casa, só esperando que algum garoto</p><p>aparecesse para pegar. Um garoto de sorte.</p><p>— Sou eu — disse Ben com alegria, sem fazer ideia do que o resto do dia guardava para</p><p>ele. Ele saiu andando de novo, segurando o saco por baixo para que não rasgasse. O mercado</p><p>da avenida Costello ficava a um quarteirão dali, e Ben seguiu nessa direção. Trocou as</p><p>garrafas por dinheiro, e a maior parte do dinheiro por doces.</p><p>Ficou em frente à vitrine de doces apontando, feliz como sempre pelo som lento que a porta</p><p>deslizante fazia quando o vendedor a empurrava no trilho, que era alinhado com rolamentos.</p><p>Comprou cinco tiras de alcaçuz vermelho e cinco do preto, dez balinhas de sassafrás (duas</p><p>por um centavo), uma cartela de bolinhas (com cinco em cada fileira e cinco fileiras em uma</p><p>cartela, e era para comer direto do papel), um pacote de Likem Ade e um pacote de Pez para o</p><p>suporte que ele tinha em casa.</p><p>Ben saiu com um pequeno saco de papel marrom cheio de doces na mão e quatro centavos</p><p>no bolso da frente da calça jeans nova. Olhou para o saco de papel com toda a doçura dentro e</p><p>um pensamento de repente tentou despertar,</p><p>(se continuar comendo assim, Beverly Marsh nunca vai olhar pra você)</p><p>mas era um pensamento desagradável, então ele afastou-o. Foi com facilidade; esse era um</p><p>pensamento acostumado a ser expulso.</p><p>Se alguém tivesse perguntando a ele “Ben, você é solitário?”, ele teria olhado para essa</p><p>pessoa com surpresa genuína. A pergunta nunca lhe ocorreu. Ele não tinha amigos, mas tinha</p><p>seus livros e seus sonhos; tinha seus modelos Revell; tinha um kit enorme de Lincoln Logs e</p><p>construía todo tipo de coisas com ele. Sua mãe exclamara mais de uma vez que as casas de</p><p>Ben feitas de Lincoln Logs eram melhores do que algumas verdadeiras, construídas a partir de</p><p>plantas. Tinha também um bom kit Erector. Estava torcendo para ganhar o Super Kit quando</p><p>chegasse seu aniversário em outubro. Com ele, dava para construir um relógio que marcava as</p><p>horas de verdade e um carro com movimentos. Solitário?, ele poderia ter perguntado em</p><p>resposta, sinceramente sem entender. Hã? O quê?</p><p>Uma criança cega de nascença nem sabe que é cega até alguém dizer para ela. Mesmo</p><p>então, ela só tem uma noção das mais acadêmicas sobre o que é a cegueira; só quem já</p><p>enxergou tem uma noção verdadeira do que é ser cego. Ben Hanscom não tinha noção de ser</p><p>solitário porque nunca teve nada diferente. Se a condição fosse nova ou mais restrita, ele</p><p>poderia entender, mas a solidão dominava e se sobressaía na vida dele. Apenas existia, como</p><p>o polegar com duas juntas ou a parte irregular nos dentes da frente, a parte irregular onde a</p><p>língua tocava quando ele ficava nervoso.</p><p>Beverly era um sonho doce; as balas eram uma doce realidade. As balas eram suas amigas.</p><p>Assim, ele mandou o pensamento invasor se mandar, e ele foi em silêncio, sem provocar</p><p>nenhuma confusão. E entre o mercado da avenida Costello e a biblioteca, ele comeu todas as</p><p>balas do saco. Pretendia mesmo guardar o Pez para quando fosse assistir TV à noite; ele</p><p>gostava de colocar dentro do suporte de Pez um a um, gostava de ouvir o clique da pequena</p><p>mola lá dentro, e gostava mais do que tudo de jogar as balinhas na boca uma a uma, como um</p><p>garoto cometendo suicídio com açúcar. Naquela noite, ia passar Whirlybirds, com Kenneth</p><p>Tobey como o destemido piloto do helicóptero, e Dragnet, onde os casos eram verdade, mas</p><p>os nomes eram mudados para proteger os inocentes, e seu programa de polícia favorito de</p><p>todos os tempos, Highway Patrol, com Broderick Crawford como o policial rodoviário Dan</p><p>Mathews. Broderick Crawford era o herói de Ben. Broderick Crawford era rápido, Broderick</p><p>Crawford era cruel, Broderick Crawford não aceitava merda de ninguém</p><p>… e o melhor de tudo era que Broderick Crawford</p><p>era gordo.</p><p>Ele chegou à esquina da Costello com a rua Kansas, onde atravessou para chegar à</p><p>Biblioteca Pública. Ela consistia em dois prédios: a estrutura de pedra na frente, construída</p><p>com dinheiro de um barão madeireiro em 1890, e o prédio novo e baixo atrás, onde ficava a</p><p>biblioteca infantil. A biblioteca adulta na frente e a infantil atrás eram ligadas por um corredor</p><p>de vidro.</p><p>Perto assim do centro, a rua Kansas era de mão única, então Ben olhou apenas para um dos</p><p>lados, para a direita, antes de atravessar. Se tivesse olhado para a esquerda, teria levado um</p><p>terrível susto. Na sombra do grande carvalho no gramado da Casa Comunitária de Derry uma</p><p>quadra depois estavam Arroto Huggins, Victor Criss e Henry Bowers.</p><p>5</p><p>— Vamos pegar ele, Hank. — Victor estava quase</p><p>ofegante.</p><p>Henry viu o merdinha gordo atravessar a rua correndo: a barriga balançando, o cabelo</p><p>lambido na parte de trás da cabeça indo para a frente e para trás como uma mola, a bunda</p><p>rebolando como a de uma garota dentro da calça jeans nova. Ele estimou a distância entre os</p><p>três no gramado da Casa Comunitária e Hanscom, e entre Hanscom e a segurança da</p><p>biblioteca. Achava que conseguiriam chegar antes de ele entrar, mas Hanscom poderia</p><p>começar a gritar. Ele não descartava que o bichinha pudesse fazer isso. Se ele gritasse, um</p><p>adulto poderia interferir, e Henry não queria interferência. A puta Douglas disse para Henry</p><p>que ele repetiu em inglês e matemática. Ela ia deixar que ele passasse, mas ele teria que ter</p><p>aulas de recuperação durante quatro semanas no verão. Henry preferia ter repetido. Se tivesse</p><p>repetido, seu pai daria uma surra nele. Com Henry na escola quatro horas por dia durante</p><p>quatro semanas da temporada com mais serviço na fazenda, seu pai era capaz de bater nele</p><p>umas seis vezes, talvez até mais. Só aceitava esse futuro terrível porque pretendia repassar</p><p>tudo para aquele veadinho gordo naquela tarde.</p><p>Com juros.</p><p>— É, vamos — disse Arroto.</p><p>— Vamos esperar ele sair.</p><p>Eles viram Ben abrir uma das portas grandes e entrar; se sentaram, fumaram cigarros,</p><p>contaram piadas de caixeiros-viajantes e esperaram que ele saísse.</p><p>Henry sabia que alguma hora ele sairia. E quando saísse, Henry faria que ele lamentasse ter</p><p>nascido.</p><p>6</p><p>Ben amava a biblioteca.</p><p>Adorava a forma como estava sempre fresca, mesmo no dia mais quente de um verão longo</p><p>e calorento; adorava o silêncio murmurante, rompido apenas por sussurros ocasionais, pela</p><p>batida suave da bibliotecária carimbando livros e cartões ou por páginas sendo viradas na</p><p>Sala de Periódicos, onde homens idosos ficavam lendo jornais presos em varas longas.</p><p>Adorava o tipo de iluminação, que entrava na diagonal pelas janelas altas e estreitas à tarde</p><p>ou formava piscinas preguiçosas a partir dos lustres baixos nas noites de inverno enquanto o</p><p>vento soprava lá fora. Ele gostava do cheiro dos livros, um cheiro de especiarias, suavemente</p><p>fabuloso. Às vezes, ele andava pelas estantes de livros adultos e olhava os milhares de</p><p>exemplares e imaginava um mundo de vidas dentro de cada um, da mesma forma como às</p><p>vezes andava pela rua no crepúsculo enevoado e vermelho de uma tarde do final de outubro,</p><p>com o sol apenas uma linha laranja no horizonte, imaginando as vidas se desenrolando atrás</p><p>de todas as janelas; pessoas rindo ou discutindo ou arrumando flores ou alimentando crianças</p><p>ou animais ou a si mesmas enquanto viam televisão. Ele gostava do fato de que o corredor de</p><p>vidro que ligava o prédio antigo à biblioteca das crianças estava sempre quente, mesmo no</p><p>inverno, a não ser que os dias anteriores tivessem sido nublados; a sra. Starrett, bibliotecária</p><p>principal da seção infantil, disse para ele que era por causa de uma coisa chamada efeito</p><p>estufa. Ben ficou deliciado com a ideia. Anos mais tarde, ele construiria o controverso centro</p><p>de comunicações da BBC em Londres, e as discussões poderiam perdurar por mil anos, e</p><p>ninguém saberia (exceto o próprio Ben) que o centro de</p><p>comunicações não passava do</p><p>corredor de vidro da Biblioteca Pública de Derry na vertical.</p><p>Ele também gostava da biblioteca infantil, apesar de não ter nada do charme escuro que ele</p><p>sentia na biblioteca velha, com os lustres e as escadarias curvas de ferro estreitas demais para</p><p>duas pessoas passarem ao mesmo tempo; uma sempre tinha que recuar. A biblioteca infantil</p><p>era iluminada e ensolarada, um pouco mais barulhenta apesar dos avisos dizendo VAMOS FAZER</p><p>SILÊNCIO pendurados em todos os lados. A maior parte do barulho costumava vir do cantinho do</p><p>Pooh, aonde as crianças pequenas iam para olhar livros de figuras. Quando Ben entrou hoje, a</p><p>hora da história já tinha começado lá. A srta. Davies, a bela e jovem bibliotecária, estava</p><p>lendo Os três cabritos rudes.</p><p>— Quem está passando pela minha ponte?</p><p>A srta. Davies falava com o tom baixo e arrastado do troll da história. Alguns dos</p><p>pequenos cobriram a boca e riram, mas a maior parte só assistia solenemente, aceitando a voz</p><p>d o troll como aceitava as vozes em seus sonhos, e os olhos sérios refletiam a eterna</p><p>fascinação pelo conto de fadas: será que o monstro seria vencido… ou comeria todos?</p><p>Havia pôsteres coloridos presos por todos os lados. Aqui tinha um desenho de garoto bom</p><p>que escovou os dentes até a boca ficar cheia de espuma como o focinho de um cachorro louco;</p><p>perto tinha um desenho de um garoto mau fumando cigarros (QUANDO EU CRESCER, QUERO FICAR MUITO</p><p>DOENTE, COMO MEU PAI, estava escrito embaixo); tinha também uma foto maravilhosa de um bilhão</p><p>de pequenos pontinhos de luz na escuridão. O texto abaixo dizia:</p><p>UMA IDEIA ACENDE MIL VELAS.</p><p>—Ralph Waldo Emerson</p><p>Havia convites para PARTICIPAR DA EXPERIÊNCIA ESCOTEIRA. Um</p><p>pôster divulgava a ideia de que O CLUBE DE MENINAS DE HOJE</p><p>CONSTRÓI AS MULHERES DE AMANHÃ. Havia listas de inscrição</p><p>para jogar softball e para o Teatro Infantil da Casa</p><p>Comunitária. E, é claro, um pôster convidava as</p><p>crianças a ENTRAREM PARA O PROGRAMA DE LEITURA DE VERÃO. Ben</p><p>era um grande fã do programa de leitura de verão.</p><p>Você recebia um mapa dos Estados Unidos quando</p><p>se inscrevia. Depois, a cada livro que lesse e</p><p>fizesse relatório, recebia um adesivo de estado</p><p>para lamber e grudar no mapa. O adesivo vinha</p><p>com informações como o pássaro do estado, a flor</p><p>do estado, o ano que entrou para a União e que</p><p>presidentes nasceram naquele estado, se houvesse</p><p>algum. Quando você conseguia colar os 48 no</p><p>mapa, ganhava um livro. Era um ótimo negócio.</p><p>Ben planejava fazer exatamente o que o pôster</p><p>sugeria: “Não perca tempo, se inscreva hoje.”</p><p>Em meio a essa confusão colorida e agradável havia um pôster simples preso no balcão de</p><p>empréstimos, sem desenhos e sem fotos bacanas, só letras pretas no papel branco, com os</p><p>dizeres:</p><p>LEMBREM-SE DO TOQUE DE RECOLHER.</p><p>19H.</p><p>DEPARTAMENTO DE POLÍCIA DE DERRY</p><p>O mero ato de olhar para ele dava arrepios em Ben. Na empolgação de pegar o boletim, a</p><p>preocupação com Henry Bowers, a conversa com Beverly e o início das férias de verão, ele</p><p>tinha esquecido o toque de recolher e os assassinatos.</p><p>As pessoas discutiam sobre quantos foram, mas todo mundo concordava que foram pelo</p><p>menos quatro desde o último inverno; cinco se você contasse George Denbrough (muitos</p><p>achavam que a morte do garotinho Denbrough devia ser alguma espécie de acidente estranho).</p><p>O primeiro do qual todo mundo tinha certeza foi o de Betty Ripsom, que foi encontrada no dia</p><p>seguinte ao Natal na área de construção da autoestrada na rua Outer Jackson. A garota, que</p><p>tinha 13 anos, foi encontrada mutilada e congelada na lama. Isso não apareceu no jornal nem</p><p>foi algo que algum adulto tenha contado a Ben. Foi apenas uma coisa que ele captou em</p><p>conversas escutadas.</p><p>Cerca de três meses e meio depois, após o início da temporada de pesca de trutas, um</p><p>pescador trabalhando na margem de um riacho 30 quilômetros a leste de Derry pegou com o</p><p>anzol uma coisa que a princípio ele pensou ser um galho. Na verdade, era uma mão com punho</p><p>e os primeiros 10 centímetros do antebraço de uma garota. O anzol se prendeu nesse troféu</p><p>terrível na teia de carne entre o polegar e o indicador.</p><p>A Polícia Estadual encontrou o resto de Cheryl Lamonica no riacho a 70 metros dali, presa</p><p>em uma árvore que caiu atravessada na água no inverno anterior. Foi mera sorte o corpo não</p><p>ter sido levado até o Penobscot e depois até o mar nas correntes de primavera.</p><p>A garota Lamonica tinha 16 anos. Era de Derry, mas não frequentava a escola; três anos</p><p>antes ela tinha dado à luz uma menina, Andrea. Ela morava com os pais e a filha.</p><p>— Cheryl era meio rebelde às vezes, mas era uma garota de bom coração — disse o pai</p><p>choroso à polícia. — Andi fica perguntando “Cadê minha mamãe?”, e não sei o que dizer a</p><p>ela.</p><p>A garota foi dada como desaparecida cinco semanas antes de o corpo ser encontrado. A</p><p>investigação policial da morte de Cheryl Lamonica começou com uma suposição bastante</p><p>lógica: que ela tinha sido assassinada por um dos namorados.Ela tinha muitos namorados.</p><p>Muitos eram da base área que ficava no caminho para Bangor.</p><p>— Eram bons rapazes, a maioria — disse a mãe de Cheryl. Um dos “bons rapazes” foi um</p><p>coronel de 40 anos da Força Aérea com esposa e três filhos no Novo México. Outro estava no</p><p>momento cumprindo pena em Shawshank por assalto à mão armada.</p><p>Um namorado, foi o que a polícia pensou. Ou possivelmente apenas um estranho. Um</p><p>maníaco sexual.</p><p>Se era um maníaco sexual, aparentemente era maníaco por garotos também. No final de</p><p>abril, um professor de ensino fundamental II fazendo uma caminhada com a turma de oitavo</p><p>ano viu um par de tênis vermelhos e um macacãozinho azul na boca de um aqueduto na rua</p><p>Merit. Aquele lado da Merit tinha sido bloqueado com cavaletes. O asfalto tinha sido</p><p>arrancado no outono anterior. A extensão da autoestrada também passaria por ali ao seguir</p><p>para o norte, para Bangor.</p><p>O corpo era de Matthew Clements, de 3 anos, dado como desaparecido pelos pais no dia</p><p>anterior (a foto dele estava na primeira página do Derry News, um garotinho de cabelos</p><p>escuros sorrindo abertamente para a câmera, com um boné do Red Sox na cabeça). A família</p><p>Clements morava na rua Kansas, do outro lado da cidade. A mãe dele, tão atordoada pela dor</p><p>que parecia viver em uma redoma de vidro de pura calma, disse para a polícia que Matty</p><p>estava andando de triciclo para cima e para baixo na calçada ao lado da casa, que ficava na</p><p>esquina da rua Kansas e da travessa Kossuth. Ela foi colocar a roupa lavada na secadora e,</p><p>quando olhou pela janela em busca de Matty, ele tinha sumido. Só havia o triciclo virado na</p><p>grama entre a calçada e a rua. Uma das rodas de trás ainda estava girando preguiçosamente.</p><p>Quando ela estava olhando, a roda parou.</p><p>Aquilo bastou para o chefe Borton. Ele propôs o toque de recolher de 19h em uma sessão</p><p>especial da Câmara Municipal na noite seguinte, que foi adotado de forma unânime e começou</p><p>a valer no dia seguinte. Crianças pequenas deviam ser vigiadas por um “adulto qualificado” o</p><p>tempo todo, de acordo com a história que falava sobre o toque de recolher no News. Na escola</p><p>de Ben, houve uma reunião especial um mês antes. Chefe Borton subiu no palco, prendeu os</p><p>polegares no cinto e certificou as crianças de que elas não tinham o que temer desde que</p><p>seguissem algumas poucas regras simples: não falar com estranhos, não aceitar carona de</p><p>pessoas que não conhecessem bem, sempre lembrar que O Policial É Seu Amigo… e obedecer</p><p>o toque de recolher.</p><p>Duas semanas atrás, um garoto que Ben conhecia vagamente (era da outra turma de quinto</p><p>ano da Escola Derry) olhou para uma das valas na rua Neibolt e viu o que parecia ser um</p><p>monte de cabelo flutuando ali. Esse garoto, que se chamava Frankie ou Freddy Ross (ou talvez</p><p>Roth), estava procurando objetos com um dispositivo que ele mesmo inventou, que ele</p><p>chamava de A FABULOSA VARA DE CHICLETE . Quando ele falava sobre isso, dava para perceber que</p><p>pensava bem assim, em letras maiúsculas (e talvez também em neon). A FABULOSA VARA DE CHICLETE</p><p>era um galho de bétula com uma bola grande de chiclete na ponta. No tempo livre, Freddy</p><p>no momento em que</p><p>George saiu, o barco saiu por um buraco no concreto como uma bala saindo do cano de um</p><p>revólver e seguiu velozmente por um canal até um córrego qualquer. Quando chegou ao</p><p>borbulhante e transbordante rio Penobscot 20 minutos depois, os primeiros pedaços de azul</p><p>começaram a aparecer no céu. A tempestade acabou.</p><p>O barco mergulhou e balançou, e às vezes ficava cheio de água, mas não afundou; os dois</p><p>irmãos o tinham protegido bem. Não sei onde afundou, se é que afundou; talvez tenha chegado</p><p>ao mar e navegado lá para sempre, como um barco mágico de contos de fadas. Só sei que</p><p>ainda estava flutuando e navegando na onda da enchente quando passou pelas fronteiras da</p><p>cidade de Derry, no Maine, e lá ele saiu dessa história para sempre.</p><p>Capítulo 2</p><p>Depois do festival (1984)</p><p>1</p><p>O motivo de Adrian estar usando o chapéu, seu</p><p>namorado choroso diria mais tarde para a polícia,</p><p>foi por ter ganhado na barraca Jogue até Ganhar</p><p>na feira do Bassey Park apenas seis dias antes de</p><p>sua morte. Ele sentia orgulho do chapéu.</p><p>— Estava usando porque amava essa merdinha de cidade! — gritou o namorado, Don</p><p>Hagarty, para os policiais.</p><p>— Calma, calma. Não há necessidade pra esse tipo de vocabulário — disse o policial</p><p>Harold Gardener para Hagarty.</p><p>Harold Gardener era um dos quatro filhos de Dave Gardener. No dia em que seu pai</p><p>encontrou o corpo sem vida e com apenas um braço de George Denbrough, Harold Gardener</p><p>tinha 5 anos. Neste dia, quase 27 anos depois, ele tinha 32 e estava ficando calvo. Harold</p><p>Gardener reconhecia a realidade da dor e do sofrimento de Don Hagarty, e ao mesmo tempo</p><p>achava impossível levar a sério. Esse homem, se você quisesse chamá-lo de homem, estava</p><p>usando batom e uma calça de cetim tão apertada que quase dava para ver as rugas do cacete</p><p>dele. Com dor ou sem dor, com sofrimento ou sem sofrimento, ele era, afinal, apenas um</p><p>veado. Como seu amigo, o falecido Adrian Mellon.</p><p>— Vamos repassar tudo — falou Jeffrey Reeves, o parceiro de Harold. — Vocês dois</p><p>saíram do Falcon e viraram em direção ao canal. E depois?</p><p>— Quantas vezes preciso contar pra vocês, seus idiotas? — Hagarty ainda estava gritando.</p><p>— Eles mataram ele! Empurraram pela lateral! Era apenas mais um dia na Cidade Macho pra</p><p>eles! — Don Hagarty começou a chorar.</p><p>— Mais uma vez — repetiu Reeves pacientemente. — Vocês saíram do Falcon. E depois, o</p><p>quê?</p><p>2</p><p>Em uma sala de interrogatório no mesmo corredor,</p><p>dois policiais de Derry estavam falando com Steve</p><p>Dubay, de 17 anos; no escritório do escrivão no</p><p>andar de cima, mais dois estavam interrogando</p><p>John “Webby” Garton, de 18 anos; e na sala do</p><p>chefe de polícia no quinto andar, o chefe Andrew</p><p>Rademacher e o promotor público assistente Tom</p><p>Boutillier estavam interrogando Christopher Unwin,</p><p>de 15 anos. Unwin, que usava calça jeans surrada,</p><p>uma camiseta suja de graxa e pesadas botas de</p><p>couro, estava chorando. Rademacher e Boutillier o</p><p>tinham levado porque o avaliaram precisamente</p><p>como o elo mais fraco da corrente.</p><p>— Vamos repassar tudo — disse Boutillier nessa sala ao mesmo tempo que Jeffrey Reeves</p><p>dizia a mesma coisa dois andares abaixo.</p><p>— A gente não queria matar ele — disse Unwin, chorando. — Foi o chapéu. A gente não</p><p>conseguia acreditar que ele ainda estava usando o chapéu depois, você sabe, depois do que</p><p>Webby disse na primeira vez. E acho que a gente queria assustar ele.</p><p>— Pelo que ele disse — comentou o chefe Rademacher.</p><p>— É.</p><p>— Pro John Garton na tarde do dia 17.</p><p>— É, pro Webby. — Unwin recomeçou a chorar. — Mas tentamos salvar ele quando vimos</p><p>que estava com dificuldade… pelo menos eu e Stevie Dubay tentamos… a gente não pretendia</p><p>matar ele!</p><p>— Para com isso, Chris, não enrola a gente — disse Boutillier. — Vocês jogaram o</p><p>veadinho no canal.</p><p>— É, mas…</p><p>— E vocês três vieram pra encarar e esclarecer as coisas. O chefe Rademacher e eu</p><p>apreciamos isso, não é, Andy?</p><p>— Pode apostar. Tem que ser homem pra admitir o que fez, Chris.</p><p>— Então não se ferre mais mentindo agora. Vocês pretendiam jogar ele assim que viram</p><p>ele com o amigo bicha saindo do Falcon, não é?</p><p>— Não! — Chris Unwin protestou com veemência.</p><p>Boutillier pegou um maço de Marlboro no bolso da camisa e colocou um cigarro na boca.</p><p>Ofereceu o maço para Unwin.</p><p>— Cigarro?</p><p>Unwin pegou um. Boutillier precisou seguir a ponta com um fósforo para conseguir</p><p>acender, pelo tanto que a boca de Unwin tremia.</p><p>— Mas quando vocês viram que ele estava usando o chapéu? — perguntou Rademacher.</p><p>Unwin tragou profundamente, baixou a cabeça, o que fez o cabelo oleoso cair por cima dos</p><p>olhos, e expeliu a fumaça pelo nariz, que era coberto de pontos pretos de cravos.</p><p>— É — disse ele, quase baixo demais para ser ouvido.</p><p>Boutillier se inclinou para a frente com os olhos castanhos brilhando. O rosto estava</p><p>predatório, mas a voz estava gentil.</p><p>— O que, Chris?</p><p>— Eu disse é. Acho que sim. Jogar ele, sim. Mas não matar. — Ele ergueu o olhar naquele</p><p>momento, com o rosto desesperado e infeliz e ainda incapaz de compreender as gigantescas</p><p>mudanças que aconteceram em sua vida desde que ele saiu de casa para aproveitar a última</p><p>noite do Festival do Canal de Derry com seus dois amigos às 19h30 da noite anterior. —</p><p>Matar ele, não! — repetiu ele. — E aquele cara debaixo da ponte… Eu ainda não sei quem</p><p>ele era.</p><p>— Que cara era esse? — perguntou Rademacher, mas sem muito interesse. Eles também já</p><p>tinham ouvido essa parte antes, e nenhum dos dois acreditou. Cedo ou tarde, homens acusados</p><p>de assassinato quase sempre surgem com um misterioso outro cara. Boutillier até tinha um</p><p>nome para isso: chamava de “Síndrome do Homem de Um Braço”, por causa daquela velha</p><p>série de TV, O Fugitivo.</p><p>— O cara de roupa de palhaço — disse Chris Unwin, e tremeu. — O cara com os balões.</p><p>3</p><p>O Festival do Canal, que ia de 15 a 21 de julho, foi</p><p>um enorme sucesso, como concordava a maior</p><p>parte dos residentes de Derry: uma ótima coisa</p><p>para o moral e para a imagem da cidade… e para</p><p>os cofres. O festival de uma semana aconteceu</p><p>para marcar o centenário da abertura do canal que</p><p>passava pelo meio da cidade. Foi o canal que abriu</p><p>completamente Derry para o comércio de madeira</p><p>nos anos 1884 a 1910; foi o canal que deu à luz os</p><p>anos de crescimento de Derry.</p><p>A cidade estava decorada de leste a oeste e de norte a sul. Buracos que alguns residentes</p><p>juravam não serem tapados havia anos ou mais foram preenchidos e nivelados. Os prédios da</p><p>cidade foram reformados por dentro e pintados por fora. O pior das pichações no Parque</p><p>Bassey (a maior parte declarações cheias de lógica antigay como MATEM TODOS OS VEADOS e AIDS É</p><p>DE DEUS, SEUS BICHAS DOS INFERNOS!!) foi lixado dos bancos e das paredes de madeira da pequena</p><p>passarela coberta sobre o canal conhecida como Ponte do Beijo.</p><p>Um Museu do Canal foi montado em três lojas vazias no centro com exposições</p><p>organizadas por Michael Hanlon, um bibliotecário local e historiador amador. As famílias</p><p>mais antigas da cidade emprestaram de bom grado seus tesouros quase inestimáveis, e durante</p><p>esta semana de festival, quase 40 mil visitantes pagaram 25 centavos por cabeça para olhar</p><p>cardápios de restaurantes dos anos 1890, ferramentas de lenhadores dos anos 1880,</p><p>brinquedos de criança dos anos 1920 e mais de 2 mil fotos e nove filmes da vida em Derry</p><p>nos últimos cem anos.</p><p>O museu foi patrocinado pela Sociedade de Senhoras de Derry, que vetou alguns dos itens</p><p>de exposição propostos por Hanlon (como a notória prisão em forma de cadeira dos anos</p><p>1930) e fotos (como as da gangue Bradley depois do famoso tiroteio). Mas todos concordaram</p><p>que foi um grande sucesso, e ninguém queria mesmo ver essas coisas velhas e nojentas. Era</p><p>tão melhor acentuar o positivo e eliminar o negativo, como dizia a velha canção.</p><p>Havia uma enorme barraca listrada de bebidas no Parque Derry, e shows de bandas lá</p><p>todas as noites. No Parque Bassey, havia brinquedos de parque de diversão levados pelo</p><p>Smokey’s Greater Shows e jogos organizados pela população. Um bondinho especial</p><p>circulava pelas seções históricas da cidade de hora em hora e acabava nessa área barulhenta e</p><p>agradável</p><p>(ou</p><p>Frankie) andava por Derry carregando a vara, olhando em canos de esgoto e bueiros. Às vezes</p><p>ele via dinheiro, em geral moedas de um centavo, mas às vezes uma de dez ou até de 25</p><p>centavos (ele se referia a essas, por algum motivo que só ele sabia, como “monstros do cais”).</p><p>Quando a moeda era vista, Frankie-ou-Freddy e A FABULOSA VARA DE CHICLETE entravam em ação.</p><p>Bastava uma cutucada pela grade e a moeda estava no bolso dele.</p><p>Ben tinha ouvido boatos de Frankie-ou-Freddy e sua vara de chiclete bem antes de o garoto</p><p>ficar famoso ao descobrir o corpo de Veronica Grogan.</p><p>— Ele é muito nojento — um garoto chamado Richie Tozier disse para Ben um dia durante</p><p>o tempo de atividades. Tozier era um garoto magrelo que usava óculos. Ben achava que sem</p><p>eles Tozier devia enxergar que nem o Mr. Magoo; os olhos ampliados dançavam atrás das</p><p>lentes grossas com uma expressão de surpresa perpétua. Ele também tinha dentes da frente</p><p>enormes que o fizeram ganhar o apelido de Castor Bucky. Era da mesma turma de quinto ano</p><p>de Freddy-ou-Frankie. — Enfia aquela vareta dele com chiclete em esgotos o dia todo e</p><p>depois mastiga o chiclete à noite.</p><p>— Nossa, que horror! — exclamou Ben.</p><p>— Issaí, amigão — disse Tozier e saiu andando.</p><p>Frankie-ou-Freddy enfiou A FABULOSA VARA DE CHICLETE para cima e para baixo da grade do</p><p>bueiro por acreditar que tinha encontrado uma peruca. Ele achou que talvez pudesse secá-la e</p><p>dar para a mãe de aniversário. Depois de alguns minutos empurrando e cutucando, quando</p><p>estava prestes a desistir, um rosto apareceu flutuando na água turva dentro do bueiro, um rosto</p><p>com folhas mortas presas nas bochechas brancas e terra nos olhos abertos.</p><p>Freddy-ou-Frankie foi correndo para casa gritando.</p><p>Veronica Grogan estava no quarto ano na escola batista da rua Neibolt, que era dirigida por</p><p>pessoas que a mãe de Ben chamava de “os Cristos”. Foi enterrada no dia em que seria seu</p><p>décimo aniversário.</p><p>Depois desse horror mais recente, Arlene Hanscom levou Ben para a sala uma noite e se</p><p>sentou ao lado dele no sofá. Ela segurou suas mãos e olhou com atenção em seu rosto. Ben</p><p>olhou para ela com um pouco de desconforto.</p><p>— Ben — disse ela —, você é bobo?</p><p>— Não, mamãe — disse Ben, sentindo mais desconforto do que nunca. Ele não fazia a</p><p>menor ideia do que era aquilo. Não conseguia se lembrar de ver a mãe tão séria.</p><p>— Não — repetiu ela. — Acho que não é.</p><p>Ela ficou em silêncio por um longo momento, sem olhar para Ben, e sim pela janela com</p><p>expressão pensativa. Ben pensou se ela tinha se esquecido completamente dele. Ainda era uma</p><p>mulher jovem, com apenas 32 anos, mas criar um garoto sozinha deixou uma marca nela. Ela</p><p>trabalhava 40 horas por semana na seção de empacotamento da indústria Stark em Newport, e</p><p>depois de dias em que havia muita poeira, ela às vezes tossia tanto e por tanto tempo que Ben</p><p>ficava com medo. Nessas noites, ele ficava acordado por bastante tempo, olhando pela janela</p><p>ao lado da cama para a escuridão, se perguntando o que aconteceria com ele se ela morresse.</p><p>Ele ficaria órfão, achava ele. Poderia se tornar um Garoto do Estado (ele achava que isso</p><p>significava você ter que ir morar com fazendeiros que faziam você trabalhar do nascer ao pôr</p><p>do sol), ou poderia ser mandado para o Orfanato de Bangor. Ele tentava dizer para si mesmo</p><p>que era besteira se preocupar com coisas assim, mas isso não ajudava em nada. E nem era</p><p>apenas consigo mesmo que ele se preocupava; se preocupava com ela também. Ela era uma</p><p>mulher durona, a mãe dele, e insistia que a maioria das coisas fosse do jeito dela, mas era uma</p><p>mãe boa. Ele a amava muito.</p><p>— Você sabe sobre esses assassinatos — disse ela, olhando para ele por fim.</p><p>Ele assentiu.</p><p>— A princípio, as pessoas achavam que eram… — Ela hesitou nas palavras seguintes,</p><p>nunca ditas na frente do filho antes, mas as circunstâncias eram incomuns e ela se obrigou —</p><p>… crimes sexuais. Talvez fossem, e talvez não. Talvez tenham acabado, e talvez não. Ninguém</p><p>pode ter certeza de mais nada, exceto que algum homem maluco que persegue crianças está</p><p>por aí. Você me entende, Ben?</p><p>Ele assentiu.</p><p>— E você sabe o que quero dizer quando digo que podem ter sido crimes sexuais?</p><p>Ele não sabia, ao menos não exatamente, mas assentiu de novo. Se a mãe achasse que</p><p>precisava falar com ele sobre a cegonha além dessa outra coisa, ele achava que morreria de</p><p>constrangimento.</p><p>— Eu me preocupo com você, Ben. Tenho medo de não estar cuidando direito de você.</p><p>Ben se mexeu e não disse nada.</p><p>— Você fica muito tempo sozinho. Tempo demais, eu acho. Você…</p><p>— Mamãe…</p><p>— Silêncio enquanto falo com você — disse ela, e Ben fez silêncio. — Você tem que</p><p>tomar cuidado, Benny. O verão está chegando, e não quero estragar suas férias, mas você tem</p><p>que tomar cuidado. Quero você em casa na hora do jantar todos os dias. Que horas nós</p><p>jantamos?</p><p>— Seis horas.</p><p>— Na mosca! Então ouça o que estou dizendo: se eu botar a mesa, servir seu leite e não</p><p>houver Ben lavando a mão na pia, vou direto pro telefone ligar pra polícia pra relatar seu</p><p>desaparecimento. Você entende isso?</p><p>— Sim, mamãe.</p><p>— E acredita que estou falando sério?</p><p>— Acredito.</p><p>— Eu provavelmente faria isso à toa, se chegasse a fazer. Sei bem como vocês meninos</p><p>são. Sei que vocês se envolvem nos seus jogos e projetos durante as férias de verão, caçando</p><p>abelhas, jogando bola ou chutando latas, sei lá. Tenho uma boa ideia do que você e seus</p><p>amigos fazem, sabe?</p><p>Ben assentiu com seriedade, pensando que, se ela não sabia que ele não tinha amigos,</p><p>provavelmente não sabia nada sobre a infância dele como achava que sabia. Mas ele jamais</p><p>teria sonhado em dizer uma coisa assim para ela, nem em 10 mil anos de sonhos.</p><p>Ela tirou alguma coisa do bolso do avental e entregou a ele. Era uma pequena caixa de</p><p>plástico. Ben a abriu. Quando viu o que tinha dentro, seu queixo caiu.</p><p>— Uau! — disse ele, com a admiração completamente intacta. — Obrigado!</p><p>Era um relógio Timex com pequenos números de prata e pulseira feita de imitação de</p><p>couro. Ela tinha acertado e dado corda; ele conseguia ouvir o tique-taque.</p><p>— Nossa, é demais! — Ele deu um abraço entusiasmado nela e um beijo barulhento na</p><p>bochecha.</p><p>Ela sorriu, feliz por ele estar feliz, e assentiu. Em seguida, ficou séria de novo.</p><p>— Coloque, fique com ele, use, dê corda, cuide dele e não perca.</p><p>— Tá.</p><p>— Agora que você tem um relógio, não tem desculpa pra chegar atrasado em casa. Lembre</p><p>o que eu disse: se você não chegar na hora, a polícia vai sair te procurando a pedido meu.</p><p>Pelo menos até conseguirem pegar o maldito que anda matando crianças aqui, não ouse se</p><p>atrasar nem um minuto, senão pego aquele telefone.</p><p>— Sim, mamãe.</p><p>— Mais uma coisa. Não quero você andando por aí sozinho. Você sabe que não deve</p><p>aceitar doces nem caronas de estranhos, nós dois concordamos que você não é bobo, e você é</p><p>grande para sua idade, mas um homem adulto, principalmente se for doido, consegue pegar</p><p>uma criança se quiser de verdade. Quando você for ao parque ou à biblioteca, vá com um dos</p><p>seus amigos.</p><p>— Pode deixar, mamãe.</p><p>Ela olhou pela janela de novo e deu um suspiro que era só problema.</p><p>— As coisas ficam bem complicadas quando algo assim continua a acontecer. De qualquer</p><p>modo, tem alguma coisa de feio nesta cidade. Sempre achei isso. — Ela olhou para ele com as</p><p>sobrancelhas unidas. — Você anda tanto por aí, Ben. Deve conhecer quase todos os lugares de</p><p>Derry, não é? Pelo menos a parte da cidade.</p><p>Ben achava que não conhecia nem de perto todos os lugares, mas conhecia muitos. E ficou</p><p>tão empolgado com o presente inesperado que foi o Timex que teria concordado com a mãe se</p><p>ela tivesse sugerido que John Wayne devia fazer o papel de Adolf Hitler em uma comédia</p><p>musical sobre a Segunda Guerra Mundial. Ele assentiu.</p><p>— Você nunca viu nada, viu? — perguntou ela. — Nada nem ninguém… bem, suspeito?</p><p>Alguma coisa fora do comum? Alguma coisa que deu medo?</p><p>E, com o prazer causado pelo relógio, a sensação de amor por ela, a felicidade de garoto</p><p>pequeno pela preocupação dela (que era ao mesmo tempo assustadora pela intensidade aberta</p><p>e clara), ele quase contou a</p><p>de fazer dinheiro.</p><p>Foi aqui que Adrian Mellon ganhou o chapéu que levaria à sua morte, a cartola de papelão</p><p>com a flor e a faixa que dizia EU ♥ DERRY!</p><p>4</p><p>— Estou cansado — disse John “Webby” Garton.</p><p>Como seus dois amigos, ele estava usando uma</p><p>imitação inconsciente das roupas de Bruce</p><p>Springsteen, embora, se perguntado, ele</p><p>provavelmente chamaria Springsteen de fracote ou</p><p>boiola e declararia admiração por grupos de heavy</p><p>metal “do cacete” como Def Leppard, Twisted</p><p>Sister ou Judas Priest. As mangas da camiseta azul</p><p>lisa tinham sido cortadas, deixando à mostra os</p><p>braços bastante musculosos. O cabelo castanho</p><p>volumoso caía sobre um dos olhos; esse toque era</p><p>mais John Cougar Mellencamp do que Bruce</p><p>Springsteen. Havia tatuagens azuis em seus</p><p>braços, símbolos misteriosos que pareciam</p><p>desenhados por uma criança. — Não quero mais</p><p>falar.</p><p>— Só nos conte sobre a tarde de terça na feira — disse Paul Hughes. Ele estava cansado,</p><p>chocado e consternado por todo esse negócio sórdido. Pensou mais de uma vez que parecia</p><p>que o Festival do Canal de Derry estava terminando com um evento final sobre o qual todo</p><p>mundo de alguma forma sabia, mas que ninguém ousou colocar na programação diária de</p><p>eventos. Se tivessem feito isso, ficaria assim:</p><p>Sábado, 21h: Último show com a Derry High School Band e Barber Shop Mello-Men.</p><p>Sábado, 22h: Grandioso show de fogos.</p><p>Sábado, 22h35: O sacrifício ritual de Adrian Mellon encerra oficialmente o Festival do</p><p>Canal.</p><p>— Foda-se a feira — respondeu Webby.</p><p>— Só o que você disse pra Mellon e o que ele disse pra você.</p><p>— Ah, Deus. — Webby revirou os olhos.</p><p>— Vamos lá, Webby — disse o parceiro de Hughes.</p><p>Webby Garton revirou os olhos e começou tudo de novo.</p><p>5</p><p>Garton viu os dois, Mellon e Hagarty, andando com</p><p>afetação, com os braços na cintura um do outro e</p><p>rindo como duas garotas. A princípio, ele achou</p><p>mesmo que eram duas garotas. Mas reconheceu</p><p>Mellon, que tinha sido mostrado a ele antes.</p><p>Quando ele olhou, viu Mellon se virar para</p><p>Hagarty… e eles se beijaram rapidamente.</p><p>— Ah, cara, vou vomitar! — gritou Webby, enojado.</p><p>Chris Unwin e Steve Dubay estavam com ele. Quando Webby mostrou Mellon, Steve</p><p>Dubay disse que achava que a outra bicha se chamava Don alguma coisa e que ele tinha dado</p><p>carona a um garoto da Derry High e tentado dar em cima dele.</p><p>Mellon e Hagarty começaram a andar em direção aos três garotos de novo, afastando-se da</p><p>barraca Jogue até Ganhar e indo em direção à saída da feira. Webby Garton mais tarde</p><p>contaria aos policiais Hughes e Conley que seu “orgulho cívico” fora ferido ao ver uma porra</p><p>de veado usando um chapéu que dizia EU ♥ DERRY. Era uma coisa boba, aquele chapéu, uma</p><p>imitação de papel de uma cartola com uma enorme flor no alto balançando em todas as</p><p>direções. A tolice do chapéu aparentemente feriu o orgulho cívico de Webby ainda mais.</p><p>Quando Mellon e Hagarty passaram, cada um com o braço passado pela cintura do outro,</p><p>Webby Garton gritou:</p><p>— Eu devia te fazer comer esse chapéu, seu come-bunda de merda!</p><p>Mellon se virou para Garton, piscou de um jeito paquerador e disse:</p><p>— Se você quer comer alguma coisa, querido, sei de uma coisa muito mais gostosa do que</p><p>o meu chapéu.</p><p>Nesse ponto, Webby Garton decidiu rearrumar o rosto da bicha. Na geografia do rosto de</p><p>Mellon, montanhas subiriam e continentes mudariam de lugar. Ninguém sugeria que ele</p><p>chupasse pau. Ninguém.</p><p>Ele partiu para cima de Mellon. Alarmado, Hagarty tentou afastar Mellon, mas ele se</p><p>manteve firme e sorrindo. Garton mais tarde contaria aos policiais Hughes e Conley que tinha</p><p>certeza de que Mellon estava doidão de alguma coisa. Estava mesmo, concordaria Hagarty</p><p>quando essa ideia fosse passada para ele pelos policiais Gardener e Reeves. Estava alto de</p><p>comer dois donuts fritos banhados em mel na feira durante todo o dia. Ele consequentemente</p><p>não conseguiu reconhecer a verdadeira ameaça que Webby Garton representava.</p><p>— Mas Adrian era assim — disse Don, usando um lenço de papel para secar os olhos e</p><p>espalhando a sombra cintilante que estava usando. — Ele não tinha muita noção de quando</p><p>precisava se proteger. Era um desses tolos que pensam que as coisas vão terminar bem.</p><p>Ele poderia ter ficado muito ferido naquele momento se Garton não tivesse sentido uma</p><p>coisa bater em seu cotovelo. Era um cassetete. Ele virou a cabeça e viu o policial Frank</p><p>Machen, outro membro da elite de Derry.</p><p>— Deixa pra lá, amiguinho — disse Machen para Garton. — Cuida da sua vida e deixa</p><p>esses gayzinhos em paz. Vai se divertir.</p><p>— Você ouviu de que ele me chamou? — perguntou Garton com irritação. Agora, estava</p><p>acompanhado de Unwin e Dubay; os dois, ao sentirem cheiro de problema, tentaram afastar</p><p>Garton dali, mas Garton os empurrou e teria se virado contra eles com socos se tivessem</p><p>insistido. A masculinidade dele tinha recebido um insulto que ele sentia precisar ser vingado.</p><p>Ninguém sugeria que ele chupasse pau. Ninguém.</p><p>— Acredito que ele não te chamou de nada — respondeu Machen. — E você falou com ele</p><p>primeiro, acredito eu. Agora anda, filho. Não quero ter que mandar de novo.</p><p>— Ele me chamou de bicha!</p><p>— Então você está com medo de ser? — perguntou Machen, parecendo genuinamente</p><p>interessado, e Garton ficou de um tom vermelho profundo.</p><p>Durante essa conversa, Hagarty estava tentando com desespero cada vez maior puxar</p><p>Adrian Mellon para longe da cena. Agora, pelo menos, Mellon estava indo.</p><p>— Tchau, tchau, amor! — gritou Adrian alegremente por cima do ombro.</p><p>— Cala a boca, cu frouxo — disse Machen. — Sai daqui.</p><p>Garton voou para cima de Mellon, e Machen o segurou.</p><p>— Posso te prender, meu amigo — disse Machen —, e pela forma como você está se</p><p>comportando, pode não ser tão má ideia.</p><p>— Na próxima vez que eu te encontrar, vou te machucar! — gritou Garton pelas costas do</p><p>par que se afastava, e cabeças se viraram para olhar para ele. — E se você estiver usando</p><p>esse chapéu, vou te matar! Essa cidade não precisa de bichas como você!</p><p>Sem se virar, Mellon balançou os dedos da mão esquerda (as unhas estavam pintadas de</p><p>vermelho-cereja) e rebolou ainda mais ao caminhar. Garton pulou de novo.</p><p>— Mais uma palavra ou mais um movimento e você vai preso — disse Machen</p><p>calmamente. — Acredite em mim, meu rapaz, pois estou falando sério.</p><p>— Vem, Webby — disse Chris Unwin com constrangimento. — Se acalma.</p><p>— Você gosta de caras assim? — perguntou Webby para Machen, ignorando</p><p>completamente Chris e Steve. — Hã?</p><p>— Sou neutro em relação a quem gosta de morder fronha — disse Machen. — Sou a favor</p><p>mesmo é de paz e sossego, e você está perturbando aquilo de que eu gosto, cara de pizza. Quer</p><p>ir dar uma volta comigo ou não?</p><p>— Vem, Webby — disse Steve Dubay baixinho. — Vamos comprar cachorro-quente.</p><p>Webby foi, ajeitando a camisa com movimentos exagerados e tirando o cabelo dos olhos.</p><p>Machen, que também deu depoimento na manhã seguinte à morte de Adrian Mellon, disse: “A</p><p>última coisa que ouvi ele dizer quando estava se afastando com os amigos foi: ‘Na próxima</p><p>vez que eu der de cara com ele, ele vai estar encrencado.’”</p><p>6</p><p>— Por favor, preciso falar com a minha mãe —</p><p>disse Steve Dubay pela terceira vez. — Tenho que</p><p>pedir pra ela aliviar com meu padrasto, senão vou</p><p>levar muita porrada quando chegar em casa.</p><p>— Daqui a pouco — disse o policial Charles Avarino. Tanto Avarino quanto seu parceiro,</p><p>Barney Morrison, sabiam que Steve Dubay não ia para casa naquela noite e talvez nas</p><p>próximas também não. O garoto não parecia perceber o quanto essa prisão era pesada, e</p><p>Avarino não ficaria surpreso de descobrir mais tarde que Dubay tinha largado a escola aos 16</p><p>anos. Naquela época, ele ainda estava na escola de ensino fundamental Water Street Junior</p><p>High. O QI dele era de 68, de acordo com o teste que fez em uma das três passagens pelo</p><p>sétimo ano.</p><p>— Nos conte o que aconteceu quando vocês viram Mellon saindo do Falcon — disse</p><p>Morrison.</p><p>— Não, cara, melhor não.</p><p>— E por que não? — perguntou Avarino.</p><p>— Já falei demais, eu acho.</p><p>— Você veio pra falar — disse Avarino. — Não é verdade?</p><p>— Bem… é… mas…</p><p>— Escuta — disse Morrison calorosamente, sentando-se</p><p>ao lado de Dubay e entregando</p><p>um cigarro a ele. — Você acha que eu e o Chick aqui gostamos de bichas?</p><p>— Não sei…</p><p>— A gente parece que gosta de bichas?</p><p>— Não, mas…</p><p>— Somos seus amigos, Steve — disse Morrison solenemente. — E acredite, você, Chris e</p><p>Webby precisam de todos os amigos que puderem ter agora. Porque amanhã todas as pessoas</p><p>de bom coração desta cidade estarão gritando pelo sangue de vocês.</p><p>Steve Dubay pareceu levemente alarmado. Avarino, que conseguia quase ler a mentezinha</p><p>de merda desse palhaço, desconfiava que ele estava pensando no padrasto de novo. E, apesar</p><p>de Avarino não gostar da pequena comunidade gay de Derry (como qualquer policial da força,</p><p>ele gostaria de ver o Falcon fechado para sempre), ele ficaria feliz em levar Dubay para casa</p><p>ele mesmo. Ficaria feliz, na verdade, de segurar os braços de Dubay enquanto o padrasto batia</p><p>no moleque até ele virar patê. Avarino não gostava de gays, mas isso não significava que</p><p>acreditava que eles deviam ser torturados e assassinados. Mellon foi brutalmente atacado.</p><p>Quando o tiraram de debaixo da ponte do canal, os olhos dele estavam abertos e saltados de</p><p>pavor. E esse cara aqui não fazia ideia nenhuma do que tinha ajudado a fazer.</p><p>— A gente não queria machucar ele — repetiu Steve. Essa era a frase padrão quando ele</p><p>ficava ligeiramente confuso.</p><p>— É por isso que você quer ser sincero com a gente — disse Avarino com seriedade. —</p><p>Deixar claros os fatos verdadeiros da questão, pra quem sabe tudo isso não passar de uma</p><p>coisa à toa. Não é verdade, Barney?</p><p>— Verdadeira — concordou Morrison.</p><p>— Mais uma vez, o que você diz? — disse Avarino com persuasão.</p><p>— Bem… — disse Steve, e começou a falar lentamente.</p><p>7</p><p>Quando o Falcon foi aberto em 1973, Elmer Curtie</p><p>pensava que sua clientela consistiria basicamente</p><p>em passageiros de ônibus, pois a rodoviária ao</p><p>lado atendia três linhas diferentes: Trailways,</p><p>Greyhound e Aroostook County. O que ele não</p><p>percebeu foi quantos dos passageiros que andam</p><p>de ônibus são mulheres ou famílias com crianças</p><p>pequenas. Muitos dos outros deixavam as garrafas</p><p>em sacos de papel e nem saíam do ônibus. Os que</p><p>saíam costumavam ser soldados ou marinheiros</p><p>que não queriam mais do que uma cerveja rápida</p><p>ou duas; não dava para entornar durante uma</p><p>parada de dez minutos.</p><p>Curtie começou a perceber algumas dessas verdades por volta de 1977, mas já era tarde</p><p>demais: ele estava com contas até as orelhas e não tinha como sair do vermelho. A ideia de</p><p>queimar o bar para receber o seguro lhe ocorreu, mas a não ser que ele contratasse um</p><p>profissional para provocar o incêndio, ele achava que seria pego… e não tinha ideia de onde</p><p>encontrar incendiários profissionais, de qualquer modo.</p><p>Em fevereiro daquele ano, ele decidiu que esperaria até o dia 4 de julho; se as coisas não</p><p>parecessem estar mudando até lá, ele simplesmente andaria até a construção ao lado, entraria</p><p>num ônibus e veria como as coisas eram na Flórida.</p><p>Mas nos cinco meses seguintes, um tipo de prosperidade incrível e silenciosa chegou ao</p><p>bar, que era pintado de preto e dourado por dentro e decorado com pássaros empalhados (o</p><p>irmão de Elmer Curtie fora taxidermista amador especializado em pássaros, e Elmer herdara</p><p>tudo quando ele morreu). De repente, em vez de vender sessenta cervejas e vinte drinques por</p><p>noite, Elmer servia oitenta cervejas e cem drinques… 120… às vezes até 160.</p><p>A clientela era jovem, educada, quase exclusivamente masculina. Muitos se vestiam de</p><p>maneira extravagante, mas aqueles eram anos em que roupas extravagantes ainda eram quase a</p><p>norma, e Elmer Curtie só reparou que seus clientes eram quase exclusivamente gays em 1981,</p><p>mais ou menos. Se os residentes de Derry o ouvissem dizer isso, teriam rido e dito que Elmer</p><p>Curtie devia pensar que todos nasceram ontem, mas o que ele dizia era perfeitamente verdade.</p><p>Como o marido da esposa traidora, ele foi praticamente o último a saber… E quando soube,</p><p>não se importou. O bar estava dando dinheiro, e apesar de haver quatro outros bares em Derry</p><p>que davam lucro, o Falcon era o único em que os clientes baderneiros não quebravam o</p><p>estabelecimento todo. Não havia mulheres por quem brigar, e esses homens, gays ou não,</p><p>pareciam ter aprendido um segredo para se dar bem uns com os outros que seus similares</p><p>heterossexuais não sabiam.</p><p>Depois que ficou ciente das preferências sexuais dos clientes regulares, ele passou a ouvir</p><p>histórias absurdas sobre o Falcon em todos os lugares. Essas histórias circulavam havia anos,</p><p>mas até 1981 Curtie não as tinha ouvido. Os contadores mais entusiastas dessas histórias,</p><p>descobriu ele, eram homens que não se deixariam arrastar até o Falcon por medo de os</p><p>músculos do pulso ficarem frouxos, ou algo do tipo. Mas pareciam saber de todo tipo de</p><p>coisa.</p><p>De acordo com as histórias, você podia entrar lá em qualquer noite e ver homens dançando</p><p>coladinhos, esfregando os membros bem na pista de dança; homens beijando de língua no bar;</p><p>homens fazendo boquete no banheiro. Havia supostamente um quarto nos fundos para onde</p><p>você ia se quisesse passar um tempinho na Torre de Poder: havia um sujeito enorme de</p><p>uniforme nazista lá com o braço lubrificado até o ombro e que teria prazer em cuidar de você.</p><p>Mas nenhuma dessas coisas era verdade. Quando pessoas com sede saíam da rodoviária</p><p>para tomar uma cerveja ou um uísque com soda, elas não sentiam nada de incomum no Falcon.</p><p>Havia muitos homens, claro, mas não era nada diferente de milhares de bares de trabalhadores</p><p>em todo o país. A clientela era gay, mas gay não era sinônimo de burro. Se eles queriam ser</p><p>ousados, iam para Portland. Se queriam ser muito ousados, iam para Nova York ou Boston.</p><p>Derry era pequena, Derry era provinciana e a pequena comunidade gay de Derry entendia a</p><p>sombra sob a qual existia perfeitamente bem.</p><p>Don Hagarty frequentava o Falcon havia dois ou três anos na noite de março de 1984 em</p><p>que apareceu com Adrian Mellon. Antes disso, Hagarty era do tipo que avalia o terreno e</p><p>raramente aparecia com a mesma companhia mais de seis vezes. Mas no final de abril ficou</p><p>óbvio até para Elmer Curtie, que ligava bem pouco para coisas assim, que Hagarty e Mellon</p><p>tinham um relacionamento firme.</p><p>Hagarty era projetista em uma empresa de engenharia em Bangor. Adrian Mellon era</p><p>repórter freelancer que publicava em qualquer lugar que conseguisse: revistas de companhia</p><p>aérea, revistas femininas, revistas regionais, suplementos dominicais, revistas com cartas de</p><p>sexo. Estava escrevendo um romance, mas talvez isso não fosse sério; ele vinha trabalhando</p><p>nisso desde o terceiro ano de faculdade, 12 anos antes.</p><p>Ele tinha ido a Derry para escrever uma reportagem sobre o canal, a serviço do New</p><p>England Byways, uma revista bimestral publicada em Concord. Adrian Mellon aceitou o</p><p>trabalho porque conseguiu tirar da Byways dinheiro para três semanas de despesas, incluindo</p><p>um bom quarto no Derry Town House, e juntar todo o material de que precisava em cinco</p><p>dias, talvez. Durante as outras duas semanas, ele podia juntar material suficiente para talvez</p><p>quatro outras reportagens regionais.</p><p>Mas durante o período de três semanas, ele conheceu Don Hagarty e, em vez de voltar para</p><p>Portland quando as três semanas pagas acabaram, ele se viu em um pequeno apartamento na</p><p>travessa Kossuth. Ele morou lá por apenas seis semanas. Depois disso, foi morar com Don</p><p>Hagarty.</p><p>8</p><p>Aquele verão, Hagarty contou a Harold Gardener e</p><p>Jeff Reeves, foi o mais feliz da vida dele. Ele devia</p><p>estar atento, disse ele; devia saber que Deus só</p><p>coloca um tapete debaixo de caras como ele para</p><p>puxar de debaixo dos pés.</p><p>A única sombra, disse ele, era a reação extravagante de militância de Adrian a favor de</p><p>Derry. Ele tinha uma camiseta com os dizeres O MAINE NÃO É RUIM, MAS DERRY É ÓTIMA! Tinha uma</p><p>jaqueta dos Derry Tigers. E, é claro, havia o chapéu. Ele dizia achar a atmosfera vital e</p><p>criativamente revigorante. Talvez houvesse alguma coisa nisso: ele tinha tirado o arrastado</p><p>romance da caixa pela primeira vez em quase um ano.</p><p>— Então ele estava mesmo escrevendo o romance? — Gardener perguntou</p><p>a Hagarty, não</p><p>se importando realmente, mas querendo manter Hagarty falando.</p><p>— Estava… Estava escrevendo páginas e páginas. Disse que podia ser um péssimo</p><p>romance, mas não ia ser mais um péssimo romance inacabado. Ele esperava concluir antes do</p><p>aniversário, em outubro. É claro que ele não sabia como Derry era de verdade. Achava que</p><p>sabia, mas não tinha passado tempo o suficiente aqui pra sentir o cheiro da verdadeira Derry.</p><p>Eu ficava tentando falar pra ele, mas ele não ouvia.</p><p>— E como Derry é de verdade, Don? — perguntou Reeves.</p><p>— Parece muito com uma prostituta morta com vermes saindo da boceta — disse Don</p><p>Hagarty.</p><p>Os dois policiais olharam com assombro silencioso.</p><p>— É um lugar ruim — disse Hagarty. — É um esgoto. Vocês querem dizer que não sabem</p><p>disso? Vocês dois moram aqui a vida toda e não sabem disso?</p><p>Nenhum dos dois respondeu. Depois de um tempo, Hagarty prosseguiu.</p><p>9</p><p>Até Adrian Mellon entrar em sua vida, Don</p><p>planejava ir embora de Derry. Morava lá havia três</p><p>anos, mais por ter aceitado um período longo de</p><p>aluguel de um apartamento com a vista do rio mais</p><p>fantástica do mundo, mas agora o contrato estava</p><p>quase terminado e Don estava feliz. Era o fim das</p><p>longas viagens de transporte público para ir e</p><p>voltar de Bangor. Era o fim das energias estranhas.</p><p>Em Derry, ele disse uma vez para Adrian, parecia</p><p>que eram sempre 13 horas. Adrian podia achar que</p><p>Derry era um lugar ótimo, mas o lugar assustava</p><p>Don. Não era só a atitude homofóbica da cidade,</p><p>uma atitude claramente expressa pelos pregadores</p><p>da cidade e pelas pichações do Parque Bassey, mas</p><p>era uma coisa que ele nunca conseguiu identificar.</p><p>Adrian rira.</p><p>— Don, todas as cidades dos Estados Unidos têm um contingente de pessoas que odeiam os</p><p>gays — disse ele. — Não me diga que não sabe disso. Afinal, estamos na era de Ronnie</p><p>Moron e Phyllis Housefly.</p><p>— Vem pro Parque Bassey comigo — respondeu Don depois de ver que Adrian estava</p><p>realmente falando sério, e que o que ele realmente estava dizendo era que Derry não era pior</p><p>do que qualquer outra cidade de tamanho mediano do interior. — Quero te mostrar uma coisa,</p><p>meu amor.</p><p>Eles foram para o Parque Bassey de carro. Isso aconteceu em meados de junho, cerca de</p><p>um mês antes do assassinato de Adrian, Hagarty contou para os policiais. Ele levou Adrian</p><p>para as sombras escuras e vagamente desagradáveis da Ponte do Beijo. Apontou para uma das</p><p>pichações. Adrian precisou acender um fósforo e segurar abaixo do texto para conseguir ler.</p><p>ME MOSTRA SEU PAU, SUA BICHA, E VOU CORTAR ELE FORA.</p><p>— Sei o que as pessoas acham dos gays — disse Don baixinho. — Levei uma surra em uma</p><p>parada de caminhões em Dayton quando era adolescente; alguns caras de Portland colocaram</p><p>fogo nos meus sapatos em frente a uma lanchonete enquanto um policial velho e gordo ficava</p><p>dentro da viatura rindo. Já vi muita coisa… mas nunca vi nada assim. Olha ali. Dá uma lida.</p><p>Outro fósforo revelou ENFIE PREGOS NOS OLHOS DE TODOS OS VEADOS (POR DEUS)!</p><p>— Quem escreve essas frases tem um problema sério de loucura. Eu me sentiria melhor se</p><p>achasse que era só uma pessoa, um doente isolado, mas… — Don passou o braço lentamente</p><p>na direção da extensão da Ponte do Beijo. — Tem muitas dessas coisas… e acho que não foi</p><p>uma pessoa que escreveu todas. É por isso que quero sair de Derry. Lugares demais e pessoas</p><p>demais parecem sofrer de loucura profunda.</p><p>— Ah, espera até eu terminar meu romance, tá? Por favor? Outubro, eu prometo, nem um</p><p>dia a mais. O ar é melhor aqui.</p><p>— Ele não sabia que era com a água que ele precisaria tomar cuidado — disse Don</p><p>Hagarty com amargura.</p><p>10</p><p>Tom Boutillier e o chefe Rademacher se inclinaram</p><p>para a frente, os dois sem falar. Chris Unwin</p><p>estava sentado com a cabeça baixa, falando em</p><p>tom monótono para o chão. Essa era a parte que</p><p>eles queriam ouvir; essa era a parte que ia mandar</p><p>pelo menos dois cretinos para Thomaston.</p><p>— A feira não estava boa — disse Unwin. — Já estavam tirando todos os brinquedos</p><p>maneiros, sabe, como a Roda do Demônio e a Queda de Paraquedas. Já tinham colocado uma</p><p>placa nos Carrinhos Bate-Bate escrito “fechado”. Não tinha nada aberto, só brinquedos de</p><p>bebê. Então fomos pra área dos jogos, e Webby viu o Jogue até Ganhar; pagou cinquenta</p><p>centavos e viu aquele chapéu que a bicha estava usando e jogou pra pegar um, mas ficava</p><p>errando, e cada vez que ele errava, o humor dele piorava, sabe? E Steve, o cara que costuma</p><p>sair por aí dizendo esfria a cabeça, tipo esfria a cabeça pra isso, esfria a cabeça praquilo, e</p><p>por que você não esfria essa porra duma vez, sabe? Só que ele estava com o humor fodido</p><p>porque tomou um comprimido sabe? Não sei que tipo de comprimido. Um comprimido</p><p>vermelho. De repente até era legal. Mas ele fica atrás de Webby até eu achar que Webby ia</p><p>bater nele, sabe. Ele fica repetindo: Você não consegue nem ganhar o chapéu daquela bicha.</p><p>Deve estar muito doidão se não consegue nem ganhar o chapéu daquela bicha. Então a dona</p><p>acaba dando um prêmio pra ele apesar do aro não ter acertado nada, porque acho que ela</p><p>queria se livrar de nós. Não sei. Talvez não. Mas acho que sim. Era uma coisa de fazer</p><p>barulho, sabe? Você sopra, ela enche e desenrola e faz um barulho de peido, sabe? Eu tinha</p><p>um. Ganhei no Halloween ou no Ano-Novo ou numa porra de feriado. Achava bem legal, só</p><p>que perdi. Ou pode ser que alguém tenha tirado do meu bolso na merda de parquinho da</p><p>escola, sabe? Aí a feira está fechando e estamos saindo e Steve ainda está no pé de Webby</p><p>por ele não ter conseguido ganhar o chapéu da bicha, sabe, e Webby não está falando muito e</p><p>sei que isso é mau sinal, mas eu estava bêbado, sabe? Então eu sabia que tinha que mudar de</p><p>assunto, mas não conseguia pensar em nada, sabe? Então quando entramos no estacionamento,</p><p>Steve diz: Aonde você quer ir? Pra casa? E Webby diz: Vamos passar na porta do Falcon</p><p>primeiro pra ver se aquela bicha está por lá.</p><p>Boutillier e Rademacher trocaram um olhar. Boutillier ergueu um único dedo e bateu na</p><p>bochecha; apesar de o pateta de botas não saber, estava falando agora de assassinato em</p><p>primeiro grau.</p><p>— Então eu falo não, tenho que ir pra casa, e Webby diz: está com medo de passar na porta</p><p>daquele bar gay? E eu digo: porra, não! E Steve ainda está alto, eu acho, e diz: vamos fritar</p><p>carne de veado! Vamos fritar carne de veado! Vamos fritar…</p><p>11</p><p>A sincronia foi perfeita para tudo dar errado para</p><p>todo mundo. Adrian Mellon e Don Hagarty saíram</p><p>do Falcon depois de duas cervejas, passaram</p><p>andando pela rodoviária e deram as mãos. Nenhum</p><p>dos dois pensou no que estava fazendo; era</p><p>apenas uma coisa que eles faziam. Eram 22h20.</p><p>Eles chegaram na esquina e viraram à esquerda.</p><p>A Ponte do Beijo ficava quase 700 metros rio acima dali; eles pretendiam cruzar a ponte da</p><p>rua Main, que era bem menos pitoresca. O Kenduskeag estava baixo, como era comum no</p><p>verão, com no máximo 1,20 metro de água deslizando apaticamente pelos pilares de concreto</p><p>da ponte.</p><p>Quando o Duster chegou ao lado deles (Steve Dubay tinha visto os dois saindo do Falcon e</p><p>apontou para eles alegremente), eles estavam na metade da extensão.</p><p>— Dá uma fechada! Dá uma fechada! — gritou Webby Garton. Os dois homens tinham</p><p>acabado de passar debaixo de um poste de luz e ele viu que estavam de mãos dadas. Isso o</p><p>enfureceu… mas não tanto quanto o chapéu. A enorme flor de papel estava balançando</p><p>loucamente de um lado para o outro. — Dá uma fechada, porra!</p><p>E Steve deu.</p><p>Chris Unwin negaria participação no que se seguiu, mas Don Hagarty contou uma história</p><p>diferente. Ele disse que Garton saiu do carro quase antes de ele parar, e que os outros dois</p><p>foram rapidamente atrás. Houve conversa. Não foi boa. Não houve tentativa de irreverência</p><p>nem de flerte falso da parte de Adrian naquela noite; ele reconheceu que eles estavam com um</p><p>problema bem grande.</p><p>— Me dá esse chapéu — disse Garton. — Me dá, bicha.</p><p>— Se eu der, você vai deixar a gente em paz? — Adrian estava ofegante de medo, quase</p><p>chorando, olhando de Unwin para Dubay e Garton com olhos apavorados.</p><p>— Me dá essa porra!</p><p>Adrian entregou o chapéu. Garton tirou</p><p>um canivete do bolso esquerdo da calça jeans e</p><p>cortou-o em dois pedaços. Esfregou os pedaços no traseiro da calça. Em seguida, jogou no</p><p>chão e pulou em cima.</p><p>Don Hagarty se afastou um pouco quando a atenção deles estava dividida entre Adrian e o</p><p>chapéu. Ele disse que estava procurando um policial.</p><p>— Agora vocês vão nos deixar em p… — começou a falar Adrian Mellon, e foi nessa hora</p><p>que Garton deu um soco na cara dele, empurrando-o contra a cerca da ponte da altura da</p><p>cintura. Adrian gritou e levou as mãos à boca. Sangue jorrou entre seus dedos.</p><p>— Ade! — gritou Hagarty, e saiu correndo de novo. Dubay esticou o pé para derrubá-lo.</p><p>Garton chutou-o na barriga e o derrubou da calçada para a rua. Um carro passou. Hagarty</p><p>ficou de joelhos e gritou. O carro não diminuiu. Ele contou a Gardener e Reeves que o</p><p>motorista nem olhou para trás.</p><p>— Cala a boca, veado! — disse Dubay, e chutou-o na lateral do rosto. Hagarty caiu de lado</p><p>na sarjeta, semiconsciente.</p><p>Alguns momentos depois, ele ouviu uma voz, de Chris Unwin, mandando-o ir embora antes</p><p>que ele recebesse o que o amigo estava recebendo. Em seu próprio depoimento, Unwin</p><p>confirmou que deu esse aviso.</p><p>Hagarty conseguia ouvir baques surdos e o som de seu amante gritando. Adrian parecia um</p><p>coelho em uma armadilha, ele contou à polícia. Hagarty rastejou de volta até o cruzamento e</p><p>as luzes intensas da rodoviária, e quando estava a uma certa distância, se virou para olhar.</p><p>Adrian Mellon, que tinha 1,65 metro e pesava apenas uns 60 quilos, estava sendo</p><p>empurrado de Garton para Dubay para Unwin em uma espécie de brincadeira. O corpo dele se</p><p>balançava como o corpo de uma boneca de pano. Eles estavam dando socos nele, golpeando,</p><p>rasgando as roupas. Ele disse que, enquanto olhava, Garton deu um soco na virilha de Adrian.</p><p>O cabelo de Adrian caía sobre o rosto. Sangue jorrava da boca e encharcava sua camisa.</p><p>Webby Garton usava dois anéis pesados na mão direita: um era um anel da Derry High</p><p>School, o outro ele tinha feito em uma aula, com as letras DB de metal entrelaçadas em alto-</p><p>relevo com 7 centímetros. As letras representavam Dead Bugs, uma banda de heavy metal da</p><p>qual ele gostava muito. Os anéis cortaram o lábio superior de Adrian e quebraram três dentes</p><p>de cima perto da gengiva.</p><p>— Socorro! — gritou Hagarty. — Socorro! Socorro! Estão matando ele! Socorro!</p><p>Os prédios na rua Main continuaram escuros e secretos. Ninguém saiu para ajudar, nem da</p><p>única ilha branca de luz que marcava a rodoviária, e Hagarty não via como isso era possível:</p><p>havia pessoas lá. Ele as tinha visto quando passou com Ade. Será que ninguém sairia para</p><p>ajudar? Ninguém?</p><p>— SOCORRO! SOCORRO! ESTÃO MATANDO ELE, SOCORRO, POR FAVOR, PELO</p><p>AMOR DE DEUS!</p><p>— Socorro — sussurrou uma voz bem baixa à esquerda de Don Hagarty… e em seguida,</p><p>uma risada.</p><p>— Expulsa o vagabundo! — Garton estava gritando agora… gritando e rindo. Todos os</p><p>três, contou Hagarty a Gardener e Reeves, estavam rindo enquanto surravam Adrian. —</p><p>Expulsa o vagabundo! Por cima da grade!</p><p>— Expulsa o vagabundo! Expulsa o vagabundo! Expulsa o vagabundo! — cantarolou</p><p>Dubay, rindo.</p><p>— Socorro — disse a voz baixa de novo, e apesar de ser uma voz grave, a risadinha soou</p><p>depois de novo, e era como a voz de uma criança que não consegue se controlar.</p><p>Hagarty olhou para baixo e viu o palhaço, e foi nesse ponto que Gardener e Reeves</p><p>começaram a relevar tudo que Hagarty dizia, porque o resto era delírio de um lunático. No</p><p>entanto, mais tarde, Harold Gardener se viu em dúvida. Depois, quando soube que o garoto</p><p>Unwin também viu um palhaço, ou disse ter visto, ele começou a se questionar. O parceiro</p><p>nunca teve dúvidas ou nunca admitiria.</p><p>Hagarty disse que o palhaço parecia um cruzamento entre Ronald McDonald e aquele velho</p><p>palhaço da TV, o Bozo. Ou era o que ele pensou no princípio. Foram os tufos desgrenhados de</p><p>cabelo que levaram essa comparação à mente. Mas considerações posteriores fizeram com</p><p>que ele achasse que o palhaço não se parecesse nem com um, nem com outro. O sorriso</p><p>pintado no rosto branco era vermelho, não laranja, e os olhos eram de um prateado cintilante</p><p>estranho. Lentes de contato, talvez… Mas uma parte dele achou na hora e continuou a achar</p><p>que talvez prateada fosse a verdadeira cor daqueles olhos. Ele usava uma roupa larga com</p><p>grandes botões laranja em forma de pompom; nas mãos, havia luvas de desenho animado.</p><p>— Se você precisar de ajuda, Don — disse o palhaço —, pode pegar um balão.</p><p>E ofereceu vários que segurava na mão.</p><p>— Eles flutuam — disse o palhaço. — Aqui embaixo, todos nós flutuamos; em pouco</p><p>tempo, seu amigo também vai flutuar.</p><p>12</p><p>— Esse palhaço chamou você pelo nome — disse</p><p>Jeff Reeves com uma voz totalmente sem</p><p>expressão. Ele olhou por cima da cabeça baixa de</p><p>Hagarty para Harold Gardener, e um olho deu uma</p><p>piscadela.</p><p>— Chamou — disse Hagarty sem levantar o olhar. — Sei como parece.</p><p>13</p><p>— Então vocês jogaram ele por cima — disse</p><p>Boutillier. — Expulsa o vagabundo.</p><p>— Eu não! — disse Unwin, erguendo o olhar. Ele tirou o cabelo dos olhos com uma das</p><p>mãos e olhou para eles com desespero. — Quando vi que eles realmente pretendiam fazer</p><p>aquilo, tentei puxar Steve, porque eu sabia que o cara podia se machucar… Eram uns 3 metros</p><p>até a água…</p><p>Eram 7. Um dos guardas do chefe Rademacher já tinha medido.</p><p>— Mas parecia que ele estava louco. Os dois ficavam gritando “Expulsa o vagabundo!</p><p>Expulsa o vagabundo!”, e então pegaram ele. Webby segurou por debaixo dos braços e Steve</p><p>pela parte de trás da calça, e… e…</p><p>14</p><p>Quando Hagarty viu o que eles estavam fazendo,</p><p>correu na direção deles gritando “Não! Não! Não!”</p><p>a plenos pulmões.</p><p>Chris Unwin o empurrou para trás; Hagarty caiu na calçada e bateu os dentes.</p><p>— Quer ir também? — sussurrou ele. — Corre, querido!</p><p>Eles jogaram Adrian Mellon da ponte na água. Hagarty ouviu o som dele caindo no rio.</p><p>— Vamos sair daqui — disse Steve Dubay. Ele e Webby estavam indo para o carro.</p><p>Chris Unwin foi até a amurada e olhou para baixo. Ele viu Hagarty primeiro, deslizando e</p><p>se agarrando na grama da margem cheia de lixo para chegar até a água. E então, viu o palhaço.</p><p>O palhaço estava arrastando Adrian do outro lado com um dos braços; os balões estavam na</p><p>outra mão. Adrian estava encharcado, engasgado, gemendo. O palhaço girou a cabeça e sorriu</p><p>para Chris. Chris disse que viu os olhos prateados brilhantes e os dentes à mostra, dentes</p><p>grandes, disse ele.</p><p>— Como o leão do circo, cara — disse ele. — Eram mesmo enormes.</p><p>Ele disse que viu o palhaço enfiar um dos braços de Adrian Mellon para trás, para ficar</p><p>por cima da cabeça.</p><p>— E depois, Chris? — disse Boutillier. Ele estava entediado com essa parte. Contos de</p><p>fadas o entediavam desde os 8 anos.</p><p>— Sei lá — disse Chris. — Foi aí que Steve me agarrou e jogou no carro. Mas… acho que</p><p>ele mordeu o sovaco dele. — Ele ergueu o olhar para eles agora, com incerteza. — Acho que</p><p>foi isso que ele fez. Mordeu o sovaco dele. Como se quisesse comer ele, cara. Como se</p><p>quisesse comer o coração dele.</p><p>15</p><p>Não, disse Hagarty quando ouviu a história de</p><p>Chris Unwin na forma de perguntas. O palhaço não</p><p>arrastou Ade na outra margem, ao menos não que</p><p>ele tenha visto — e ele concordou que não era um</p><p>observador indiferente àquelas alturas; ele já</p><p>estava completamente enlouquecido.</p><p>O palhaço, disse ele, estava de pé perto da margem oposta com o corpo encharcado de</p><p>Adrian nos braços. O braço direito de Ade estava esticado atrás da cabeça do palhaço, e o</p><p>rosto do palhaço estava mesmo na axila direita de Ade, mas ele não estava mordendo. Estava</p><p>sorrindo. Hagarty conseguiu vê-lo olhando por debaixo do braço de Ade e sorrindo.</p><p>Os braços do palhaço apertaram e Hagarty ouviu costelas se quebrarem.</p><p>Ade gritou.</p><p>— Flutue conosco, Don — disse o palhaço pela boca vermelha sorridente, e apontou com</p><p>uma das mãos com luvas brancas para debaixo da ponte.</p><p>Balões flutuavam debaixo da ponte, não uma dezena ou uma dezena de dezenas, mas</p><p>milhares, vermelhos e azuis e verdes e amarelos, e impresso em cada um havia EU ♥ DERRY!</p><p>16</p><p>— Bem, isso faz parecer que havia muitos balões</p>
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  • eia o poema "As lições de R. Q.", de Manoel de Barros, abaixo transcrito, e resolva o que se pede. Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano...
  • VERSA-2010) No poema Aninha e suas pedras, Cora Coralina trata de questões muito importantes no que se refere à relação entre sujeito e literatu...
  • A morfologia vital é muito simples, pois não possui muitos componentes. Alguns vírus possuem, além de uma capaproteica
  • I e II.II e III.I e III.Apenas II. 7. Na década de 1970, estudos demonstraram que o autismo tinha causas principalmente neurobiológicas. Atualmente...
  • A formação de uma imagem da mente do artista a comunicação decimais por meio do objeto feito pelo artista é o observador que olha tanto a obra como...
  • . (Unesp) Explique em que medida, no soneto de Augusto dos Anjos, é diferente o sentimento final do eu-poemático ante a pessoa morta.
  • Leia o seguinte trecho de "Senhora", de José de Alencar, e responda ao que se pede: “– A senhora comprou um marido; tem pois o direito de exigir...
  • . (Unesp) Aponte a solução encontrada pelo eu-poemático, no poema de Saldanha, ante o horror que a corrupção do corpo da mulher lhe causa.
  • O termo literatura começou a ser usado para distinguir e classificar os textos de escrita imaginativa somente a partir do final do século? XIX. ...
  • Em uma escola, o departamento de humanidades lançou um projeto colaborativo no qual os alunos trabalhavam em grupos para pesquisar e apresentar dif...
  • RESPOSTA e. Ape nas a I I es tá corr eta. DES AFIO Que tal fa ze r uma re fle xão s obre o níve l e m que se e ncont ra a cul...
  • A composição dos custos da ordem $ 400.000,00 de uma companhia aérea, com base nos EUA, em determinado período configura uma série estatística de a...
  • 23-11 lista port
  • SINTAXE - APOSTILA
IT - A COISA - Literatura (2025)
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Author: Gov. Deandrea McKenzie

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Name: Gov. Deandrea McKenzie

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